Não há memória de tantos heróis destruídos num tão curto espaço de tempo. Cada dia que passa surge mais um ciclista a confessar o seu crime: sim, consumi substâncias proibidas! Meu Deus, não escapa um? Sem as "tais" substâncias poderão estes atletas aguentar as circunstâncias tenebrosas em que disputam certas etapas?
Aqui há uns anos atrás fui à Serra da Estrela assistir à célebre subida da Torre, a mais desumana das etapas da Volta a Portugal em bicicleta. É o ponto mais alto de Portugal e, até de carro, cansa lá chegar, quanto mais montado numa bicicleta, a tentar pedalar mais, com mais força e mais depressa que todos os outros!
Os espectadores alinhavam-se nas bermas por ali acima, procurando sombras onde as houvesse, beberricando aguinhas ou belas cervejolas refrescantes, mantidas no frio de características geleiras de plástico azul. O calor apertava e o sol rebentava num céu tão brilhante que nenhuma nuvem se aventurava a incomodá-lo. Lá estavamos nós, os espectadores, à espera que surgissem os heróis das bicicletas.
Quando surgiu o primeiro foi uma festa. O povo enlouqueceu batendo palmas e gritando. Uns atiravam água, outros, vermelhos de excitação, faziam caretas horrendas de incentivo, grunhindo palavras indecifráveis. O ciclista puxava a sua máquina numa imagem de esforço como nunca antes tinha visto. Era todo músculos, esforço e potência. Quanta força! Devagar, que a subida é ali muitíssimo íngreme, passou por mim e quase lhe senti o bater do coração, um bombo a troar-lhe no peito, a fazer tremer o solo de emoção. Impressionante.
Mais atrás outro, mais outro e por ali fora, espaçados, sós ou em pequenos grupos, os gloriosos corredores sucediam-se. Máscaras inacreditáveis, esgares impossíveis, pareciam retratos de Bacon com vida, sobre corpos sem limite. As veias, grossas como amarras de navio, saltavam dos braços, dos pescoços, das pernas, nunca vira nada assim na minha vida e não me lembro de ter voltado a ver nada semelhante. Havia quem implorasse um empurrãozinho, outros agarravam-se discretamente nas janelas dos carros de apoio. Os últimos eram os mais extraordinários, à beira da explosão, literalmente, pareciam desejar que o mundo se evaporasse de súbito, que aquele ar quente e denso como uma tigela de sopa se abatesse sobre a Serra e a fizesse desaparecer para sempre.
Depois daquela exibição de inumanidade, descemos uns quilómetros para assistirmos à descida dos corredores. Se tudo o que sobe desce pode dizer-se que uma bicicleta desce ainda mais depressa. A descida era simplesmente alucinante. Os corredores vinham numa velocidade perigosa por ali a baixo, gritando a plenos pulmões para as pessoas que assistiam nas curvas da estrada. Vuuuum, passavam como bólides animais numa gritaria insana, o povo excitado saltava e gritava também, batendo palmas, esperneando e esbracejando, como se executasse uma estranha dança ritual, como se tudo aquilo fizesse parte de uma celebração pagã cujos contornos mais particulares me escapavam completamente. Fiquei exausto só de assistir. Não repeti a experiência mas nunca mais esqueci as caras daqueles homens ao chegarem ao topo da Torre.
Nos dias que correm estes heróis confessam que tiveram de consumir drogas maradas para conseguirem realizar aqueles feitos extraordinários. Do primeiro ao último classificado imagino que todos eles tivessem necessidade de tomar algo que os levasse até ao fim. Um simples ser humano não tem capacidade de fazer aquilo. O ciclismo, em si, não me parece possível sem o recurso a drogas. Drogas potentes, ainda por cima.
Os maiores campeões eram, afinal, trapaceiros que consumiam substâncias proibidas para poderem ser assim, campeões. Uns após outros vêem os títulos serem-lhes retirados. Os que antes os aplaudiam olham-nos agora de soslaio. Apeados dos seus pedestais tornaram-se mortais comuns, perderam a aura divina. Será isto justo? Afinal de contas pedia-se-lhes que fossem sobrehumanos e eles foram-no. Sabe Deus a que preço.
A pressão para serem melhores, para baterem recordes, para brilharem nas televisões e nas revistas com fotos coloridas do seu esforço, levou-os a cometer actos meio loucos. Mas, a maior loucura, foi sempre a de se sentarem naquelas maquinetas e lançarem-se para a frente, numa corrida para super-homens.
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