domingo, junho 28, 2020

Haja saúde

Ele há coisas que acontecem, outras coisas, nem por isso. Há perguntas que me apetecia mesmo, mesmo, mesmo fazer mas que, por razões tão obscuras que me envergonham, prefiro calar e esquecer. Esquecer o quê? De que perguntas estaria eu a falar? Está esquecido.

Não sei se é sinal de crescimento e, sendo, crescimento do quê? A cada dia que passa, cada semana, cada mês, desde o início do confinamento, sinto uma espécie de desencanto que me vai pavimentando o coração até o aplanar e endurecer com uma crosta de descrença. Descreio da nossa capacidade de regenerar a sociedade, da nossa capacidade de assinar um armistício com o planeta, descreio da nossa marcha em direcção ao futuro de tal modo estamos encerrados nos preconceitos que nos construíram o passado.

Será isto um reflexo de aproximação à terceira idade? Esta pergunta atrevo-me a fazê-la mas a resposta é iludida por uma outra questão: o que é a terceira idade? Olho para a terceira idade como um reflexo da idade de reforma, a cada ano que passa ela avança mais uns meses, mais uns anos e nunca mais chega. Mas, o facto indesmentível, é que estou cada vez mais próximo dela (da terceira idade, da reforma), assim Deus me dê saúde e não me interrompa o contrato antecipadamente nem me ponha em lay off com alguma doença daquelas que, não nos matando, nos incapacita por tempo indeterminado.

Esta coisa da pandemia veio confundir a minha alegria de viver, aumentar as dúvidas, azedar certezas. A única coisa que não consegue incomodar é o amor que sinto pelas pessoas que me são mais próximas. Haja saúde!

terça-feira, junho 23, 2020

Discurso indirecto

Há gajos a quem se dá um bocadinho de corda e vão por aí fora: falam, falam, falam, principalmente se o tema forem eles próprios. Falam do que sabem e do que não sabem desde que isso lhes sirva para polirem um bocadinho mais a ponta do seu nariz. Há gajos deslumbrados consigo próprios. Emproados, vaidosos, convencidos de que há dentro deles um poço sem fundo prestes a ficar pleno de sabedoria. Mas, não o somos todos? Deslumbrados com a imagem que fazemos de nós próprios? Sábios incompreendidos? Sei que alguns têm baixa auto-estima mas esses são uma minoria. Serão? Espera aí, paciente leitor, que faço eu? Estou com a corda toda! E falo, falo, falo, pouco dizendo que se aproveite. Ainda por cima o tema não sou eu próprio... ou serei? Escrevo estas coisas para me convencer de que há algo de substancial no meu pensamento? Isto é o meu pensamento? Se não me ponho a pau dou tal polimento à ponta do meu nariz que ainda fico ofuscado pelo reflexo da luz a incidir sobre ele. Calo-me. Paro de escrever. O melhor será reflectir sobre o assunto. Calado.

domingo, junho 21, 2020

Escassez de sorrisos

Andamos todos mascarados. Imagino que para uma criança com imaginação unicórnica isto seja um manancial infinito de situações maravilhosas. Para mim, que já vou sentindo alguns músculos a chiar, isto da mascarada contribui fortemente para me deixar acabrunhado.

Ainda por cima, cá em casa, temos umas máscaras de plástico transparente que nos deixam o sorriso à mostra. Quando vou a um local onde todos somos obrigados a usar a máscara, continuo a sorrir com a cara toda mas os que me respondem sorriem-me apenas com os olhos. Ou então nem sequer respondem ao meu sorriso de igual modo, nem sempre dá para perceber.

Se a imposição da máscara se mantiver por muito mais tempo decerto se vulgarizarão modelos mais arrojados que a vulgar máscara cirúrgica. As grandes marcas irão colocar no mercado máscaras distintivas, símbolos de poder económico, não obrigatoriamente de bom gosto. As marcas desportivas desenvolverão máscaras que melhorem a filtragem do ar, empreendedores imaginativos lançarão modelos extravagantes.

Nos tempos que correm faltam sorrisos, vão sobrando olhares. Os sorrisos fazem-me falta.

domingo, junho 14, 2020

Sonho de Verão

A praia estava vazia. Não se via ninguém no extenso areal.Talvez houvesse gente para lá das dunas mas, para já, não fosse o mar era um deserto. Saltaram do bote, pés em terra, um consolo! Um deles deu uma corridinha, braços ao ar, gritando como uma criança: iupi, iupi, iupi! O mais alto - barba comprida, olhar fechado, braços como troncos de árvore - fez um gesto elevando a mão em concha na direcção do céu cinzento e disse "esta praia é minha". Sem entoação particular nem emoção sensível. Apenas aquilo, aquela praia, agora, era dele. Os outros homens pareceram contentes com a declaração do chefe.

Palavras não eram ditas quando viram surgir na linha em que a duna tocava o céu um grupo de outros homens. O caldo estava entornado.

quinta-feira, junho 11, 2020

O tempo dos monstros

O clima é de conflito latente. Talvez seja exagero chamar-lhe clima de guerra mas que é propício à bordoada, disso não tenho grandes dúvidas. 

Habituámo-nos a pensar que a Democracia se constrói com base no diálogo, na confrontação de ideias que estão na base de perspectivas diferentes para a organização da sociedade. Imaginámos que seria possível perpetuar esses sistema de funcionamento, delegando os nossos interesses em representantes eleitos que procurariam consensos nos Parlamentos, buscando soluções adequadas e tendo como finalidade o bem comum. 

Tudo isto só poderia correr bem pois um desses objectivos seria a educação das populações, a elevação da sua capacidade de reflexão e discernimento. Com uma sociedade cada vez mais informada o Nirvana começava a desenhar-se no horizonte próximo. Só faltavam os unicórnios e os passarinhos.

Esquecemos a tendência natural do ser humano para a boçalidade, a agressão e a necessidade típica do macho em ser o bicho dominante, o líder da manada. A Democracia revela-se demasiado frágil precisamente num dos seus aspectos mais importantes: a tolerância.

Nos tempos que correm o diálogo não ultrapassa o nível da conversa de surdos. E, como qualquer conversa de surdos, degenera em gritaria. As ideias transformam-se em verdades absolutas, o consenso é uma impossibilidade. Erguem-se barreiras de incompreensão que se transformam em barricadas. Estamos prontos para o que der e vier.

Precisamos de estar alerta, precisamos de elevar a nossa capacidade de conter a raiva e continuar a procurar o diálogo. Alguns antagonistas recentes poderão ser os nossos aliados do futuro próximo. Para mantermos a possibilidade de uma sociedade democrática devemos identificar com clareza os verdadeiros inimigos mortais, para os derrotarmos alianças estranhas terão de ser estabelecidas. A sobrevivência daquilo em que acreditamos exige atitudes extraordinárias.

Vem aí o tempo dos monstros.

segunda-feira, junho 08, 2020

Uma questão de sorte

Longos diálogos, ideias curtas e um sol abrasador a bater-lhe na testa faziam com que a situação fosse mais penosa do que estranha. Não havia trânsito a atrapalhar, nem havia cães vadios, nem vizinhos à janela, não havia quase nada a não ser aqueles dois vultos inconstantes que não paravam de dialogar. Mantinham uma conversa capaz de fazer adormecer um muro de granito.

Pousou a mão pelo bolso traseiro das calças. O livrinho continuava lá, aconchegado, provocando um calor do caraças, à espera de ser lido. Mas, por educação, seria necessário aguardar uma pausa na conversa dos fantasmas antes que pudesse ler as últimas páginas que haviam de revelar o desfecho do romance. O sol, a conversa, a curiosidade, tudo concorria num ponto único dentro da cabeça dele, como setas voando em direcção ao alvo.

O espectro da esquerda pareceu tremelicar e o da direita perdeu definição, começando a assemelhar-se a uma nuvem de fumo de cigarro muito espessa. Ainda assim continuavam, incansáveis, dissertando sobre um mundo que ele desconhecia em absoluto. Impossível reconhecer o que quer que fosse daquela conversação. Paisagens inimagináveis, situações abstrusas, coisas do Além.

Foi então que se lembrou de soprar.

E fez como o Lobo Mau; encheu o peito de ar até ficar com os ouvidos a zumbir e soprou, soprou, soprou, sentindo as têmporas a latejar, o peito a esvaziar-se de forma violenta. De imediato os fantasmas se enrolaram um no outro e se dissolveram na atmosfera brilhante e dura daquela tarde de Verão. Aquilo foi pior que má educação mas a leitura vale tudo!

Pegou no livro, leu as últimas páginas e ficou desiludido com o que aconteceu ao protagonista da história. Já não havia nada que pudesse fazer para trazer os fantasmas de volta. Resignado, dirigiu-se ao quiosque para comprar outro livrinho. Talvez com este tivesse mais sorte.

quinta-feira, junho 04, 2020

Ocupar o corpo

Dom Quixote (volume2), Pais e Filhos de Turgueniev, Memórias Póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro de Machado de Assis, assim tenho vogado na canoa das minhas leituras neste charco pestilento da pandemia. Devagar,lentamente, remando umas vezes, outras deixando-me ir na correnteza; umas quantas páginas por dia.

A literatura é um prazer.

Ontem comecei um livrinho de Simenon editado na Colecção Vampiro, o primeiro que leio com o Comissário Maigret como protagonista. Tenho ali mais uns quatro ou cinco que trouxe da casa de São Miguel que ainda contém, em repouso, os livros do meu avô. Dezenas de "vampiros" me aguardam.

Talvez devesse dedicar mais tempo à literatura mas o jornal, o computador e, sobretudo, a pintura e o desenho, ocupam-me boa parte do dia. Por vezes sinto a tentação da escrita mas acabo a distraí-la aqui, no 100 Cabeças, e fico satisfeito por não me dispersar ainda mais.

Tudo isto me cheira a matança do tempo mas algo me diz tratar-se de ocupação do corpo. Ficamos assim.