quarta-feira, junho 30, 2021

João Capelo Gaivota*

Ele quis ser mar, ter ondas sobre os ossos, cardumes inteiros na barriga, Poseidon sentado num trono feito no seu cérebro. 

Antes sonhara ser continente perdido, secreta Atlântida ou apenas uma ilha no meio do Mediterrâneo, uma ilha agachada dentro de um labirinto impossível de resolver por seres vivos, acessível apenas aos maiores de entre os deuses.

Ele desejara ser tantas coisas, tantos sonhos, lendas, poemas, romances, ele desejara ser... agora jazia ali, caído na dureza da rocha onde o seu corpo viera embater com violência. Tinha as asas partidas, o bico abria e fechava como uma porta sacudida pelo vento. Sentiu a vida por um último instante. Deixou de sonhar. 

* Não confundir com o Tristão.

sábado, junho 26, 2021

Veludo, lâminas e fantasmas

Visitar o passado faz-me sentir veludo na alma, quando são boas as recordações.

Saem-me lâminas do cérebro quando são más.

Rastejam fantasmas se as memórias não ganham nitidez.

Veludo, lâminas e fantasmas, eis o que trago dentro de mim.

quarta-feira, junho 16, 2021

Ser branco

Tenho um livrinho aberto nas mãos. É a "História Universal da Infâmia", essa barroca sucessão de narrativas pela voz imensamente literária de Borges, o escritor infinito. 

Olho a minha mão, o meu polegar. Olho o meu braço: qual a cor da minha pele? Tento encontrar palavras capazes de explicar aquilo que os meus olhos vêem. A cor e o tom são indefinidos, não descubro uma expressão adequada. Qual a minha cor?

De uma coisa tenho eu certeza absoluta: não sou branco! Brancas são as páginas do meu livro.

terça-feira, junho 15, 2021

Se bem me lembro

 

Tenho seguido com alguma curiosidade a polémica (no jornal Público) entre João Miguel Tavares e Pacheco Pereira a propósito da intervenção de Nuno Palma na convenção do MEL. O debate, que se desejava, vai-se transformando em discussão acalorada, que se dispensava. Nuno Palma também não se fica e vão sendo trocados epítetos vagamente coloridos, arremessados de um lado para o outro com mais violência do que pontaria. 

 Se bem compreendi o problema foi Palma ter afirmado que o Estado Novo combateu o analfabetismo lusitano com maior eficácia que a 1ª República e que convergiu com a Europa em PIB per capita de forma mais eficaz que em grande parte do regime democrático. Estas afirmações serão sustentadas por números e percentagens. Eu vivi a “primavera marcelista” bem como os últimos anos do inverno que a precedeu. E tenho algumas memórias: da ausência de saneamento básico, dos pés descalços, das caras sujas, dos putos que bebiam bagaço para aquecer e depois não conseguiam aprender grande coisa na escola, de uma sardinha ser refeição para três, tenho memória do machismo alcoólico, das estradas miseráveis que desembocavam invariavelmente em povoações de aspecto lúgubre habitadas por mulheres vestidas de negro que tinham os filhos na guerra, das ruas de terra batida com galinhas deixadas à solta e caganitas de ovelhas; tenho muitas memórias e, entre elas, uma sensação de felicidade infantil. 

Até à Revolução não me lembro de alguma vez ter ouvido a palavra “comunista”, lembro-me de chamar “cabeça de abóbora” ao Presidente da República (em voz baixa e por entre risinhos), lembro-me do respeito absoluto devido à inquestionável Santa Madre Igreja. Lembro-me das loas a Salazar e da história do Macaco do Rabo Cortado nos livros de leitura que traziam também a impressionante narrativa do aio Egas Moniz com a corda ao pescoço. 

Lembro-me de um país pobre, habitado por gente maioritariamente miserável que, mal pôde, emigrou em massa para as “franças” em condições ditadas pelo mais profundo desespero. Todas estas recordações me fazem pensar que, das duas uma, ou a Europa com a qual convergimos nesses tempos era igualmente miserável ou então o PIB teria, em certos e determinados países, destinos diferentes daqueles que o Estado Novo lhes dava. Quanto à questão da alfabetização não me custa nada admitir que o Estado Novo tenha feito muito melhor trabalho que a 1ª República, mas não tenho memórias que me ajudem a pensar no assunto. 

Ainda assim penso poder afirmar que, nesse aspecto particular, o regime Democrático tem sido muitíssimo mais eficaz do que foi o salazarismo. Estou em crer que, se trabalharmos com memórias vívidas, não há comparação possível entre o Estado Novo e o regime actual mas caso reduzamos a memória à frieza dos números talvez possa haver formas de desencantar alguma virtude à Outra Senhora.

 

carta enviada ao director do Público

quarta-feira, junho 09, 2021

Macacada

Muita gente fala e avisa que estamos a caminhar em direcção a um abismo de incompreensão entre a esquerda e a direita, que estamos com conversas cada vez mais de surdos e extremadas, muita gente fala e avisa mas parece que ninguém ouve ou dá grande importância à questão. A situação faz-me recordar (ou terei imaginado?) gritaria generalizada na aldeia dos macacos e agressões cruzadas com pedaços de merda arremessados em direcção ao oponente. Vejo merda a voar em todas as direcções. Baixo a cabeça e tento encontrar uma nesga por onde me possa escapulir deixando para trás este merdançal insuportável.

O palco mediático é alegremente entregue aos macacos mais agressivos, aos mais capazes de enterrarem as patitas na merda, aos que não hesitam em guinchar como porcos a serem capados: é deles a ribalta! A sociedade, de um modo geral, gosta de sangue e ama o sofrimento alheio. O discurso institucional está longe de admitir esta ânsia de dor mas todos compreendemos que o que a boca diz é negado pelo cérebro. 

Isto parece muito o cortejo fúnebre das democracias ocidentais.

segunda-feira, junho 07, 2021

TINA que os pariu!

Tenho a sensação de que já utilizei este título num post anterior do 100 Cabeças. Se não foi título foi tema, se não foi tema foi frase.

Vem isto a propósito da vontade manifestada pelos principais dirigentes políticos dos países do G7 em taxar os lucros das grandes multinacionais arranjando forma de lhes secar a artimanha de fugirem com o rabo à seringa indo pagar impostos para paraísos fiscais que os não cobram (!?). Esta minha explicação é um bocado tola pois não compreendo muito bem como funciona a coisa. O que eu percebo é que os poderosos estão a tentar encontrar forma de domarem um pouco a besta selvática do capitalismo.

Decerto são dirigentes muito poderosos que não dependem directamente das tetas das grandes multinacionais para saciarem a suas necessidades de consolo. Vai daí puxam-lhes as calças para baixo e ameaçam-lhes os lucros, que poderão baixar de escandalosamente pornográficos para apenas estupidamente insultuosos.

Para os defensores da ideia da TINA (There Is No Alternative) económica isto é um atestado de menoridade intelectual. Andam há anos a convencer o pagode de que não há alternativa, que os capitalistas são como as enguias e não se deixam apanhar, escapulindo-se ao menor sinal da alarme. No lado oposto muitos se recusaram a aceitar a TINA como uma fatalidade do destino. Aqui está a prova de que até mesmo os capitalistas mais viscosos e arredios acabam por ser apanhados, assim haja vontade política.

O que não estava propriamente no programa era que o método prescrito para caçar enguias no lodo da alta finança fosse criação do próprio sistema capitalista. Ou, por outro lado, o facto de ser o sistema capitalista a inventar uma forma de se travar a si próprio revela a dimensão inimaginável da roubalheira que vem sendo perpetrada há várias décadas debaixo dos nossos narizes.

Termino com toda a convicção: vão prá TINA que vos pariu!

sexta-feira, junho 04, 2021

Ser solidário

É tudo uma questão de olhar o sol a direito ou esperar pela noite para depois abrir os olhos. Entretanto muitos de nós esquecem-se de reparar nos outros, muitos não reparam, sequer, em si próprios. Ofuscados pela ilusão que é estarmos vivos, não damos o devido valor à aproximação da morte.

Procuramos uma posição confortável que nos permita ultrapassar cada dia sem grande sofrimento, de preferência sem sofrimento nenhum. A solidariedade é uma coisa complicada pois poderá perturbar o equilíbrio necessário à ausência de dor e aborrecimento. 

Ser solidário obriga a olhar o sol a direito. Muitos de nós não suportam tanta luz e refugiam-se na escuridão da ignorância. Optamos por um mundo sem luz, tornamo-nos adeptos das trevas.