segunda-feira, setembro 27, 2010

Saudade da ignorância


Um homem vai entrando a (mais) velho e a sabedoria cola-se a ele como chiclete na sola do sapato. É coisa suja, peganhenta e nem sempre desejada. Parece que faz parte do pacote, quer queiramos quer não ela está ali para nos acompanhar o resto dos nossos dias.

Pode parecer presunção da minha parte (provavelmente é isso mesmo) mas a verdade é que a sabedoria que a idade nos oferece sem que lha tenhamos pedido é daquelas coisas que incomodam mais do que confortam. Isto por ser oferecida, assim mesmo, sem pedido nem nada que justifique tanta simpatia da vida que vivemos e que vai cumulando a nossa existência de certas mordomias algo duvidosas.

Há quem diga que esta sabedoria grátis é coisa de puta velha, afirmação que me parece ofensiva para as putas, principalmente se forem velhas, pois imagino que a sabedoria por elas acumulada seja de natureza bem diversa e, de longe, mais custosa de acumular.

Mas de que é feita esta sabedoria? É feita de perceber quando devemos calar a boca mesmo que nos apeteça rebentar em gritaria. Tem a ver com a capacidade de ler o rosto dos outros como se fosse um livro infantil, feito de frases simples e tão curtas que as podemos ler de olhos quase fechados. É feita de voltarmos a encontrar uma situação que já vivemos mesmo que venha mascarada de coisa nova. Enfim, chamamos sabedoria à experiência, o que estaria correcto se a vida fosse uma ciência e o método científico se pudesse aplicar aos jogos do amor ou às guerrilhas constantes dos ódios de estimação.
Há dias em que sinto saudades da ignorância e me faz falta a imbecilidade própria da maravilhosa ingenuidade. Como disse Picasso "aprender não foi difícil, difícil foi desaprender [a desenhar]" (citação algo livre). Se Deus quisesse, gostava de desaprender a viver. Para voltar a sentir coisas boas que já esqueci como eram.

sábado, setembro 25, 2010

Imaginar mais (ler após o post anterior)


Por muito sofisticados que sejamos, muito avant-la-lettre, cool ou vanguardistas que nos imaginemos, quando plantados no jardim suspenso de uma galeria de arte ou na estufa fria de um museu, perante um objecto em exposição, o que queremos é entrar nele e, para que tal aconteça, precisamos de comunicar.

O mesmo acontece com aqueles de entre nós que são botas-de-elástico, ou brutos, ou pouco letrados. O problema é semelhante, as formas de o equacionar ou de lhe dar resposta é que variam. Muito ligeiramente.

Esse problema que se nos coloca é: como comunicar com um objecto inanimado? Como estabelecer contacto com uma coisa que não respira como nós respiramos, que não tem sede nem fome como nós temos? Uma coisa que é pouco mais do que isso mesmo, uma coisa, mas à qual reconhecemos capacidade comunicativa, apesar da sua aparente inércia física?

Há objectos que contam uma história à boa velha maneira dos clássicos. Uma história conhecida de um grande número de seres humanos (a vida de Cristo, o Pinóquio...) numa sequência com princípio, meio e fim, que se lâ da esquerda para a direita, de cima para baixo, como quem lê um texto. A postura do observador é quase passiva.

Outros objectos surgem um pouco mais complicados. A sequência de leitura é a mesma mas a narrativa não é tão evidente, ficamos a matutar em que raio de história é aquela! Seguimos a ordem de leitura mas somos obrigados a voltar atrás, a tentar leituras diferentes, de baixo para cima e de trás para a frente. Acabamos a inventar um sentido para o bjecto, mais do que a descortinar o seu eventual significado oculto. O observador toma uma postura activa.

Finalmente há aqueles objectos que escapam por completo aos cânones de comunicação estabelecidos e nos deixam às voltas, como ratos de laboratório num labirinto complicado. Não percebemos mas podemos tentar explicar o que o objecto nos sugere. Não fazemos ideia do que passou pela cabeça ao criador da coisa mas somos capazes de imaginar mais do que a impossibilidade de compreender. Somos capazes de falsificar sinceramente e com verdade uma quase-mentira que se nos forma no espírito.
O observador completa o objecto, recriando o seu significado.

Nunca me canso de reflectir sobre esta categoria fenomenológica e sei que ando em círculos. Mas sinto que o raio do círculo é cada vez menor e me aproximo gradualmente do centro. Quando lá chegar (ao dito centro) pode não acontecer nada. O mais certo é vir a perceber que me encontro num outro círculo, ainda mais amplo e ver-me obrigado a recomeçar. É a vida.

sexta-feira, setembro 24, 2010

Imaginar


Zeuxis é considerado um dos maiores pintores de todos os tempos mas essa fama é baseada na leitura de textos escritos por quem teve oportunidade de ver trabalhos seus já que, desde há séculos e séculos, não existem obras deste artista grego que possam ser admiradas.

Relatos antigos garantem que Zeuxis enganou um casal de passarinhos com a sua pintura de um cacho de uvas mas terá sido ludibriado por um outro extraordinário pintor, Parraso de seu nome, tão invisível aos olhos da eternidade quanto ele. (ver aqui a narração da anedota de Zeuxis e Parraso).

É notável que a palavra escrita tenha conseguido imortalizar as qualidades de um artista plástico, contradizendo o ditado que nos garante que "uma imagem vale mais que mil palavras". Se tivermos em linha de conta que este ditado é oriental (penso que de origem chinesa) encontramos aqui uma distância considerável entre o pensamento asiático e o europeu.

Isto vem a propósito da constatação de um facto: quanto mais abstracta é uma obra de arte, mais profíquo é o discurso gerado para a descrever e classificar. Perante a estranheza de uma pintura como "quadrado preto sobre fundo branco" do suprematista russo Malevitch, até os leigos têm um monte de palavras a dizer e são capazes de arquitectar discursos elaborados nos quais manifestam as suas opiniões. Os mesmíssimos leigos, perante, por exemplo, uma pintura de Van Eyck, esquivam-se a manifestar uma opinião, por mínima que seja.

Verifico este fenómeno quando dou aulas sobre pintura onde os leigos são os meus alunos. Quanto maior a ausência de narrativa na tela, maior a capacidade de gerar discurso entre a plateia. Como se a simplicidade uma imagem seja capaz de gerar palavras de uma enorme complexidade.

segunda-feira, setembro 20, 2010

Recuerdos


Banksy em Exit Trough The Gift Shop, o anonimato mantém-se

Um tipo muita porreiro fez-me chegar às mãos o filme de Banksy, "Exit Trough The Gift Shop". Trata-se de um objecto muuuuiiiito interessante sob diferentes aspectos. Várias coisas me impressionaram mas o que acabou por se sobrepor após a 1ª visualização (ainda não fiz a segunda) foi uma certa perspectiva sobre a forma como surge no espaço planetário um artista contemporâneo e os mecanismos de validação da sua obra.

O filme é um documento espectacular e não lhe faltam reviravoltas inesperadas, personagens carismáticas, traição, inveja e sucesso inesperado. Conta-nos a história de Thierry Guetta, ou Mister Brain Wash, uma autêntica Cinderela da street art, de quem Banksy acaba por ser, inadvertidamente, a fada madrinha, a fada boazinha, a fada capaz de transformar uma abóbora em coche de princesa com princesa lá dentro e tudo.

Mas o filme tem mais do que isso, muito mais. Quem quiser vê-lo terá de o procurar. Se for até ao Carapau Staline é bem possível que se safe graças ao tal Tipo Muita Porreiro.

sexta-feira, setembro 17, 2010

Matinal


Hoje, quando acordei, dei por mim a pensar que o meu maior receio é deixar de ter receio. Pareceu-me estranho e tentei vasculhar no sono que deixara na almofada a razão deste pensamento mas, nada.
Aquilo ficou-me suspenso na cabeça como o piar de um passarito e percebi que o Receio da minha manhã era como um filhinho dócil do Medo e da Esperança, aquele (ou aquilo) que impede o mundo de adormecer definitivamente no seu leito de morte. Isto não me confortou mas esteve longe de me inquietar. O dia decorre normalmente.

domingo, setembro 12, 2010

A democracia enquanto barraca


Os recentes motins populares em Moçambique motivados pelos aumentos de preços de bens essenciais deixaram-me a pensar em coisas feias que, de vez em quando, me assaltam o espírito. Por aqui, alguns meios de comunicação social, referem-se a esses motins como "A Revolta do Pão".

A resposta das forças policiais foi violenta, resultando um número de mortos e feridos difícil de quantificar (10 mortos, 13 mortos, quantos mortos?). Foram disparadas balas reais e de borracha contra os manifestantes, entre os quais se contavam muitas crianças. Esta situação é uma imagem cruel de desespero.

Desespero dos que se manifestam e desespero dos que matam. É como se a sociedade estivesse ferida, rasgada por um golpe tremendo, uma chaga aberta, impossível de cicatrizar. A chaga que resulta do abismo entre pobres e ricos.

Quando a miséria ganha contornos de ser insuportável os pobres deitam-se à rua em protesto. Mas há uma normalidade social que não se compadece por aí além com a sua pobreza e que é necessário manter. Vai daí, lançam-se sobre os pobres as forças de segurança que varrem das ruas aquela miséria em forma humana. Mas que segurança defendem essas forças policiais? A segurança de quem ou de quê?

Também o tecido social português tem feridas sanguinolentas que não cicatrizam e não param de deitar pus e que cheiram mal. Mas os miseráveis vão sendo mantidos numa situação controlada. Enquanto não forem uma maioria terão dificuldades em provocar distúrbios como os que se verificaram em Moçambique.

Há em Portugal situações de desigualdade e de impunidade dos poderosos que são inaceitáveis num estado democrático mas, doa a quem doer, a Democracia parece ser assim mesmo. Há uma Democracia ideal, que nos ensinam na escola, e uma Democracia real que não se parece nada com a ideal, a caricatura de Democracia que vivemos no nosso quotidiano.

O caso de Moçambique mostra como o poder central eleito democraticamente, quando é incapaz de promover a coesão social, se socorre das forças policiais para meter as coisas na ordem. É assim em Moçambique e é assim em qualquer parte do mundo. Vivemos naquilo que poderíamos chamar de Democracias Policiais, onde a polícia está sempre do lado dos socialmente mais fortes.

A injustiça social é um dos traços mais evidentes deste nosso modo de vida. Do lado de cá, do lado onde vivo, não faltam bens de consumo nem capacidade deles usufruir. Enquanto andarmos direitinhos sabemos que a Força nos protege. E do lado de lá?

Fico a pensar: quanto tempo vai durar este equilíbrio precário? Enquanto continuarmos a gerar hordas de miseráveis e de excluídos estamos a pôr em risco a paz social. Cada vez mais. Poderá algum dia existir uma distribuição de riqueza tal que nos permita dizer que vivemos numa democracia como aquela que gostamos de imaginar? E, se esse tempo nunca chegar, irá explodir uma bomba atómica social que derrube este arranha-céus democrático com fundações de barraca precária?

sábado, setembro 11, 2010

I'm Your Man

The Man


Noite de 10 de Setembro de 2010, Leonard Cohen actuou ao vivo no Pavilhão Atlântico, em Lisboa.

É um homem com 76 anos que lidera a banda. Um homem com o dom da uma voz dourada, como diz a canção "The Tower of Song".

O som, o concerto, perfeito.

Ele ajoelha-se com frequência para cantar e agradece aos seus músicos e ao público com profundas e sentidas vénias, descobrindo os cabelos brancos. Há uma nova pele para uma cerimónia antiga.

A coisa funciona como uma espécie de banho perfumado em água tépida. É lindo. Foi lindo.

Há coisas que ultrapassam o óbvio.

segunda-feira, setembro 06, 2010

Mania das grandezas


Afinal de contas Portugal existe no universo artístico internacional. Se dúvidas houvesse, a apreensão de um número interessante de falsificações de obras (ler aqui) assinadas por grandes nomes da História da Arte mostra que não andamos a dormir e que a nossa condição de país periférico nao nos impede de figurar no panorama da grande vigarice. Tem o seu glamour...

"Até agora, a maioria dos casos de falsificação de pintura detectados em Portugal era de artistas portuguesas ou de alguma forma relacionados com Portugal", indicou o inspector da PJ João Oliveira.

Ouvi declarações do referido inspector num noticiário televisivo e notei-lhe uma certa tremura na voz, uma emoçãozinha lá em baixo, vinda do coração. Também eu partilho dessa emoção. Ter um Picasso falso a rondar as leiloeiras é muito mais emocionante do que ter por aí uma falsificação de Maria Helena Vieira da Silva.

Somos assim, ficamos deleitados com a grandeza das coisas que acontecem no nosso país. Seja para o bem ou seja para o mal, o que interessa é que sejam grandes. Note-se que a notícia referida conclui dizendo que "Do conjunto de quadros apreendidos, de várias dimensões, destacam-se seis obras com a assinatura de Picasso, alguns desenhos e outras pinturas sobre papel, todas elas presumivelmente falsas". Note-se que Miró ou Rubens são aqui diminuídos perante o brilho das falsificações do mestre cubista. É lindo.

domingo, setembro 05, 2010

Ilusão


Fumar dá muito estilo! Uma pessoa recosta-se na cadeira reluzente sob o sol na esplanada. Segura o cigarrinho, apoiado num cotovelo em ângulo correcto e calculado conforme as regras da boa exportação de imagem individual. Os olhos semicerrados fixam um ponto indefinido no horizonte recortado pelos prédios altos, horizonte enfioscado nas janelinhas em filas ordeiras e sincopadas.

O movimento de trazer o cigarro de volta aos lábios é muito lento. O beijo para aspiração do fumo parece-me poético, coisa profunda. Continuo a olhar as duas pessoas que fumam lá fora, ao sol. São um homem e uma mulher, em mesas separadas. Comportam-se com majestade, parecem alheados das coisas do mundo. O fumo que expelem, fazendo gestos peculiares com os lábios, mistura-se no ar e desaparece, como um sonho que quase ganhou forma palpável mas não resistiu ao calor.

As poses dos dois fumadores têm muito estilo. Não aguento mais e saio para, também eu, fumar um cigarro. Acendo-o e experimento os gestos correctos. Mas não, não é uma questão de estilo. As coisas encaixam mas não ficam perfeitas. Por muito bela que seja a imagem projectada ou imaginada ou lá o que é, trata-se de puro vício. Nada mais, nada menos que vício. Como viver.

quarta-feira, setembro 01, 2010

Camerons Diaz aos pontapés



Ir ao cinema é um acto social do mais banalzinho que pode haver. Trata-se, toda a gente está cansada de saber, de um espectáculo de massas, acessível e democrático. Não tem nada de especial. Não é elitista nem obriga o espectador a esforços desumanos para se sentar na sala escura e deixar-se ir, filme dentro, com o passar dos minutos. Se, porventura, o filme ultrapassa os limites do suportável ou fica aquém das expectativas, o espectador pode sempre abandonar a sala que ninguém lhe levará a mal por isso. Mas, fiquei a sabê-lo ontem, abandonar a sala exige tanta ou mais inteligência do que escolher o filme adequado às nossas aspirações ou capacidades.

Situemos a acção. Fui com a minha filha ver The Box, escrito e realizado por Richard Kelly que conhecíamos de Donnie Darko, um filme de 2001 que ocupa um lugar confortável na nossa prateleira dos DVD preferidos. Deslocámo-nos a uma das salas ZON do Almada Fórum como é frequente acontecer. Encontrámos os amigos do costume, uma coincidência que se arrasta há muitos anos e ocupámos os lugares na sala. O filme começou.

Como seria de esperar e apesar de ter Cameron Diaz como protagonista, The Box é um filme denso, estranho e, por vezes, desconcertante. Visualmente de uma correcção impoluta, Richard Kelly parece gostar de construir narrativas abstrusas, repletas de personagens bizarras. E é o que faz.

Atrás de nós havia algumas pessoas que, a partir de uma certa altura, começaram a falar alto. Eram vozes femininas ponteadas por outras, mais grossas, imagino que saídas de fundas gargantas masculinas. Como ouço um pouco mal, não era capaz de distinguir o que diziam, apenas sentia um constante martelar de vozes afectadas. Irritante, no mínimo. De tal forma que a minha filha se voltou para trás e pediu, com modos mais correctos do que a situação exigia, que se calassem ou, pelo menos, falassem mais baixo. Em resposta as personagens começaram a falar ainda mais alto, pelo menos foi o que me pareceu. Voltei-me para trás e, num relance, vi um par de Camerons Diaz com baldes de pipocas e telemóveis em punho, atarefadas com diversas actividades nas quais a projecção no écrã não parecia incluída. Senti uma irritação profunda e propus à minha filha que mudássemos de lugar (a sala estava para aí com um terço de ocupação).
Levantámo-nos e, perante a interrogação dos nossos amigos, ainda tive tempo de dizer uma frase deselegante que não sei se chegou aos destinatários, qualquer coisa como "estas gajas não se calam". Demasiado brando, reconheço.

Sentados nos novos lugares assistimos ao filme. Mas, atrás de nós, um jovem casal, também ele munido dos respectivos caixotes de pipocas, dava largas á sua estupefacção perante a estranheza do filme. Lá vimos a coisa até ao fim mas, não pude deixar de pensar que, tal como há escalões etários que classificam os filmes, também deveria haver avisos do género: "não aconselhável a pessoas estúpidas" ou "interdito a amantes de comédias românticas", só para dar dois exemplos.

O meu amigo, que ficou no lugar que eu abandonara, disse-me que, durante o intervalo, as Camerons Diaz comedoras-de-pipocas haviam comentado o facto de estarem à espera de um filme completamnete diferente, algo mais na linha de outro filme com Cameron Diaz e Tom Cruise, em exibição numa sala ao lado. Acção, comédia e aventura, era o que elas queriam e saíu-lhes negrume, complexidade e depressão profunda. Não admira que cacarejassem como galinhas tontas durante todo o tempo que o filme durou. Só me pergunto porque porque razão não abandonaram a sala e a única resposta que me parece plausível é que eram demasiado estúpidas para pensarem nisso.

Demasiado estúpidas para saírem e demasiado imbecis para compreenderem a sua profunda estupidez. Elas e os parolos que as acompanhavam.