terça-feira, fevereiro 28, 2006

O buço de Frida Khalo

A pequena multidão que se deslocou ao CCB no Domingo faz da exposição de 26 pinturas e mais umas coisas relacionadas com a vida de Frida Khalo um fenómenozinho no nosso acanhado universo artístico.

Anteriormente constituiram sucessos assinaláveis as exposições, em Serralves, das obras de Andy Warhol, Bacon e Paula Rêgo.

Haverá algo de comum entre estas exposições?

Atente-se, a título de exemplo, na actual exposição da pintora mexicana.
Mais do que a qualidade da sua pintura, o público conhece (ou pensa conhecer) a personagem. A obra funcionará mais como um espelho, através do qual o espectador poderá confirmar a imagem que construiu da sua autora.

O espectador eventual, amador de pintura ou simples consumidor de suplementos dominicais de semanários, sente-se preparado para encarar as obras de Frida pois estas aparecem-lhe descodificáveis na sua brutalidade simples.
São suficientemente explícitas para não produzirem grandes problemas conceptuais e suficientemente "naifs" para tornarem suportável a visão de certos horrores que, num registo mais académico, poderiam tornar-se chocantes ou mesmo insuportáveis à vista do espectador leigo.

Há assim uma espécie de aproximação da pintura à notícia tablóide. "Coluna desfeita produz obra-prima!" ou qualquer coisa deste género. Isto retira uma carga erudita desconfortável que tantas vezes acompanha o fenómeno artístico e, embora a pintura de Frida Khalo seja tão áspera e agressiva como as instalaçõs de Hirschhorn, revela-se muito menos (quase arriscaria dizer, nada) hermética e próxima das experiências de vida do consumidor.

E o que tem isto de comum com as outras exposições atrás citadas?
Bom, todos os artistas referidos são personagens quase literárias. O ícone Pop, o pintor maldito e a genialidade lusitana temperada pelos nevoeiros londrinos ombreiam com a masculinidade feminina do buço de Frida. São todos suficientemente humanos para serem queridos e, sobretudo, compreendidos.

Isto coloca uma questão: o que esperamos nós da obra de arte?
Será identificação? Talvez.
E, se for assim, ficam os robôs de Leonel Moura postos de parte do universo da criação artística?

As questões conceptuais da arte continuam a ser pasto de pequenos rebanhos de seres algo estranhos, algo raros, mas que existem. Disso não tenhamos dúvidas.

Entretanto admiremos o buço de Frida (quando a febre baixar e as filas forem menos embaraçosas).

domingo, fevereiro 26, 2006

67 cêntimos


Hoje de manhã fui até ao CCB. Ainda me resvala a língua quando desdobro a sigla e, sem querer, chamo-lhe Centro Comercial de Belém. Garanto que é sem maldade.

Como noutras ocasiões dispunha-me simplesmente a preencher um espaço de tempo, de outra forma vazio. Já que ali estava dirigi os meus passos para a entrada da exposição dedicada a Frida Khalo prevendo uma visita mais ou menos rápida, sem grandes expectativas quanto à qualidade do assombro que me pudesse aguardar.

A surpresa foi a fila que se estendia desde a bilheteira até à porta. Fila bem compacta, produzindo um ruído característico, uma espécie de zumbido aveludado ecoando de mansinho, a mostrar que aquelas pessoas eram, como eu, burgueses razoavelmente educados apreencherem um espaço de tempo, num Domingo de manhã, de outro modo vazio.

Nunca tinha visto semelhante burburinho naquele espaço. Quase parecia a Tate Modern ou o Prado em dia de inauguração. Como queria apenas preencher um espacinho vazio e não transformar um momento em alguns minutos demasiado longos. dei meia volta.

Saí de novo para o sol. Reparei que grande parte dos visitantes falavam espanhol (seriam mexicanos?) e vestiam roupas tipo catálogo da La Redoute o que dava um aspecto muito suave e cómodo ao ambiente geral.

Regressei para junto das minhas acompanhantes (mulher e filha). Enquanto elas se dirigiram à Bertrand para namorarem algum livro interessante, fui beber uma bica à cafetaria. Aí prolongava-se o ambiente geral do Centro. Mais burgueses, mais roupinhas jeitosas e aquele suave zumbido geral de quem fala num tom apropriado a qualquer espaço e situação.

A surpresa do dia foi o preço do café. 67 cêntimos! Não 60 nem 70, mas 67 cêntimos!!! Que raio de conta terá conduzido áquele preço? Aquilo deve dificultar os trocos, complicar as contas, baralhar os espíritos. Rebusquei os fundos da algibeira e lá descobri umas quantas moedinhas de 1 cêntimo que me permitiram entregar ao sizudo empregado, por detrás da máquina registadora, a quantia mágica que ali corresponde a uma chávena de café.

Enquanto aguardava civilizadamente a minha vez de ser atendido pensei um pouco no assunto. Conclui que 67 cêntimos devem correponder a um qualquer limite máximo, deduzido pelo cálculo exacto de um gestor ambicioso.

67 cêntimos!!!
Quanto orgulho não deverá proporcionar ao seu autor tão extravagante preço.
67 cêntimos!!!
Aquilo é quase uma expressão de Beleza!
Na verdade expressa bem a teoria mais portuguesa de Portugal inteiro que é ilustrada (como seria de esperar) no popularíssimo ditado que garante que "grão a grão, enche a galinha o papo". Neste caso, cêntimo a cêntimo e sem galinha na equação.

Aqueles dois cêntimozinhos distorcem a realidade e lançam o visitante estrangeiro na vertigem do espaço mental do português. É nas coisas pequenas que encontramos expressão para a nossa fé. Tal como " a mulher e a sardinha se querem da mais pequenina" (!!!???) e outras máximas do género, naqueles dois cêntimos a mais (ou serão 3 a menos?) confirmamos a dimensão genial do empresário português.

Seja lá como fôr, a verdade é que não cheguei a visitar a amiga Frida, mas ficou a promessa de lá voltar. Até porque desejo experimentar de novo a vertigem daqueles extraordinários 67 cêntimos!

quinta-feira, fevereiro 23, 2006

Revolução/evolução


As coisa mudam!
Todos sabemos que as coisas mudam. Oh, sim, e como mudam!

Estão diferentes.
Tranformam-se ou transformaram-se, já não são iguais ao que eram.
Algumas coisas nem sequer são parecidas com aquilo que foram, de tal modo mudaram.

Gostamos de comentar a mudança, de a observar. É curioso ser espectador.

Os problemas começam a surgir quando somos actores num processo de mudança.
Principalmente se a nossa actuação implica alterações nos hábitos e rotinas que havíamos adquirido ao longo do tempo.
O lento e dócil, o saboroso passar do tempo que confirma a solidez das coisas que tomamos por reais.

Actuar na mudança, pela mudança ou mesmo contra ela, exige esforço, envolvimento, quebra de rotinas. Incómodo.

Um dia mais tarde, ao olharmos para trás, talvez possamos compreender o que se passou, qual foi o nosso papel.

No presente, a falta de distância relativamente aos acontecimentos, a dor efectiva (não a sua memória) provocam uma estranha vontade de afastamento.
A mudança que se lixe!

Amanhã falamos... ou não.

terça-feira, fevereiro 21, 2006

O robô-caveira


Leonel Moura convidado pelo Museu de História Natural de Nova Iorque (AMNH) a criar um robô pintor para a sala da humanidade.O AMNH tem em curso um projecto de renovação de vários módulos expositivos, entre os quais se destaca a sala dedicada à humanidade. A abertura está prevista para finais do corrente ano. A sala da humanidade apresentará um percurso desde os primórdios até aos dias de hoje. De forma a representar algumas das questões que as novas tecnologias colocam, em particular com o aparecimento da robótica e das máquinas inteligentes, o AMNH convidou Leonel Moura a apresentar uma proposta de instalação permanente com um robô pintor.Considerando que, mais do que outros, um robô capaz de produzir a sua própria arte questiona de forma profunda a natureza do ser humano.

Esta será uma questão fundamental.
Podem as "coisas" produzidas por um robô ser consideradas obras de arte?
Na foto Leonel Moura olha o parceiro de aventura como Hamlet olha a caveira.
Sobre o palco, a atenção dos espectadores suspensa da mais célebre das frases: "To be or not to be..." e a luz do projector queima a pele do actor, um suor ligeiro evapora-se e sobe em direcção ao céu virtual que é o da teia, sobre as tábuas.
Apesar de sabermos que tudo não passa de teatro, de representação, os corações batem mais depressa ou acomodam-se na dúvida aveludada que ganha contornos firmes, quase verdade, quase mentira, de tão sólida.
É a beleza a surgir, lá do fundo, vinda do quase nada.

Leonel Moura anda a brincar com a arte. A arte agradece, farta de ser olhada sempre da mesma maneira, sempre como comércio, como espelho mágico, sempre uma feira de vaidades.
Com a chegada dos robôs artistas podem as premissas mudar?

Aguardemos os próximos episódios.

http://www.lxxl.pt/artsbot/index.html

sábado, fevereiro 18, 2006

Comentário (Olaio)


Na sequência do comentário que deixaste no "100 Cabeças" quero apenas dizer-te que os pruridos islâmicos causados por eventuais ofensas à superioridade da sua visão religiosa me causam náuseas. Da mesma forma, as (pouco) discretas manobras da Opus Dei contra a versão cinematográfica do Código da Vinci, são provas de que o monstro de intolerância prepotente das religiões está apenas adormecido. Qualquer pretexto serve a estes animais para saírem da toca e virem abocanhar-nos as canelas.
Nesta história dos cartoons não tenho dúvidas de que há um aproveitamento perigoso e premeditado de certas forças obscurantistas que tentam dividir o Ocidente naquilo que ainda tem de puro e defensável que é o desejo de liberdade conseguido através da separação clara entre religião e estado.
Não me comovem os gemidos rancorosos dos mullahs e outros que tais, tal como não me comovem os gemidos dos padrecas da Opus Dei. Pessoas que não respeitam a liberdade alheia (que não respeitem a sua própria é lá com eles mesmo que seja masoquismo) não merecem o meu respeito. Daí que a reacção exagerada e orquestrada da "rua" árabe contra o Ocidente de uma forma geral, encapotada pela "crise dos cartoons" me ponha de pé atrás e mãos à frente, em posição defensiva.
O que me cheira a petróleo são latidos como os do Freitas, ou da Administração Bush, que querem parecer anjinhos no meio da trovoada. Metem um bocadinho de nojo.
Os árabes foram invadidos, humilhados, derrotados, etc.? Azarucho! Afinal de contas também já tiveram a sua Era e não consta que tenham sido tão mansos como os cordeiros quando dominaram a Península Ibérica (para só dar um exemplo). A História não morreu. Isso é treta pós-moderna para consumo de Yuppies enfadados com o quotidiano da empresa. A História está aí, perante os nossos olhos, em todo o seu horrível esplendor! Só que nós temos consciência de que estamos a vivê-la e, do "outro lado", os fanáticos religiosos nem sequer aceitam que tal coisa exista (vê só a interpretação iraniana do Holocausto!).
Para eles só existe "O" livro. Eu cá ainda ontem estive a ler O Homem Aranha.
Um abraço.

(na imagem o Rato Mickey é representado como um evangelista, à maneira dos manuscritos iluminados da Idade Média... elucidativo, não?)

Rui Silvares

sexta-feira, fevereiro 17, 2006

Deus havia de ser dos nossos

No tempo em que os animais falavam foi importante haver quem impusesse visões ordenadas das coisas que compunham o mundo e a existência. A religião funcionou, então, como Lei e permitiu a sobrevivência da espécie humana. Os deuses foram criados para nos protegerem do mundo hostil e, sobretudo, de nós próprios.
Houve sempre povos que reclamaram para si favores especiais das divindades. Alguns ainda hoje o reclamam. E fazem oferendas e matam os próprios irmãos só porque interpretam de forma diferente a suposta mensagem divina. Os fanáticos andam por aí ao cheiro e são atraídos quando sentem o odor de merda e sangue misturado. Acorrem, de imediato, como hienas.
Agora que triunfámos sobre a barbárie e sobre a própria divindade, somos livres. As divindades deixaram de fazer sentido e tornaram-se desnecessárias. Somos bem capazes de tomar conta de nós próprios e dispensamos o paternalismo do criador que inventámos.
Deus não morreu, simplesmente nunca existiu como sabemos. Como sempre soubemos.
No mundo actual a religião não tem mais o papel regulador das sociedades, tornou-se um arcaísmo. Paz à sua alma.
Mas o mundo, longe de estar globalizado, está partido em pedaços. Se vivemos a era tecnológica deste lado do planeta, outras zonas existem onde a religião continua a prevalecer sobre a inteligência. Esse problema poderá tornar-se verdadeiramente preocupante a médio prazo.
O Império Romano tem sido recordado a propósito daquilo que designamos por Crise dos Cartoons. Todos sabemos como se desgregou a Ocidente como um baralho de cartas por jogar. Ao cair o poder imperial, a Europa mergulhou num período letárgico esquecendo toda a herança cultural clássica que acabou usurpada pela hierarquia cristã que veio a impor a sua lei por muitos e longos séculos.
Agora que nos conseguimos libertar, mais uma vez, do jugo dogmático e castrador da religião não podemos permitir que um bando de fanáticos venha cuspir sobre as tumbas dos que fizeram da grandeza do espírito humanista o destino da Europa.
Deus, se existisse, haveria de estar do nosso lado.

terça-feira, fevereiro 14, 2006

Somos DEVO!


A história de Abraão é exemplar. A divindade revela sadismo e mesquinhez. O homem mostra uma dimensão imbecil e crédula que todos sabemos possuir mas preferimos ignorar. O anjo cumpre o habitual papel de mensageiro e pouco mais. Já Isaac não passa de uma vítima inocente , tão relevante como a ovelha que surge vinda dos limites da imagem. Tudo para mostrar, a quem quiser ver e acreditar, onde pode conduzir a fé.

À beira do abismo, ao crime eminente. Pouco mais longe, muito mais perto.

Ao estar disposto a sacrificar o próprio filho para satisfazer uma ordem do seu deus, sem resistir, Abraão toma uma atitude próxima da do radical fundamentalista que oferece o filho em sacrifício com um cinto de bananas de dinamite. Em nome de Alá. Em nome de uma crença infundada numa entidade improvável.

Andamos a discutir questões relacionadas com a nossa liberdade individual por causa de crendices deste género? Porra, não pode ser!

Como diz a canção dos DEVO "Deus fez o homem mas usou o macaco para o fazer" e remata com a pergunta/resposta que dá título ao álbum: "Nós somos homens? Somos DEVO!"

Ora nem mais! A humanidade não merece muitos de nós e muitos de nós não merecem a humanidade. O resultado é a extinção dos orangotangos.

domingo, fevereiro 12, 2006

Sombria profecia

Quer-me cá parecer que há alguém (ou talvez alguma coisa) que anda a alimentar-se do que não devia.

Há alguém (ou alguma coisa) gulosa do mal-estar alheio, que cresce e se sente mais confortável quando a miséria avança, seja na versão material ou cultural, a miséria é para este alguém (ou alguma coisa) um pitéu saboroso.

Esta coisa (ou Alguém, com maiúscula) devora-nos a alma e atira os restos aos bichos que mantém como animais de estimação. Estou convencido que estamos perante um caso de polícia ao nível do Divino. Anda um deus qualquer, estúpido ou enlouquecido pela sífilis, a estragar ainda mais a humanidade.

Lá vai o tempo em que sonhei que o mundo estava todo ao contrário por não haver quem se interessasse pela posição relativa das coisas no Universo. Andava a estudar Geometria Descritiva no mais elevado grau de dificuldade, o que explica tal alucinação. Mas, apesar dos miolos fritos no lume brando da Geometria, havia algo de inquietante na visão dos meus sonhos.

Deus era afinal o Diabo que, com as manhas que todos sabemos possuir, nos havia convencido de ser bom e bem intencionado ao ponto de lhe chamarmos Deus do Amor e outras patetices do género. Assim se explicava tanto mal e tamanhas maldades a assolarem a tristeza deste mundo, ainda por cima premiada por multidões submissas a encherem os templos de lamentos e outras coisas semelhantes a orações rezadas num zumbido de mosca.

O mundo estava ao contrário! Na verdade, uma vez que o mundo é esférico, isso não deveria constituir surpresa nem provar rigorosamente nada de importante. A não ser que entre Deus e o Diabo a diferença resida, apenas e lamentavelmente, numa questão de posição e perspectiva.

Chiça penico, convenhamos que os meus sonhos de adolescência não foram particularmente saudáveis, mas também, perante o quadro actual, até que poderão ser considerados sonhos cor-de-rosa (desde que não sejam rosas de paixão que aí já a cor é outra!).

Sim, pois, e tal e coiso, "Venha o Diabo e escolha", "Valha-nos Deus", pátati, pátatá, a religião regressa em força para cumprir a sombria profecia de João Paulo II para o jovem século que agora vivemos.

Disse ele que este seria o século da religião.
Querem lá ver que o homem, afinal, era bruxo!

sábado, fevereiro 11, 2006

Manipulados


A manipulação das consciências alheias é uma espécie de desporto para os fundamentlistas islâmicos.
Praticam-na com volúpia e mestria.

Ao que parece, esta treta toda à volta dos cartoons dinamarqueses não passa disso mesmo: uma treta de merda! Mais do que preparado pelos fazedores de milagres mediáticos de serviço para os lados do Oriente, o embuste pegou de tal modo que nos pôs a discutir o sexo dos anjos... outra vez.

Sempre que nos aparecem nos écrans uns planos apertados mostrando uma turba de gajos enfurecidos a berrar e a esbracejar como loucos pensamos "Lá estão os árabes!"

Os árabes? Mas que árabes?
Serão palestinianos ou libaneses? Talvez sírios ou de outra nacionalidade qualquer. E que fazem eles? Estão sempre em protesto, a queimar bandeiras? Representam todo o mundo árabe? A sua razão de existir é apenas destilar veneno contra o satã ocidental? Como nos vêem eles? Serão capazes de distinguir a Dinamarca da Inglaterra ou de Portugal? O que somos nós? Uma multidão de comedores de hamburgueres, infiéis maldosos, prontos a beber petróleo por uma palhinha?

Andam a brincar com a nossa percepção da realidade e nós nem nos apercebemos como estamos a ser manipulados! Nós, deste lado, e eles, do outro. Há quem faça deste ódio, que cresce e se desenvolve como um incêndio num palheiro, o principal objectivo das suas vidas. E esses estão a alcançar os fins a que se propuseram.

Em nome de quê? No interesse de quem? Será tudo uma questão de fanatismo religioso puro e duro? Contas antigas por ajustar? A coisa ultrapassa a minha capacidade de compreensão, o que também não é grande admiração.

Arco recto

Ao ler a crónica de Nuno Crespo para o Mil Folhas sobre a Feira Internacional de Arte de Madrid, com o título Arte ou mercado?, sente-se uma leve desilusão do escriba por não haver grandes novidades.

Desde que a originalidade se tornou um atributo do objecto artístico que há uma ânsia de surpresa difícil de satisfazer. O artista é visto como um inventor de formas inéditas, de técnicas inimaginadas, uma espécie de mago conceptual mais profícuo que a própria divindade.

Este desejo do inédito resvala com frequência para um discurso plástico vago e, predominantemente, formal. Num universo desta natureza, o pintor e o escultor tornam-se anacrónicos, as linguagens e técnicas clássicas perdem consistência e arriscam-se a ser fastidiosas para quem procure com avidez a tal novidade estonteante.

Os críticos, ansiosos por encontrarem uma obra que lhes permita estabelecer um discurso, também ele, inovador, acabam a escrever no vazio, a comparar o que vêm com aquilo que viram e o que desejavam ter visto (mas que não sabem se existe ou tem possibilidade de existir).

A consciência da História da Arte torna-se demasiado presente e demasiado pesada. A tentativa de fazer História (pelos artistas) e de narrar a própria História estando dentro dela (pelos críticos) é confundida com estranheza e originalidade. Uma obra que mereça referência (um acto histórico de quem faz e de quem narra) tem de ultrapassar as barreiras do "já visto" e do "já feito". Como se fosse possível, 100 anos depois, recuperar o espírito das grandes vanguardas artísticas do início do século XX. Não é.

Só a distância permitirá construir a História. Apollinaire fez a apologia dos pintores cubistas. Hoje falamos de Picasso e Braque nas aulas de História da Arte. Um pouco de Gleizes, mais de Juan Gris. Estaremos esquecidos de alguém? Haverá justiça nestas referências? Quantos artistas foram ignorados, quantos ficaram fora do comboio dourado dos mitos da arte contemporânea? Quantos não foram suficientemente arrojados para surpreender os olhos dos que escreveram a História daquele tempo?

Todos os anos haverá uma nova Arco, carregada de artistas excelentes que ali se deslocam para venderem os produtos do seu trabalho. Arte ou mercado? Quem se preocupa com isso? Afinal de contas a arte foi (e será) sempre um mero negócio mesmo quando os artistas se transcendem, para nossa felicidade.
Quem não vende não se vê.
Quem não se vê é como se não existisse (mesmo que exista).

quinta-feira, fevereiro 09, 2006

Uma questão de fé

Curiosa a forma como um jornal iraniano pretende "responder" à provocação dos badalados cartoons com Maomé.

O anunciado concurso internacional para caricaturar o Holocausto tem veneno q.b. e vai baralhar muita cabeça por esse mundo fora.

À boa maneira dos judeus a resposta árabe é do género "olho por olho, dente por dente", neste caso é mais "cartoon por cartoon".

Estão no seu direito mas, ao responderem desta forma, não estarão a justificar aquilo que tanta indignação lhes causou?

O presidente iraniano (não consigo fixar o nome do homenzinho) aplaude a iniciativa já que, na sua elegante perspectiva, o Holocausto não passa de um mito, um embuste com a única finalidade de mandar os judeus para onde estão agora.

Embuste por embuste, mito por mito, as religiões não ganham nada quando tentam confrontá-las com a história.

Simplificando: as fotos (entre infindáveis documentos incontroversos do Holocausto) mostram com crueza e a eloquência que só as imagens possuem aquilo que foi a barbárie nazi.
Já para provar as andanças de Maomé e o seu carácter divino pouco (arrisco mesmo, nada!) há que nos garanta um rasto de verdade.

O mesmo se passa, por exemplo, com John Smith, o profeta mormon, os videntezinhos de Fátima e outros representantes desta classe profissional.

Fica-se com a fé o que, convenhamos, não é lá grande coisa.

terça-feira, fevereiro 07, 2006

Memória Visual














No último filme de Woody Allen, Match Point, a acção desenrola-se em Londres.

Escrito e realizado pelo clarinetista de óculos esquisitos, este será um dos melhores filmes que já foi capaz de engendrar.

Um argumento interessante, um conjunto de actores dirigidos com excelência e eficácia narrativa. Que mais podemos pedir para nossa felicidade?

Quem se dispuser a assistir a este filme certamente dará o seu tempo por bem empregue (se for do género de pessoas que se preocupam em não perder tempo, como se isso pudesse valorizar a nossa existência de alguma forma).

Numa das cenas fulcrais surge, por um cagagésimo de segundo, um stencil de Banksy (semelhante ao da imagem). É uma daquelas imagens que só é vista por acaso, talvez só repare nela quem já a tenha visto antes. E, no entanto, tem um significado explícito no momento da narrativa em que é incluída. Um pormenor.

Ou Allen pediu a Banksy (ou a um aderecista, mais simplesmente) para executar naquele exacto local aquele grafitti ou a escolha dos décors foi minuciosa e feliz.

Coisinhas como esta fazem a diferença. E, se Match Point já me havia impressionado positivamente dentro da sala, agora, com tempo e distância, mais me convenço que se trata de um excelente filme. Até os mongas dos críticos do Público se desfazem em estrelas e bolinhas perante a mestria do velhote.

Em que cena surge este grafitti? Só vendo.
Sabendo que esta imagem faz parte da película penso que seja impossível passar desapercebida.

Bom filme.

domingo, fevereiro 05, 2006

Metamorfose


"Os Estados Unidos também quebraram o silêncio. "Estas caricaturas são evidentemente lesivas para as crenças muçulmanas", declarou o porta-voz do Departamento de Estado, Justin Higgins, citado pela AFP. "Apelamos à tolerância e ao respeito de todas as comunidades, das suas crenças religiosas..." blá, blá blá.

Haverá limites para a hipocrisia?
Onde está o respeito proclamado quando se fecham a sete chaves prisioneiros na escuridão de Guantanamo? O que estão a fazer com aqueles desgraçados? Não consigo evitar imaginar cenas do tipo X Files.
Experiências aterradoras com cobaias humanas, como n'O Ovo da Serpente.
Porque se recusam estes matrecos a assinar os acordos respeitantes a um Tribunal Internacional?

Onde está este proclamado respeito quando se invadem países soberanos sem dizer água-vai atirando-lhes para cima com quanta merda o exército americano tem à mão de semear? Afinal de contas convém não esquecer que os EUA são o Grande Satã no imaginário islâmico, onde os ocidentais, de um modo geral, são ainda confundidos com os franj dos exércitos invasores das Cruzadas, maioritariamente constituídos por Francos.

Sendo assim, quem querem estes cordeirinhos de cauda peluda e caninos desmesurados amansar com tal conversa? Imaginam que poderão começar a atirar o odioso papel de Grande Satã para cima de outros? Para cima dos dinamarqueses, por exemplo?

Pela primeira vez, em muitos anos, as bandeiras queimadas em frente ás câmaras de filmar nas ruas do mundo islâmico não foram americanas nem israelitas. Estará a Administração Bush a imaginar ali uma fresta por onde possa escapulir-se, libertando-se da odiosa pele de Satã, numa metamorfose radiosa que possa fazer renascer os EUA numa nova pele, sedosa e sedutora, que conquiste os corações dos árabes?

Quem sabe?
Os conselheiros de Bush já deram provas de terem uma imaginação delirante.

E o querido George acredita estar investido de uma missão divina.

Lamentável

"Não farás para ti qualquer imagem nem nada semelhante ao que existe nos céus, na terra ou nas águas que ficam debaixo dela; não te curvarás diante delas, nem as servirás: porque eu, o Senhor teu Deus, sou um deus ciumento, que castiga a maldade dos pais nos filhos, até à 3ª e 4ª geração daqueles que me aborrecem; e faço misericórdia aos milhares que me amam e guardam os meus mandamentos."

Êxodo (20, 4-6)

A liberdade de expressão não é uma imagem de marca das religões. A natureza dogmática das crenças religiosas impede vozes discordantes e ameaça com terríveis castigos toda a blasfémia. A criação de imagens, como se pode constatar pela transcrição de uma passagem do Antigo Testamento, foi expressamente proibida por Deus.

Esta questão levou a violentas disputas na história do cristianismo. O triunfo dos que defendiam o papel pedagógico das imagens, como via de conhecimento para as hordas de iletrados que enxameavam (e continuam a enxamear) os templos, foi devastador no Ocidente católico e todos nós estamos bem familiarizados com as obras de arte sacra que marcam a nossa cultura e a nossa civilização.

A produção de obras de arte sacra foi um factor determinante para a difusão da fé católica apesar das reservas de algumas igrejas. Entre os ortodoxos cristãos cristalizou na representação dos ícones, com regras rígidas e supervisão apertada dos doutores da igreja. Para os protestantes o papel das imagens é muito menos importante e olhado de soslaio.

O medo da idolatria está na base de todas as reservas relativamente à produção de imagens naturalistas. A escultura, em particular, foi durante muito tempo demonizada por estar relacionada com os cultos pagãos.

Não é de admirar que a questão ressuscite, de tempos a tempos, voltando a incendiar os peitos mais fundamentalistas com o ardor da pureza da fé.

Num mundo globalizado onde a imagem é mãe de todas as coisas não há espaço para discussões serôdias como a que está a ser gerada pela questão dos cartoons dinamarqueses. Se não houvesse um fundamentalismo cego e retrógrado tão enraízado no mundo muçulmano, esta patetice só nos faria sorrir.

O problema é que esse fundamentalismo existe e toda esta historieta lamentável é aproveitada para abanar a nossa liberdade de expressão.

Os fanáticos religiosos no mundo árabe passaram à acção violenta. Multiplicam-se as agressões a embaixadas da Dinamarca e a boçalidade furiosa está à solta.

Lamentável.

sexta-feira, fevereiro 03, 2006

Cartoon

Liberdade com limites é a do pássaro na gaiola. Pode voar mas não faz mais do que saltitar do fundo da gaiola para o poleiro, dali para as grades, de novo para o fundo da prisão. Quase sempre até à morte.

Quem não compreende que a liberdade não pode ser limitada não é um ser livre. E quem não é livre tende sempre a limitar a liberdade, que é coisa alheia.

Não conheço a palavra do profeta Muhammad (paz esteja com ele). Conheço a palavra de Cristo (paz na Terra aos homens de boa vontade).

Sei que em nome de Cristo se cometeram algumas das maiores atrocidades que a mente humana foi capaz de engendrar. Mas não O confundo com aqueles que usurparam (e ainda usurpam) o Seu nome.

Vejo como também o nome de Muhammad (paz esteja com ele) serve de véu a contínuas humilhações da integridade humana e, apesar de não conhecer os fundamentos da sua pregação, estou convicto de não lhe ser feita justiça sempre que se mata e assassina invocando o seu nome.

Quando os homens se escudam com o nome de Deus ou dos seus profetas para darem largas à torpeza e à maldade que lhes vai na alma e corre nas veias, estão a emporcalhar inapelavelmente a palavra que dizem respeitar. Acabam por transformar Deus na gaiola e os homens em canários sem pio.

Só não compreende isto quem não percebe a própria incapacidade de ser livre.

quarta-feira, fevereiro 01, 2006

Escuteiros do Amor

Parece que há quem nos ofereça o coração a troco de nada. Há quem nos queira tanto bem que somos inacapazes de perceber o alcance de tão inexplicável paixão. Os problemas começam a surgir quando insistimos em recusar a oferta. Mesmo que o façamos educadamente, como nos ensinaram as nossas avós.

O ofertante insiste com o sorriso benemérito a descair ligeiramente para o amarelo. Que não, não queremos, que dispensamos, basta-nos bem o coração que temos e os outros que já conquistámos, mesmo os que entretanto fomos perdendo pelo caminho. Tá-se bem assim, muito obrigado e tal... mas o outro começa a dar sinais de impaciência. Espeta-nos um coração sangrento defronte do nariz e faz aquele gesto que os nossos antepassados navegadores faziam quando estendiam uma mão cheia de contas coloridas em direcção aos aborígenes que iam encontrando por aí. Eu não estava lá mas vejo o gesto. Um empurrãozinho do pulso com o cotovelo cúmplice, entre o hesitante e o esperançoso.

Fica lá com essa merda, ó matreco, é o que me passa pela cabeça, mas a sombra da minha avó não me permite tal indelicadeza. Começo então a pensar na possibilidade de aceitar aquela coisa, embora não esteja muito bem a ver o que possa fazer com ela. Só para dar uma alegria ao escuteiro mais à puta que o pariu, que de santo nem a paciência tenho. Meço um gesto de hesitação e ponho-o em prática. Noto uma esperança imediata a bater no peito límpido do meu interlocutor. Estou quase a receber na mão o palpitante pedaço de asno que me é tão insistentemente ofertado.
No último momento retiro a manápula, viro costas e afasto-me.
Que porra, sou alguma instituição de solidariedade social? Se o gajo quer fazer caridade que vá para um movimento cívico ou outra merda qualquer que esteja a dar.

Sinceramente, ó meus caros compinskas, não há pachorra para os escuteiros do amor nem para as suas mensagens de esperança num mundo melhor, repleto de poesia encadernada em capa dura com lombada forrada a pele de camelo.

Vão chatear o Camões!