sexta-feira, março 11, 2022

Isolamento

     As coisas normais já não faziam sentido. Sentado numa esplanada manhosa olhava os carros que rolavam na rua alcatroada com se fossem barcos deslizando nas suaves águas do rio. Uma cerveja fresca, outra, uma mijadela na casa de banho. Enquanto lavava as mãos olhou-se no espelho.

    A face reflectida pareceu-lhe estranha, pouco familiar. Deveria ser ele próprio mas, de um modo subtil, era uma outra pessoa. Os traços faciais permaneciam inalterados mas aquela expressão... parecia-lhe de uma outra pessoa. Tirou dois toalhetes de papel e secou as mãos o melhor que foi capaz. Saiu para a rua.

    Os carros continuavam a rolar, uma chuva miudinha ia molhando tudo incluindo os tolos. Caminhou sem destino prévio sabendo que, quando chegasse a algum lado, estaria acompanhado por aquele novo habitante que transportava dentro de si. Nunca mais se sentiria isolado.

quinta-feira, março 10, 2022

No país da ditadura

     Sei que a minha opinião é manipulada. Não sei se essa manipulação é deliberada ou se decorre,inocentemente, do facto de eu ir recolhendo dados de forma mais ou menos aleatória que são filtrados por agências noticiosas antes de me serem fornecidos. Este processo resulta confuso e permite-me criar uma visão dos acontecimentos muito pessoal e muito pouco objectiva. Eu sei que é assim e sei que é assim com todas as pessoas que, como eu, vivem a sua vida num lugar pacífico como é Portugal.

     Tenho uma nítida percepção da fragilidade das minhas opiniões. Talvez por isso não as defenda de forma particularmente apaixonada; até porque é frequente que novos dados alimentem dúvidas que vêm inquietar as minhas pseudocertezas. A dúvida alimenta-me o quotidiano.

    Apesar de tudo, adoro uma boa discussão. As melhores discussões são as que mantenho com pessoas que têm a mesma postura que eu, pessoas capazes de duvidar de si próprias, capazes de introduzir novos dados na discussão, por vezes de forma caótica, pessoas capazes de deixar vaguear o raciocínio até chegarem a lugares inesperados, formulações imprecisas, pensamentos imperfeitos; pessoas para quem tudo o que é necessário é que a discussão continue.

    Quando alguém atinge o estado petrificado da certeza absoluta, quando alguém está convencido de que a sua perspectiva do mundo não admite qualquer tipo de dúvida, não há discussão possível. Quando isso acontece estamos no país da ditadura.

terça-feira, março 08, 2022

Um mundo pior

     Penso que queria falar de outra coisa, não tenho bem a certeza. Não tenho a certeza sobre o que queria falar nem se aquilo que vou dizer é ou não acerca de uma outra coisa, acerca de um assunto diferente. A guerra, a guerra, a guerra, não nos sai da cabeça e aos ucranianos não lhes larga o pêlo. Confuso? Também acho.

    Desde que a guerra na Ucrânia estalou penso de vez em quando no que aconteceria se Trump ainda fosse presidente dos EUA. Ele diz que estivesse ele de cu postado na cadeirona da Casa Branca, Putin não se atreveria a invadir o país vizinho. Tretas.

    Trump vai dizendo as maiores enormidades sem que lhe caia a peruca. Como não conseguiu torcer por completo o mundo em que vivemos, criou a sua própria rede social onde a verdade é  o que ele quiser. Desse lugar imponderável não tenho tido eco, já dos seus discursos "live" tenho lido ou ouvido isto ou aquilo (ver aqui últimas enormidades). É aterrador imaginar que esta besta poderá ser reeleita dentro de alguns anos.

    Peço-te agora, amigo leitor, que faças um pequeno exercício masoquista. Imagina o mundo dentro de 3 anos. Putin e Xi Jinping serão líderes dos seus países (a menos que Deus exista e resolva atirar-lhes uns raios que os partam). Kim Jong-un continuará a reinar na Coreia do Norte. Nas arábias nada mudará. E, cereja no topo do bolo, um Trump reeleito nos EUA.

    Voltando ao início deste post, não sei se imaginar isto tem qualquer tipo de relação com a guerra na Ucrânia. Sei que tem a ver com um mundo pior, um mundo muito pior...


domingo, março 06, 2022

A guerra é a guerra

    Crime de guerra? O que pode ser isso? A guerra, em si própria, é o maior de todos os crimes. Um “crime de guerra” faz pouco ou nenhum sentido. O que esperamos de soldados que entram em combate? Que respeitem o inimigo que desejam matar? “Desculpa lá inimigo, eu não queria fazer isto mas prometi lealdade ao meu país, ao meu líder, ao meu povo, prometi lealdade a tudo menos a mim próprio, vou matar-te mas, acredita, faço-o terrivelmente contrariado.” PUM!  

    Se um soldado assassinar um civil a tiro é um crime deliberado. Se matar uma mão-cheia de civis disparando um míssil transviado teve azar. Simplesmente. 

    Anuncia-se que há pessoal do Tribunal Penal Internacional a viajar para a Ucrânia na tentativa de recolher provas de possíveis crimes de guerra. Muito sinceramente parece-me a coisa mais inútil de entre o rol interminável de coisas inúteis relacionadas com a guerra. Com esta ou com outra qualquer. O que se espera? Levar a tribunal os responsáveis por mais esta carnificina? Ponham o Putin na fila, há mais uns quantos assassinos em massa à frente dele mas jamais algum será julgado.      

    A força exerce-se sobre os fracos.

sexta-feira, março 04, 2022

Culpa

     Não, não! Não era aquilo que havia imaginado. Tudo correra mal e o resultado vergonhoso estava ali, diante dele, como uma cicatriz indisfarçável, impossível de ignorar. O que fazer agora? Como explicar a quem quer que fosse os tortuosos caminhos que o haviam conduzido até ali, até ao desastre absoluto?

    Arrepelou os cabelos puxando-os para a nuca, sentiu uma transpiração miudinha, um rubor que não conseguia perceber: vergonha? Fúria? Largou o corpo numa estranha dança toda feita de gestos tensos, braços para um lado, pernas para o outro. Agachou-se. 

    No chão, entre areias e poeiras, um carreiro de formigas executava alguma tarefa conjunta no seu característico passo apressado; "putas das formigas!" pensou.

    E destruiu o carreiro, pisando, saltando, pontapeando, todas as formigas foram exterminadas. Enquanto limpava o sarampo aos insectos na sua demência insecticida alheou-se da angústia que sentia. Por momentos imaginou que tudo estava resolvido. Rapidamente se apercebeu que não, que estava tudo exactamente na mesma. A culpa fora sua.

quinta-feira, março 03, 2022

Ser pelos fracos

    As reacções à guerra na Ucrânia têm estranhos contornos. As pessoas vão-se dividindo, umas a favor, outras contra, creio que poucas ficarão indiferentes. Há uma certa necessidade de declararmos a nossa posição e, nesta guerra, talvez por ser na Europa, poucos são os que não escolhem um dos lados. A neutralidade tem aspecto de vaca magra.

    Pessoalmente sinto uma profunda aversão em relação a Vladimir Putin, já várias vezes declarada aqui no 100 Cabeças. Quanto aos líderes ucranianos não posso dizer que morra de amores por eles mas não consigo ficar indiferente à agressão de que estão a ser vítimas. Haverá muitos telhados de vidro sobre o território da Ucrânia, acredito piamente, mas como aceitar a brutalidade agressiva do urso russo? Nesta guerra tomo o lado dos mais fracos, como sempre. Sou pelos fracos.

    A forma como os meus amigos comunistas se enfileiraram ao lado do carrasco russo deixou-me incomodado. Agora vêm dourar a pílula, jurando a pés juntos que são contra a guerra (serão pacifistas?) que nunca apoiaram a passagem do rolo compressor da máquina guerreira de Putin pelo território ucraniano, etc. e tal. Mas a sensação que fica, porventura ampliada pelos mass media, é a de que se trata de jogo de cintura tentando fugir com o rabo à seringa. O ódio (tal como o amor) à NATO faz razia no bom senso.

    Nestas coisas há muita fé à mistura. Precisamos de acreditar numa narrativa que nos é oferecida. As questões que colocamos dificilmente obtêm respostas inequívocas, caem sobre nós palavras inflamadas, pancadas no peito e vozearia tonitruante. Ficamos impressionados, tendemos a acreditar. Mas não sou capaz de deixar de pensar que em estado de guerra, tal como na religião o reino do céu, é aos pobres de espírito que está prometida a verdade.

segunda-feira, fevereiro 28, 2022

Dos monstros

    Os monstros não são  apenas aqueles que te querem comer; os monstros são também aqueles que te desprezam mas te lambem com volúpia.

sexta-feira, fevereiro 25, 2022

A matrioska

     E pronto, está feito, Putin deu ordem de invasão da Ucrânia. A guerra regressou à Europa. Incomodam-me aqueles que tentam encontrar uma justificação para este acto tresloucado. Nada justifica que se dê início a uma guerra.

    Putin argumenta com neonazis na Ucrânia, ele que apoia todos os neofascistas que vão emergindo no interior dos países da União Europeia. Se não fosse o cinismo da personagem até poderia ser argumento para uma comédia de mau gosto.

    Talvez a ambição de Putin seja mais complexa do que apenas dominar a Ucrânia. Talvez ele queira criar uma sucessão de pequenas rússias, Europa fora, dominadas pelos seus admiradores fascistas. Uma espécie de matrioska de onde vão saindo putins cada vez mais pequeninos, escondidos dentro do grande Putin, o guardião da ordem e da moral histórica.

    A paz levou uma tremenda bofetada.

quinta-feira, fevereiro 24, 2022

(des) Informação

     Não há como fugir ao tema do momento: a iminente guerra na Ucrânia. Os meios de comunicação social já vão deixando em plano secundário questões como a pandemia, o racismo latente ou a ausência de Governo que se veja. Importa a guerra, a guerra, a guerra!

    Até aqui temos assistido à guerra da informação (mais propriamente, da desinformação). O cidadão encontra-se num fogo cruzado de notícias, opiniões, factos e factóides, reportagens em directo do local onde a coisa aquece; todos o ângulos são analisados, todos os sinais são interpretados, nada parece escapar ao olhar clínico de tanta gente entendida. A metralha assobia à volta das nossas cabeças.

    Assisto a tomadas de posição cada vez mais acaloradas. Amizades são postas em risco porque Putin é um autocrata ou a NATO uma organização ao serviço do imperialismo americano, como se uma coisa ou outra fossem justificação para uma guerra. Lá, na Ucrânia, vai haver mortes violentas, sofrimento atroz, a civilização degradar-se-à um pouco mais, os nossos sentimentos mais básicos e primários, os nossos reflexos reptilianos, terão expressão palpável.

     Toda esta discussão me enfastia e desinteressa. Por cá as pessoas continuam comodamente sentadas discutindo através dos computadores (já nem se encontram na tasca para beber um copo e pôr a conversa em dia), todas pretendem ter razão, fazer valer o seu ponto de vista, acreditar piamente na verdade que construiram. Por lá decerto não é bem assim.

terça-feira, fevereiro 22, 2022

A Grande Puta

     A Grande Puta está de regresso. Ei-la, envolta nos seus cinco opacos mantos: inocência, justiça, castidade, beleza e terror; a guerra avança, festiva, para o coração da Europa. Havia saudades.

    Todos os que podiam evitá-la parecem desejar a sua presença, fazem-lhe a corte, mostram-lhe os dentes ora em sorrisos abertos ora em esgares assustadores. A Grande Puta está feliz e pavoneia-se nos meios de comunicação arrastando atrás de si legiões de imbecis que pretendem saber ao que ela vem, o que a motiva. Cavam-se trincheiras, escolhe-se o lado que se há-de defender. A Grande Puta ri-se.

    Nada a fazer, o mundo é dominado por mentecaptos, adoradores da deusa Economia, mãe do bastardo Dinheiro, essa divindade menor no panteão mas não menos adorada pela populaça babosa de raiva e cega pelo esplendor da bestialidade que a anima.

    A Grande Puta está de regresso. Nada de bom podemos esperar.

sexta-feira, fevereiro 18, 2022

Em fuga do jardim do Marajá

      Fugir da normalidade ou fugir em direcção a ela? Onde está a fronteira, não a vejo!? Vagas sensações semelhantes a recordações de sonhos assaltam-me o peito, enrolam-se-me no cérebro. Não sei se também te acontece, acordado leitor, estar por vezes assim, num momento em suspensão, nem cá nem lá, talvez nem mais nem menos. Não sei se também sentes esta semelhança entre o sono e a vigília, talvez mesmo entre a vida e a morte.

    Estes momentos têm uma duração tão curta, são de tal modo escorregadios, que não consigo nunca enquadrá-los devidamente. Não sou capaz de perceber se aquilo aconteceu num sonho, se foi facto ocorrido neste mundo, mas tenho a certeza que aconteceu. Aquilo aconteceu algures no tempo, em algum espaço.

    Fugir da normalidade ou fugir em direcção a ela? Porquê fugir? Sentir-me-ei acossado? Receio eu alguma coisa? Estas perguntas terão respostas adequadas mas, talvez, demasiado incómodas; evito procurá-las. Por vezes penso que quando desenho ou pinto, mesmo quando escrevo, estou a tentar fixar aqueles tais momentos indefinidos da melhor maneira que sou capaz de fazer. Raramente (nunca!?) consigo.

segunda-feira, fevereiro 14, 2022

Insuportar

     Estou em crer que, bem lá no fundo, todo e cada um de nós é uma pessoa insuportável. Se tivermos de partilhar a nossa existência com outras pessoas ao longo de todos os dias de cada semana que passa, a convivência haverá de atingir pontos de difícil equilíbrio. O problema não será o "eu" ou o "outro", o problema será aquilo que nasce entre nós e que nos é, na verdade, exterior, embora nem sempre sejamos capazes de o compreender. 

    Essa incompreensão poderá ser fruto de sentirmos o incómodo tão dentro de nós. O facto de se nos alojar no peito, no coração, nas veias, de nos transformar a respiração em angústia, muito contribuirá para não sermos capazes de compreender a raiz do problema. 

    A raiz do problema é a proximidade... é a convivência... é o cheiro... é a palavra... seja a palavra a mais, seja a outra, a palavra que foi a menos... a raiz do problema é não sermos capazes de perceber qual é, afinal, o problema. Tanto posso ser eu como pode ser o outro ou nenhum dos dois.

    Lá no fundo, lá no fundo, todo e cada um de nós é uma pessoa insuportável. Basta haver outra pessoa, nem precisam ser duas.

domingo, fevereiro 13, 2022

Felicidade (por favor, não vá embora)

     Será a felicidade algo a que possamos aspirar? 

    Primeira questão a responder: o que é isso, a felicidade? Mmmmh, resposta difícil, raciocínio complexo, a cabeça a andar à roda, tonta, tontinha, sem saber se está a pensar ou a fingir que pensa. Que raio é isso, a felicidade?

    Segunda questão (mesmo que a 1ª tenha resposta inconclusiva): pode a felicidade durar no tempo? Ora porra, se a 1ª questão já vinha armadilhada, ainda que não tenha explodido, que dizer desta 2ª? Pode durar, sim,e pode não durar, não. Mas que porra de perguntas são estas e porque estarei a colocá-las? Prefiro não responder. 

    Desculpa, paciente leitor, se estou a parecer um imbecil, a não fazer sentido. Pára já aqui. O que segue não melhora.

    Há questões que talvez não devêssemos colocar. Questionar a felicidade dificilmente poderá ter resultados que não contribuam para a pôr em causa, senão mesmo destruí-la. Talvez a felicidade necessite de alguma simplicidade de espírito para poder medrar. Se posta em causa tende a murchar de imediato, estou em crer.

    Imaginar o tempo que pode a felicidade durar é ainda mais estúpido. Resta-me (resta-nos?) pedir com jeitinho: felicidade, não vá embora. Caso ela se mostre indiferente poderei (poderemos?) acrescentar um "por favor" bem educado e talvez tenha (tenhamos?) sorte. Talvez a felicidade fique. Mas, para que tudo isto possa acontecer, é preciso perceber, é preciso saber o que é isso, a felicidade.

    Eu bem te avisei lá mais atrás, descuidado leitor, que deverias ter parado de ler este post.

sexta-feira, fevereiro 11, 2022

Transcrição

    Estava eu a ler a "Meditação na Pastelaria", crónica semanal de Ana Cristina Leonardo no Ípsilon, suplemento do jornal Público, quando me deparei com uma citação de um humorista norte-americano, um tal Lewis Black, que não resisto a transcrever. Mesmo que seja apenas mais uma ou sejam duas pessoas a ler isto, entre os quais te contas tu, divertido leitor, dou o meu tempo por bem empregue.

    Terá dito, então, Lewis Black: "Pessoas que acreditam que Deus fez o mundo em seis dias, quando vêem um episódio de Os Flinstones pensam estar a assistir a um documentário." Tive que rir.

quinta-feira, fevereiro 10, 2022

Espécie de Manifesto

     Acredito que a Arte não nos salva mas pode fazer de nós melhores pessoas.

    Acredito que reflectir sobre o Fenómeno Artístico não faz de nós nenhuns einsteins mas pode tornar o nosso olhar um pouco mais brilhante e profundo no seu entendimento do mundo que habitamos.

    Acredito que exercer algum tipo de actividade no campo da Criação Artística não exige de nós nada de transcendente, apenas que sejamos suficientemente inteligentes ao ponto de libertarmos a nossa sensibilidade.

    Acredito que a Ética e a Estética são duas faces da mesma cabeça e procuram ambas um certo sentido de equilíbrio que torna as coisas potencialmente belas. 

    Acredito em tudo isto e muito mais. Acredito. Sinceramente, acredito.

quarta-feira, fevereiro 09, 2022

Manhã ensolarada

     Esta manhã vi tantas pessoas abatidas que as ruas da Cova da Piedade mais pareciam um campo de batalha. Nem o sol era capaz de disfarçar a angustiante tristeza dos transeuntes. Um deles, encostado a uma parede suja, olhava o prédio em frente como se observasse o resultado de um bombardeamento acabado de acontecer. Um outro, máscara cirúrgica sob o queixo por barbear, arrastava-se com os dedos fincados numas canadianas. Parou por momentos, parecendo hesitar se haveria de dobrar a esquina.

    Até os cães tinham um aspecto miserável. Pareciam tão velhos como tudo o resto: as pessoas, os automóveis, os edifícios, tudo estava gasto e coberto por uma estranha patine, como se a cada minuto correspondesse muito mais tempo. Senti o meu corpo mais pesado, arrastei os pés e fechei os olhos. Por momentos receei abri-los. Acabei por retomar o meu caminho em direcção à papelaria onde contava comprar o jornal.

    Mais tarde, sentado na esplanada repleta de pessoas barulhentas, apesar de estar ainda na Cova da Piedade, toda aquela tristeza me pareceu demasiado longe de ter acontecido. Agora, o brilho do sol sobre os objectos conferia-lhes contornos precisos, revelava um mundo perfeitamente desenhado;  tudo estava no seu devido lugar, tudo arrumado com uma aparente indiferença rigorosa. Este lugar não é bonito mas é um lugar verdadeiro.

sexta-feira, fevereiro 04, 2022

Ocupação selvagem

     Hoje acordei com outra pessoa a habitar o meu corpo. O espaço revelou-se suficiente para os dois mas senti-me deveras incomodado. Tentei expulsar o meu novo locatário mas ele mostrou-se bem mais sólido do que esperava.Ficou. 

    Agora não tenho bem a certeza de que estas palavras sejam minhas ou de que o copo de água tenha matado a minha sede. Não tenho a certeza de nada; ainda menos certezas tenho do que antes de ter sido ocupado por uma personagem que não conheço, nem imagino quem seja.

    Não sei se me resigne, se me mate ou se deva procurar um psiquiatra ou um feiticeiro ou um bruxo ou um mestre africano, um doutor qualquer. Olhar o espelho não ajuda grande coisa. Entrar numa igreja e rezar também se revelou um estratagema pouco eficaz. Não sei o que mais possa fazer.

    Sinto-me como se estivesse na inauguração de uma exposição onde só conhecesse o artista que está demasiado ocupado para poder dar-me atenção. Só que, neste caso, ir embora não é possível. Apesar de tudo sempre posso ficar calado, encostado a um canto de mim próprio. E esperar.

quarta-feira, janeiro 26, 2022

Tocar como Midas

     O tão celebrado "toque de Midas" mostra bem a estupidez que reina sobre os nossos destinos. A maravilhosa capacidade de transformar em ouro tudo aquilo que a mão toque é, na verdade, uma tremenda maldição para quem a possua. O "toque de Midas" é uma sentença de morte para o seu portador e um risco terrível para quem dele se aproximar. Comer ouro não é possível, conviver com estátuas de ouro um infinito aborrecimento. O "toque de Midas" é um toque mortal.

    O próprio Midas implorou aos deuses que o livrassem daquela maldição mas a nossa sociedade continua a valorizar o dito toque. Somos burros? Sim, somos. Muito burros mesmo. Perante o brilho do ouro tendemos a ficar embrutecidos, a ganância devora-nos a razão. 

    A moral deste mito poderá estar relacionada com a voracidade infinita dos poderosos e a sua infinita capacidade para querer mais e nunca se darem por satisfeitos, mesmo que detenham uma fortuna impossível de quantificar. O mundo está cheio de reis Midas cujo toque transforma as vidas de milhões de pessoas em calvários de miséria.

    Midas não transforma em ouro tudo o que toca. Midas transforma tudo numa mistela de merda, dor e miséria. Este é o verdadeiro dom dos que tocam como Midas.

sexta-feira, janeiro 21, 2022

Amanhã

     Organizar o tempo que há-de vir é tarefa para atenuar as dores causadas pelo presente que se vive. Se o dia de hoje se apresenta pouco prometedor podemos sempre pensar no dia de amanhã, imaginar o mês que vem, apontar no calendário, rabiscar na agenda, esboçar o futuro é calmante.

    O facto de podermos desaparecer pelo caminho nem sequer nos ocorre. Planear o futuro confere-nos um levíssimo perfume de imortalidade, uma garantia de que haverá tempo para lá da noite que se avizinha. E algo para preencher esse devir.

    Como diz a canção dos Ornatos Violeta: "ouvi dizer que o mundo acaba amanhã e eu tinha tantos planos pra depois..."

segunda-feira, janeiro 17, 2022

Imaginação ruminante

    

Saudade morta; técnica mista, tamanho A3; Janeiro de 2022

    A coisa nem sempre é fácil, por vezes é mesmo bastante difícil. Partir para cima de uma narrativa visual sem qualquer plano pré-determinado poderá parecer uma insensatez. Na verdade não é. Na verdade isso faz parte de um processo. Chamo-lhe "hibridização anárquica" e expliquei-o aí atrás num post qualquer (fui procurar e encontrei esse tal post no dia 30 de Julho de 2009!). Releio o texto e fico satisfeito. Parece-me que o processo fica bem explicado.

    Entretanto passaram 12 anos e picos sobre o texto referido e continuo a produzir imagens seguindo o mesmíssimo processo. Criar imagens sem pretexto é uma actividade que me apaixona. Normalmente sou uma pessoa pouco aventureira, gosto de ficar por casa, sou um tipo dado a confinamentos. Se não tiver outras  metas a atingir posso fazer 2 ou três desenhos num dia... ou não fazer nenhum ("ai que prazer não cumprir um dever, ter um livro pra ler e não o fazer").

Diversos títulos; à esquerda a matriz criada segundo o processo de hibridização anárquica em tamanho A3, os outros 2 desenhos são em suporte de papel com 50X65 cm, o do centro a canetas de gel, o da direita com tinta da China.

  Os produtos deste processo anárquico acabam por estar na origem de trabalhos muito mais ordenados, feitos a partir de projecções de fotos que tiro aos ditos desenhos selvagens. Aí a questão coloca-se muito mais ao nível da técnica. Algumas coisas podem ser alteradas (normalmente há alterações) outras acrescentadas. É uma anarquia mais suave.

    Tudo isto é fruto de uma sensibilidade sem freio, deixada a pastar nos prados imensos da imaginação. Uma sensibilidade ruminante e pascácia que me faz pensar sobre a vida intelectual das vacas e das ovelhas. Serão animais assim tão desinteressantes?

domingo, janeiro 16, 2022

Incapacidade

     Por vezes sinto a falta de Fé. Se bem me lembro houve um tempo em tive Fé, penso que em Deus. Hoje não tenho Fé nenhuma, pelo menos nada que possa perceber dentro de mim. Talvez por ser algo que perdi há tanto tempo não lhe sinto grandemente a falta, nem me sinto órfão por não conhecer Aquele que é, em princípio, o meu Deus. Diz o povo que "quem não sabe é como quem não vê".

    Imagino que a minha falta de Fé seja responsável pelo pouco crédito que dou aos que batem no peito durante a missa, que vejo como gorilas em busca de consolo para a sua bestialidade. Quero crer que alguns desses desgraçadinhos instantâneos sejam sinceros e acreditem, de facto, naquele ritual. Também me custa muito imaginar um Deus burocrata, de livrinho em punho, registando o deve-e-haver dos nossos pecados.

    Bem que gostava de ter Fé em Deus, a sério que gostava. Mas não sou capaz.

quarta-feira, janeiro 12, 2022

Eternidade

     É duvidosa a qualidade daquilo que nos é oferecido embrulhado em papel rasqueiro, com o laçarote abatido e as cores comidas pela luz do sol. Pelo embrulho não há ali grande promessa. Um a um vamos evitando deitar-lhe a mão, ninguém quer desfazer o laçarote. Uns assobiam para o ar, outros distraem-se com uma mosca que passa. Mas a coisa está ali. Misteriosa, escondida no meio da sala à vista de toda a gente. Indesejada...?

    Sentado de costas para o embrulho tento desesperadamente alhear-me dele. Mas é complicado. Sinto passos atrás de mim. Será que é agora que vai ser aberto? E se for aberto, o que estará lá dentro? Transpiro um pouco. Não há qualquer som que se assemelhe ao rasgar do papel. Sapatos na alcatifa, peidos nas calças, arrotos nas gargantas... pouco mais.

    Se o  embrulho fosse bonito, se a coisa tivesse um aspecto apetitoso, decerto já alguém haveria reclamado a sua posse. Sinto um impulso. Sinto que não virá mal ao mundo se me levantar dando meia volta, encarando o pacote, avançando para ele. Sinto que poderei rasgar o papel, abrir o embrulho e apoderar-me do que quer que ele contenha. Em princípio, caso o conteúdo seja insuportavelmente repulsivo, poderei sempre rejeitá-lo. Mas, tal como veio assim se foi o impulso.

    Olho de soslaio dois ou três figurões que me estão próximos. Eles olham-me do mesmo modo furtivo. Estamos nisto vai para uma eternidade.

domingo, janeiro 09, 2022

Ambições

     Estando o ano no seu início um gajo tem um ou outro momento de paragem em que lhe dá pra pensar. Pensar na vida, talvez, ou pensar numa coisa qualquer (que acaba sempre por ter a ver com a vida, caso contrário um gajo estaria a ter pensamentos de pessoa morta). Então foi aí que pensei: "sou um artista, ou lá o que sou... um pintor!" pensei um bocadinho melhor no que faço para viver e reformulei: "aquilo não são bem pinturas e eu, bem vistas as coisas, não sou bem um pintor". Pois não.

     Nem pinturas, nem pintor. Desenhos e professor e será tudo muito mais justo, como uns slips no lugar de uns boxers. Pode alguém ser quem não é? Pergunta o Sérgio Godinho. Ser, ser, acho que não, mas pode parecer (que muitas vezes é ainda melhor do que ser), respondo eu, que estou a matutar no Sentido da Vida a ver se descubro alguma promessa de Ano Novo que seja coisa que me não envergonhe. Mas não sai nada. Estou com prisão de mente.

    A páginas tantas já me sinto enfastiado de estar a fingir que sou capaz de me interessar pelo futuro. Não sou. Nem sequer sou capaz de ser ambicioso. Digo eu. Um copito de tinto e uma bela fatia de presunto já me deixariam sorridente. Isso e o meu pai bem disposto, a minha filha sempre jovem e a minha esposa sempre linda e jovial. Ah, caraças, afinal sou muitíssimo ambicioso!!!

sábado, janeiro 08, 2022

Palestrando

     O homem mantinha-se vertical, aparentando uma solidez invejável. Os seus braços desenhavam suaves arabescos e a voz, profunda como o eco de um poço, produzia um efeito hipnótico arrebatador. Na sala todos se sentiam maravilhados. Todos, excepto o homem que se mantinha vertical e desenhava com os braços suaves arabescos.

     As pessoas sentadas em filas de cadeiras perfeitamente alinhadas apresentavam excêntricas deformidades: tentáculos, guelras arquejantes, olhares desorbitados, dentuças amarelentas, beiços salivantes. O homem produzia um esforço sobre-humano para manter a compostura, não perder o fio narrativo, conseguir falar, não gritar, não fugir, não matar.

    A palestra durou exactamente uma hora, conforme o previsto. Quando terminou, o palestrante, ouviu os aplausos e ficou surpreendido por ver que todos os presentes tinham um par de mãos que batiam com maior ou menor entusiasmo. Uma senhora vestida com extraordinário bom gosto sorriu-lhe de uma forma especial. Ele sorriu de volta.

segunda-feira, janeiro 03, 2022

Virar páginas

     Começa um ano novo e toda a gente desata a virar páginas. Imagino que as virem no sentido do fim da narrativa que estão a seguir, sim, porque podemos virar páginas voltando para trás. Da parte que me toca prefiro conceber a minha história numa única página. Uma página grande, imensa, toda riscada com um diagrama caótico e confuso, repleta de pequenos textos, desenhinhos, setas para cima e para baixo, espirais ascendentes, manchas indefinidas, eu sei lá, uma página que seja um mundo, o meu mundo.

    Há dentro de mim discretos desejos que espreitam por detrás de vícios antigos, outros tentam não incomodar os meus sólidos e gordos preconceitos. Sinto o sopro de ténues possibilidades de mudança que, bem vistas as coisas, não dependem tanto da passagem do ano, antes vão brotando de uma passagem do tempo mais vasta, indiferentes às páginas do calendário, agarradas aos ponteiros de relógios  pendurados nas paredes da minha imaginação.

    Se a minha imaginação tem paredes é bom que lhes abra amplas janelas.

    E pronto: cada dia uma página virada, cada promessa uma página a virar, cada mentira uma página rasgada. Imaginamos a nossa vida como se fosse um livro. Quando os livros desaparecerem por completo as vidas dos nossos descendentes serão muito diferentes. Decerto não haverá virar de página no final de cada ano, talvez nem haja nada para ser virado, talvez tudo se organize numa linha recta infinita, como a Recta dos Números. Ou talvez não.

sexta-feira, dezembro 31, 2021

Bom 2022

     O ano acaba mais ou menos como começou. O céu está azul, a natureza mantém-se alheia. No lugar onde estou o silêncio é entrecortado por latidos de cães distantes. Agora até os cães se calaram. Gostava que esta calma se estendesse no tempo.

    Bom 2022.

terça-feira, dezembro 28, 2021

Dúvida

     Um gajo tenta ignorar a morte, fazer de contas que ela não existe, mas o fracasso é total. Quando a morte chega faz os seus estragos e volta e desaparecer, como se não fosse nada com ela. Ficamos tristes, limpamos os despojos, reorganizamos a vida e, com a proverbial ajuda do tempo, regressamos à linha narrativa da nossa existência enquanto aguardamos a nossa vez.

    Sei que escrevi algures, aí para trás, num ou dois ou mais posts, que viver é entreter a morte. Tenho uma forte percepção de que isto faz sentido. E morrer!? O que será morrer? Temos uma visão parcial da coisa, observamo-la deste lado, do lado da vida, como poderemos sequer imaginar o que se passa quando exalamos o último suspiro?

    Poupo-te à descrição das várias possibilidades que me ocorrem. Imaginar o que acontece depois da morte é um pouco mais complicado do que tentar perceber por que razão os nossos antepassados pintavam paredes de cavernas (outra tarefa à beira do absolutamente impossível). No entanto, a imaginação permite-nos lançar hipóteses, podemos até adivinhar! Nunca o saberemos.

domingo, dezembro 26, 2021

Lugar comum

     Uns falam de paz e vão preparando as coisas para fazerem a guerra. Outros postulam a solidariedade e praticam a mais vil avareza. Outros ainda batem no peito e juram amor a Deus mas nada nas suas vidas justifica outra coisa que não seja a profundeza do inferno. Palavras, discursos: tretas! 

    Sabemos bem que "palavras leva-as o vento" mas não conseguimos resistir ao perfume de um discurso enganoso; sabemos bem que "quem vê caras não vê corações" mas babamo-nos perante a imagem bonita de um líder qualquer, mesmo sabendo que se trata de alguém cujas qualidades se ficam pela fotografia. Sorrimos com condescendência perante estes ditados populares (são tão pueris, tão básicos!) mas não aprendemos nada com eles.

    Este mundo é um lugar comum.

terça-feira, dezembro 21, 2021

A palavra infecciosa

     Hoje fiz mais um teste e voltei a chumbar na questão da infecção por Covid. Como diz a minha filha, este é um teste no qual todos preferimos chumbar, ficamos felizes com a reprovação. A minha dúvida é se alguma vez virei a acusar positivo para o vírus e como reagirei caso aconteça.

    Amanhã poderei viajar um pouco mais descansado para passar o Natal com a família. Todos reprovámos no teste! 

    As autoridades pensam em reforçar as medidas de prevenção (ou serão medidas restritivas)? As palavras pesam nos nossos ouvidos e nos nossos cérebros. Uma coisa é prevenir outra será restringir. Uma coisa é aconselhar outra, muito diferente, é proibir. Nunca a comunicação foi matéria tão sensível no nosso quotidiano. A forma como as coisas são ditas pode significar a sua aceitação ou a reprovação absoluta. 

    Toda e qualquer afirmação dispara nas redes sociais com a probabilidade de tornar-se viral, disseminando-se muito mais rapidamente do que qualquer variante da Covid. precisamos de estar avisados, ter a mente vacinada contra a mentira e a estupidez. Falta inventar essa vacina e, mesmo que seja inventada, duvido que haja alguma força económica capaz de investir no seu desenvolvimento e posterior produção.

segunda-feira, dezembro 20, 2021

Factos avulsos

     Fomos nós quem inventou uma rotina para o planeta ou ela existiria mesmo que o habitassem apenas quadrúpedes mais ou menos estúpidos, bípedes ranhosos e cobertos de pústulas, mais uns quantos cardumes de peixes inteligentes? O calendário varia de cultura para cultura. O facto de estarmos à beira do Natal não é igual para toda a gente, nem sequer o Dia de Ano Novo. Biliões de cabeças, umas centenas de sentenças.

    A verdade é que o movimento de rotação mais o de translação não páram, fazem do planeta uma coisa tonta de tanto rodar sobre si, qual dervixe alucinado com pulmões infinitos. O facto de não sentirmos essa vertigem, de não sentirmos a rotação do planeta debaixo dos nossos pés, decerto servirá de prova que o planeta está estático para os que acreditam que vivemos sentados num imenso prato (não sei se de sopa).

    Fazer uma interpretação literal da leitura da Bíblia é das coisas mais divertidas que podemos imaginar. Acreditar que a Bíblia é uma espécie de documento histórico explicativo da nossa espécie e do Universo... bom, isso continua a ser divertido mas, se calhar, dói um bocadinho. O facto é que há milhões de cristãos que engolem aquilo tudo sem sequer precisarem de olear a gorja. É preciso ter muita fé e pouco conhecimento.

    Chegamos ao fim deste textozito com 3 factos indesmentíveis: 1 - o Natal é quando um homem quiser; 2 - o planeta roda e nós rodamos com ele; 3 - benditos os pobres de espírito pois é deles o reino dos céus.

domingo, dezembro 19, 2021

Histórias com galinhas

     O desespero está para o crime como o ovo está para a galinha. É pouco inteligente tentar imaginar o que sente um sociopata a menos que sejamos, também nós, maluquinhos a querer esfodaçar tudo e todos sem dó nem piedade. Não passa pela cabeça de ninguém tentar imaginar o dilema do ovo e da galinha segundo a perspectiva da ave. Como pensará uma galinha?

    Quando um sociopata é apanhado com a boca na botija e metido dentro ficamos todos contentes; menos um filho da puta a andar na rua, sentimo-nos um pouco mais seguros. Mas se repararmos nos líderes mundiais, se nos fixarmos nas cabeças acima das gravatas, nos olhares abaixo dos penteados, vamos descobrir muito sociopata a decidir o futuro dos povos, raposas a guardar os galinheiros!

    As galinhas têm um problema terrível: apesar das asas não conseguem voar. Quando muito conseguem cair com estilo. Muitos galinheiros nem tecto têm por não serem necessários caso o objectivo seja impedir a fuga das galinhas. Ser galinha faz-nos pensar: para que serve ter asas se não pudermos voar?

sábado, dezembro 18, 2021

Sonho de Natal

     Há de novo um certo tom catastrofista na forma como são lidas as notícias nos telejornais.Os pivots lêem os números de novos infectados, internados, acamados, entubados e falecidos e eu ouço: "Ai, Jesus!" ou "Valha-nos Deus!" ou "Vamos todos morrer!" ou "É o bicho, é o bicho, vai-te devorar...", depende do canal e do tom de voz que vai debitando a desgraça como quem serve chocolatinho quente. 

    Parece-me que a ideia é voltar a enfiar o pessoalzinho todo dentro de casa sem ter de decretar confinamento obrigatório. Com o friozinho que se vai instalando até nem é tão má ideia quanto isso mas, sabemos bem, ninguém gosta de ser pressionado, muito menos obrigado a agir desta forma ou daquela. Gostamos de nos sentir livres, Senhores do Destino. Afinal de contas fomos criados à imagem e semelhança de Deus, Nosso Senhor. É legítimo.

        Suspeita-se que a nova variante do bicho, a Omícron, seja mais infecciosa mas menos violenta na forma como nos escangalha por dentro. Ainda faltam dados científicos que sustentem esta perspectiva. Seria interessante que o bicho estivesse a adaptar-se à coexistência com a nossa espécie, oferecendo-nos esta meia trégua mal amanhada do tipo: não vos faço sofrer tanto e vocês deixam-me em paz. Era tão bom se nos pudéssemos sentar a uma mesa com os representantes do vírus e ter uma conversa construtiva sobre o assunto!

sexta-feira, dezembro 17, 2021

Alegoria alegórica

     A fachada estava repleta daqueles caixotes de ar condicionado. Trepavam rumo ao telhado evitando as janelas num estranho bailado estático, todo feito de rectângulos e paralelepípedos, excrescências, saliências e reentrâncias, uma coisa deveras feia de ser vista. Sentado na sua cadeira, voltado para a janela, não tinha maneira de evitar a fachada do prédio em frente a menos que fechasse os olhos, gesto inconveniente na sua actividade de assalariado numa empresa de segurança. Olhos abertos, sinal de profissionalismo.

    Sobre a mesa restavam apenas os seus braços, as suas mãos e o tédio profundo que confundia diariamente com tristeza. As pessoas entravam e saíam sem dar por ele. Se fosse uma estátua produziria, decerto, um efeito semelhante sobre aquela gente apressada e distraída. Ele estava ali mas era como se não existisse.

    O tempo passou, passou e voltou a passar. Nunca acontecia nada digno de nota. Os caixotes continuavam a trepar a fachada agora mais suja, como peças de um Jogo da Glória, as pessoas passavam-lhe à frente como fantasmas, como sombras, como imagens projectadas. Sentiu-se como uma alegoria da Alegoria da Caverna. Até que se convenceu de que não existia.

    Deixou de trabalhar, não há registo dele no Desemprego, o quarto que habitava está para arrendar.

quarta-feira, dezembro 15, 2021

Desamor

     Um gajo faz testes procurando um vírus dentro do corpo. Enfiam-te uma zaragatoa no nariz, uma vez, outra, já está!. Depois vais à tua vida sabendo que mais cedo ou mais tarde (normalmente mais cedo que tarde) irás receber o resultado por SMS ou por email, tanto faz. A coisa começa a tornar-se rotineira. Até agora não recebi notícia de que seja albergue do bicho. 

    "Não detectável", disse o resultado (os resultados também falam!). Num dos vários rodapés, o resultado informa-te que o vírus não ser detectado não significa que não anda dentro de ti à procura de alojamento. Tudo bem, é o "novo normal", ser testado regularmente para poder ir a um concerto, a um jogo de futebol, para poder visitar familiares acamados... zaragatoas na penca, é o que está a dar.

    Sinceramente, quando faço o teste aguardo o resultado com a maior das calmas, ainda não me ocorreu verdadeiramente a possibilidade de estar infectado. Não por ter sido vacinado ou por usar máscara em todas as situações em que tal é aconselhado ou por desinfectar as mãos com frequência, sendo ainda capaz de as lavar a seguir. Não é por nada disso. Apenas não me passa pela cabeça.

    Esta sensação tem qualquer coisa de espírito adolescente: aquela coisa da imortalidade ou lá o que é. Não é que me sinta imortal mas tenho a impressão de que o bicho não morre de amores por mim. Oxalá!

    

domingo, dezembro 12, 2021

Tempos modernos

     O mundo virtual é uma alucinação. A afirmação anterior talvez seja exagerada para pessoas como eu ou, eventualmente, para pessoas como tu, gentilíssimo leitor. É uma afirmação que decorre do facto de ter estado com um grupo de alunos de alunos de 13/14 anos durante 45 minutos numa sala de aula onde o meu único objectivo era o de evitar que eles saíssem porta fora e pouco mais. Tratava-se de uma aula de substituição de uma colega que faltara e fui para a sala munido apenas da minha proverbial boa vontade e da experiência acumulada ao longo de algumas décadas a lidar com grupos deste género.

    Aquilo que há alguns anos atrás seria como uma descida aos infernos tornou-se, nos dias que correm, um passeio pelo Jardim das Delícias. Todos os alunos tinham à sua frente um telemóvel e rapidamente mergulharam nos ecrans passando a surfar suavemente ondas de informação. Fui falando com um ou outro sobre aquilo que lhes captava a atenção. Entre jogos, Instagram e Tik Tok, havia algo de comum a todos eles: a sucessão meio alucinada de imagens contidas em narrativas de duração extremamente curtas.

    Fiquei a saber que, no Tik Tok, um vídeo não pode exceder os 3 minutos e que, os que atingem esse limite, são uma enorme seca. Que nas Insta Stories as imagens são exibidas durante 5 segundos e os vídeos não ultrapassam os 15, sendo que, após 24 horas, tudo é dissolvido no éter virtual perdendo-se para todo o sempre. Quem viu, viu, quem não viu e gostava de ver, tivesse visto. Também os jogos vivem da imagem em movimento contínuo, da variedade de pontos de vista e do resultado imediato. Não há narrativas que se prolonguem muito para lá da seca que é uma "longa metragem" no Tik Tok.

    Este universo narrativo aliado ao da publicidade e ao dos vídeo clips constituem uma frenética cosmogonia paradoxalmente simples. É por aqui que deambulam os cérebros dos nossos alunos. Ora, uma aula ministrada por um professor, com uma duração mínima de 45 minutos recorrendo frequentemente a processos comunicacionais pré-informáticos, ganha contornos de tortura insuportável e, pior ainda, tão desinteressante quanto incompreensível. Precisamos de olhar para o mastodonte dentro da sala.

    Alguma coisa terá de mudar e mudar radicalmente se pretendermos manter algum contacto com a criançada. 

segunda-feira, dezembro 06, 2021

À beira-rio

     Todos os anos sinto algo diferente quando se aproxima o Natal. Desta vez estou a ser suavemente assaltado por uma espécie de nostalgia pela vida. Como? Nostalgia pela vida? Isso faz algum sentido!? Não sei, não me parece que faça grande sentido mas as coisas que sentimos não precisam de fazer sentido, pois não?

    Cheguei mesmo a consultar o dicionário. Nostalgia pela vida é, de facto, algo forçado, mais do campo da poesia que do espaço real, mais do campo da invenção que do verdadeiro. Mas a fronteira entre o real e o imaginado, entre o inventado e o verdadeiro, é, como no espaço geográfico, uma linha virtual, uma fria abstracção. As fronteiras não existem de facto.

    Este Natal não promete grandes coisas, talvez prometa pequenas coisas, não estou seguro. Aliás, este é um dos pequenos mistérios que me vão empoeirando o cérebro: à medida que o tempo passa sinto cada vez menos segurança em relação aos factos da vida, como se tudo fosse cada vez mais relativo e menos concreto. É o encurtamento inexorável do tempo de vida que produz esta liquefação do espaço? É a proximidade da morte que transforma o ar que respiro num imenso Estige? Apuro o olhar, fixo a neblina, parece-me ver uma mancha que avança na minha direcção. Será Caronte navegando a sua escura barca? Revolvo o fundo da algibeira e não encontro uma moeda que seja. Caronte vai ter que esperar.

terça-feira, novembro 30, 2021

Mundo tolo

     Ando de mal com a realidade. Prefiro o sonho absurdo, a coisa impossível. Não tenho bem a certeza mas penso que foi sempre assim. O problema é meu, sei bem que o problema é meu. Isso sossega-me porque, apesar da má relação, dá-me algum conforto perceber que fora de mim as coisas fazem sentido. Se o mundo circundante fosse como aquele que invento e habito, todo impulso, todo improviso, preguiçoso e demasiadas vezes monstruoso, se o mundo à minha volta fosse como aquele que trago dentro de mim, não sei o que aconteceria. Talvez não acontecesse nada de extraordinário. Talvez o mundo monstruoso não seja o meu.

    

segunda-feira, novembro 29, 2021

Adeus

    Há momentos que te saltam para a frente da memória como se fossem um Pã silencioso, como se fossem sombras poderosas, momentos disparados com uma violência desarmante por uma recordação dolorosa que ficou escondida dentro de ti, à espera. E sentes dor. Soltas uma lágrima, os teus dentes estão cerrados, deixas esgueirar-se um gemido. 

    Pouco depois recuperas a compostura. Os teus sentidos regressam ao momento presente, a fulgurante recordação perde solidez, Pã recupera a sua estridente flauta e as sombras voltam a ser inconsistentes. Tudo está outra vez no seu lugar.

    

quinta-feira, novembro 25, 2021

Universos

     Espanta-nos a desfaçatez dos ricaços que se consideram acima da Lei? Não devia espantar, ou melhor, espanta-nos porque não fazemos ideia do que significa ter tanto dinheiro, ser tão ricaço. Somos uns ignorantes das coisas do poder. Pobres pobretanas.

    Já por várias vezes aqui declarei a minha incapacidade para lidar com números. A partir da ordem das centenas começo a perder o sentido à coisa, ultrapassando os milhares fico deveras aflito e, chegado aos milhões, é como se fosse teologia avançada. Transpondo esses números para dinheiro, euros ou outra materialização da divindade, então é que nada faz nem o mais pequeno dos sentidos.

    Confunde-me a necessidade de acumulação infinita que parece ser o mantra da nossa sociedade capitalista. Agimos como se nada tivesse um limite, banalizámos perigosamente o conceito de Universo. A Economia tem de crescer em flecha, ano após ano, a capacidade tecnológica não admite fronteiras para as possibilidades que nos oferece, criando um Universo paralelo no qual todos podemos ser felizes embora nem todos lá tenhamos um lugar à nossa espera. 

    Tudo é infinito, desde a felicidade que nos é prometida pelas campanhas publicitárias até à capacidade de enriquecimento dos ricaços, passando pela capacidade de ser miserável que caracteriza aquilo a que designamos por "franjas" da sociedade. Tudo constitui um universo separado e particular, movemo-nos entre o universo mediático e o universo económico e o universo da Marvel e da DC Comics e o universo do desporto de alta competição; universo, universo, universo, tantos universos! Todos eles infinitos e em expansão. 

    Quem conseguir compreender este fenómeno improvável (infinito em expansão) por favor: EXPLIQUE-ME! Mas de forma a que eu seja capaz de compreender. Acho que vou incluir este pedido na minha carta deste ano para o Pai Natal.

quarta-feira, novembro 24, 2021

That's life!

  https://youtu.be/HUgZ7kztPBs

     Cada novo dia soa a velho. Há qualquer coisa de arrogante nesta minha perspectiva, um convencimento tácito trazido pela acumulação de anos de vida. Será que o tempo que vivemos nos permite olhar para a frente com o desencanto de quem experimentou tantas coisas que já nada o poderá surpreender? Isso é que era doce!

    Cada novo dia atemoriza por ser novo. 360º, ângulo giro, uma volta inteira na perspectiva do parágrafo anterior. Lembro a fábula da raposa e das uvas; a novidade, o desconhecido, recusados mas desejados: oxalá caíssem e pudesse eu abocanhá-los sem ter de me pôr em bicos dos pés! E, mesmo nos bicos dos pés, correr o risco de os não alcançar. A idade a tornar-me incapaz, a incapacidade confundida com sabedoria...

    Cada novo dia é uma aventura inesperada. Poesia barata, discurso motivacional, conversa banal sem significado nem objectivo palpável. Talvez seja esta a formulação mais justa. 

    Talvez a vida, a minha vida, a nossa vidinha, caríssimo leitor, a vida de um cidadão ocidental, num sistema democrático, um cidadão comum, com direitos, num estado de direito, seja assim mesmo. Cada novo dia não tem de soar a velho, embora possa acontecer, nem atemorizar, embora isso seja possível, nem tem de ser propriamente uma aventura ou o seu contrário. Cada novo dia é mais um dia de vida. 

    Acabamos sempre a enfiar La Palice pelas orelhas abaixo.

sexta-feira, novembro 19, 2021

É a vida

    Antes de continuar a avançar pensou que seria aconselhável verificar com rigor onde colocar o pé direito. Assim fez. Pisou com segurança o degrau seguinte. Pé ante pé foi subindo, sempre com absoluta certeza de que não pisaria em falso, que cada novo passo o conduziria um pouco mais acima, um pouco mais perto do seu objectivo.

    Chegado ao topo olhou para trás. A escadaria perdia-se numa escuridão profunda e assustadora. Ali estava num patamar que não conduzia a lugar algum. O espaço esgotava-se no plano onde assentava os pés. Andou de um lado para o outro tentando perceber a razão que o levara a subir até ali mas não foi capaz de recordar o objectivo da sua cuidadosa viagem.

    Sentou-se, cruzou as pernas numa posição que sugeria meditação mas, na verdade, tinha o espírito vazio. Que fazer, agora que estava ali? Quando iniciou a subida não sabia o que iria encontrar. Imaginou muitas coisas diferentes, sentira uma espécie de promessa surda, uma esperança qualquer mas não estava preparado para algo tão cruel como aquele patamar vazio no topo da escuridão.  

    O que fazer? Esperar que a fome e a sede se tornassem insuportáveis? Descer a escadaria regressando ao ponto de partida? Não concebia nada que lhe parecesse lógico nem correcto. Levantou-se, apoiou as mãos no resguardo metálico e enferrujado que circundava o patamar. Olhou para o vazio negro e...

quinta-feira, novembro 11, 2021

Irritação

     Somos mesmo uns animais um bocadinho irritantes. Não sei se sentes o mesmo, amigo leitor, irritam-me profundamente aqueles que insistem em ter sempre razão. É uma casmurrice imbecil, uma necessidade de afirmação digna de um macaco narigudo: ter razão.

     Termos razão quando asseguramos que café sem açúcar é melhor do que com, que o nosso mecânico não só é justo nos preços que cobra como também revela capacidades técnicas e conhecimentos incomparáveis, que o Doutor que nos trata da cabeça tem um dom que só pode ser oferta divina, termos sempre razão equivale a dizer que fazemos sempre a melhor escolha. Sempre, sem margem de erro nem espaço para arrependimentos. Ter sempre razão é ser, sem dúvida, o maior.

    Apesar da irritação que me provocam costumo deixar passar sem remoque estas exibições egoístas mais ou menos inofensivas. É como ter uma comichão e evitar coçá-la para não agravar o desconforto. Mesmo quando a nossa ausência de resposta provoca no irritante aquela expressão pouco subtil de superioridade, aquele repuxar discreto do canto do lábio, aquele sobrancelha ligeiramente erguida, o ajeitar do cabelo como se a afirmação de excelência fosse tão forte que tivesse despenteado o soberbo.

    Não quero reclamar qualquer tipo de sabedoria especial que me leva a evitar confrontar um ego desmesurado; seria mostrar semelhança com o irritante. Tenho uma vaga esperança de que a minha ausência de reacção o incomode, lhe faça cair o cantinho do lábio, lhe amanse a sobrancelha e o despenteie de facto. 

    Acho que isto é ficar próximo de estar velho.

segunda-feira, novembro 08, 2021

Mudar o futuro

 

Precisamos de acreditar que a vida pode ser outra coisa, que não é só isto, que a realidade não se esgota nos factos comprovados, que a verdade pode estar escondida à vista de toda a gente. Precisamos de não baixar os braços e não desistir. Não somos números nem são os números que definem quem somos. Lutar contra a estupidez é um desígnio, combater a ignorância é o processo. Precisamos de quem exija o impossível, quem imagine o que nem conseguimos sonhar. Tem de haver alternativa! Precisamos de mudar o futuro. 

Carta enviada ao Director do jornal Público

Esperança

    Nem sempre é fácil, diria mesmo que é frequentemente difícil. No entanto isso não é razão para desistir, antes pelo contrário; a ideia é insistir. Uma, duas, três, as vezes todas que forem necessárias, insistir sempre. Desistir não é opção.

    Mesmo após o golpe de misericórdia que nos atira ao tapete, mesmo com dificuldade em levantar a cabeça, estancar o sangue, recordar o nome ou o local onde estamos, desistir não é opção. A ideia é içar o corpo com o guindaste da vontade, acreditar em coisas impossíveis, invocar o auxílio das fadas e dos duendes e continuar a lutar.

    Quem não desiste nunca morre.

sexta-feira, novembro 05, 2021

A Lei

    O fim de uma coisa significa o início de outra? Haverá um encadeamento de situações mais ou menos catastróficas que se estenda infinitamente? O mundo a desenrolar-se diante de si próprio, magnífico e sem fim, indiferente aos deuses e à sua mútua destruição?  

    A Lei de Lavoisier é a única verdade comprovada. Teremos apenas que extrapolar da Natureza para o Universo: "No Universo nada se cria, nada se perde, tudo se transforma". Transforma-se a matéria, transforma-se o sonho, transforma-se a realidade, nunca nada é como é eternamente.

segunda-feira, novembro 01, 2021

Yupi

    Hoje é aquele dia confuso. Os mais velhos chamam-lhe "de todos os santos" ou "de finados", é o dia dos mortos. Ontem foi o "halloween", para a pequenada. Há aqui uma quase sobreposição nas datas e uma certa confusão nas celebrações. 

    O "halloween" é uma importação um bocado forçada que confunde os mortos com monstros e a putalhada confunde monstros com gulodices. A celebração da memória dos antepassados acaba por misturar-se com uma parada de monstrecos estapafúrdios, numa espécie de Entrudo meio imbecil e fora de tempo. 

    O 31 de Outubro acaba por ser um dia um bocado tolo. Não é nosso, nem sequer pode ser ainda considerado uma tradição. É como substituir as touradas por rodeos e fazer de contas que foi sempre assim, tudo com chapéus de caubói a gritar "yahoo" nas bancadas e a comer "hot dogs" enquanto na arena os touros são montados e não espetados com farpas nem pegados por tipos com calças demasiado apertadas nos tomates.

    Mas pronto, é o tal mundo global onde tudo era de plástico mas agora vai passar a ser de algum material alternativo que permita cores berrantes e brilhos despropositados. Um dia seremos todos americanos e gordos como bisontes pelados. 

    Yupi.

Luta desesperada

    É muita hipocrisia. Dizemos que queremos salvar o Planeta, como se o Planeta dependesse de nós. Deveríamos dizer que queremos salvar a nossa Civilização, nem sequer a Espécie Humana mas sim o regime capitalista que nos devora.

    Pessoalmente não estaria muito para aí virado, salvar o capitalismo, mas a verdade é que estou viciado no modo de vida que este regime me permite. Não imagino outro modo de vida. Temo o desaparecimento de certos luxos, uns maiores outros menores; impressionam-me o desaparecimento de outras espécies animais, o aquecimento global, os continentes de lixo flutuante mas continuo a viajar no meu carro a gasóleo e a utilizar os meus sacos de plástico. 

    Sei que as grandes empresas e aqueles que delas beneficiam a um nível que nem sou capaz de imaginar, vão fazendo com que me sinta culpado por ser um dos milhares de milhões de Seres Humanos que poluem o planeta. São capazes de me tornar inimigo de mim próprio. 

    E eu luto contra mim. Umas vezes ganho, outras vezes perco a luta. Luto todos os dias, desde que acordo até que fecho os olhos e mergulho no universo dos sonhos. Sou um lutador incansável. Umas vezes ganho, outra vezes perco. Luto comigo próprio, sinto cada golpe e respondo na mesma moeda. É uma luta desesperada.

sexta-feira, outubro 29, 2021

Fome e sede

    Continuamos a necessitar de alguém que exija o impossível. Se ficarmos pela reivindicação daquilo que o mundo está disposto a oferecer-nos, se nos conformarmos a esperar a benevolência dos coiotes sociais, então estamos fritos, amigo leitor. Estamos fritos.

    Há muito que aprendi a pedir 1000 se espero obter 100 ou mesmo 10. Lutar pela mais tremenda das utopias é a única forma que temos de nos abeirarmos de um mínimo de justiça social. Ser modesto na exigência é coisa de católico alienado, é coisa de quem espera retribuição na outra vida, quem espera recompensa depois da morte. Eu estou vivo e interessado em viver o melhor que possa.

    Peço desculpa, senhor, mas não acredito na bondade dos ricos, não acredito na magnanimidade dos poderosos. Acredito apenas na fome e na sede de justiça.

terça-feira, outubro 26, 2021

Tempestade

    A alegria é uma tempestade na alma que quando amaina fica um mar chão de tristeza.

    Então atiramos o olhar lá para a linha de horizonte na esperança do regresso de um relâmpago seguido de eufórico trovão.

    Lá vem, de novo, tempestade. É a alegria que regressa.

quinta-feira, outubro 21, 2021

As ruas do meu sonho

Não vejo ninguém passeando nas ruas do meu sonho. Longas sombras marcam o fim do dia, fronteira nocturna. Pairamos na penumbra. Ruas vazias, solitários cães à sorte abandonados. Comboio que ecoa no esquecimento. Espaço metálico, melancólico vidro sujo sobre alcatrão infinito. Estão vazias, as ruas do meu sonho. E tu não voltas, o regresso é impossível. Nunca mais serei o que já fui. Nem mesmo nas ruas do meu sonho.

sexta-feira, outubro 15, 2021

O pedido

     Agora via como fora ridículo ao puxar o lustro aos galões por serem galões tão modestos; o latão não tem o esplendor brilhante da pepita de ouro. Imaginava o constrangimento do outro que, quando o olhou, parecia ter vontade de chorar - decerto não o imaginara  tão mesquinho nos sonhos, tão servil no momento de pedir - via-lhe agora nos olhos o choro a transformar-se em riso. Entre a compaixão e o gozo a distância de um momento.

    Arrependeu-se tanto de ter aberto em si aquela janela debruçada sobre o horizonte de quem é. Caíra-lhe o céu, ficou-lhe a sombra. Pediu ao chão que se lhe abrisse debaixo dos pés mas o chão, indiferente, permaneceu. Há coisas que nunca mudam. Quando nascemos no meio do estrume dificilmente nos habituaremos às discretas nuances do perfume.

     Não sabia se havia de chorar, gargalhar ou fugir dali para fora. Ficou o silêncio, especado no soalho que brilhava como louco batido pelo sol do meio-dia.

    

sábado, outubro 09, 2021

Fugir

     Todos nós sentimos uma ou outra vez um certo fastio em sermos quem somos. Quem nunca se cansou de viver consigo próprio que atire a primeira pedra! Falando por mim: não é raro querer fugir da minha própria companhia. O problema reside em que estratagema experimentar na tentativa de evasão.

    Os truques disponíveis não são assim tantos nem particularmente eficazes e insistir na fuga poderá ter resultados catastróficos. O melhor será fazer tentativas esporádicas.

    Quando, por vezes, a fuga é coroada de sucesso sentimo-nos reis do mundo, por um momento que seja. Mas há um problema irresolúvel: acabamos sempre por regressar. Ao nosso corpo, à nossa vida, enfim, é impossível fugirmos daquilo que somos.

    Parece-me insofismável afirmar que o corpo acaba sempre por triunfar sobre a mente. Mesmo quando alguns de nós perdem a noção do Ser acabam a vegetar dentro de si próprios, como cães perdidos a farejar num cemitério; não é fuga, é esquecimento.

    Resta-nos então a morte, esse imenso mistério.

Nota: tenho andado a ler Nada a Temer de Julian Barnes, uma longa reflexão sobre a morte.

sexta-feira, outubro 08, 2021

Matar a fome

     É possível uma pessoa ter baixas expectativas em relação a um certo acontecimento e, ainda assim, ficar desapontada com o seu desfecho? Sim, claro! Porque não? É aquela cena da Lei de Murphy ou lá o que é. Estás lixado? Espera e verás o que é bom e o que é bonito.

    É possível sentir desapontamento e, ainda assim, fingir que está tudo a correr da melhor forma possível? Também. Será uma espécie de ironia positiva, o sarcasmo ao serviço das coisas boas. E das bonitas. É um gajo a torcer o volante durante o despiste na tentativa de evitar aquilo que já está a acontecer naquele momento. Deve uma pessoa desistir perante o inevitável? Nunca! Jamais!

    Resumindo: podemos viver em simultâneo o pior e o seu contrário? Depende de ti, acho eu. Depende da tua capacidade para engolires sapos imaginando-os príncipes encantados (no caso da Lei de Murphy) ou imaginando-os belos frangos assados. Tudo depende da tua capacidade te enganares a ti próprio, enganando o mundo que te rodeia.

    Pela conversa vejo que já te perdeste há um bom bocado e que aquilo que dizes deixou de fazer sentido logo no primeiro parágrafo.

    Porra! Nunca te deixas enganar!

    A tua capacidade para te enganares a ti próprio não é particularmente brilhante.

   Estou com fome. Vou comer qualquer coisa.

quinta-feira, outubro 07, 2021

Robots

    Muito raramente lá aparece um comentário neste blogue. Abro a caixinha e... é mensagem de um robot. Não fico desiludido, nem desalentado, nem acabrunhado, nem antes pelo contrário. Estou habituado ao eco silencioso da zumbisfera, sei que poucos humanos se deslocam nesta ruína abandonada. Dou por mim a sorrir e a pensar como será quando o mundo "real" ficar assim, semelhante à zumbisfera, um habitante aqui, outro ali, sobrevivendo de memórias e ténues esperanças. Quando encontrar um robot na rua for tão reconfortante como encontrar a nossa tia velhinha que já não víamos há um ror de tempo.

    Estes robots que habitam as caixas de comentários têm dois tipos diferentes de personalidades (a expressão aplica-se a robots?): uns tentam convencer-te de que ficaram agradados com o teu blogue e teriam todo o prazer em que retribuísses a visita; outros atacam logo com um lugar virtual, sem conversas prévias nem qualquer tipo de simpatia artificial, impõem-se sem rebuço. Sim, porque neste mundo tudo corre o risco de se tornar artificial, mesmo nós.

    Seja como for podes apenas ignorar o robot, não é relevante. Por enquanto podemos virar-lhes as costas, fingir que não existem. Será assim para todo o sempre?

quarta-feira, outubro 06, 2021

Na fronteira

Sinto-me a existir cada vez mais próximo de uma fronteira que separa aquilo que sou daquilo que esperam que eu seja. Essa fronteira sempre esteve lá mas o longe vai-se fazendo perto. O passar dos anos é caminho que vai sendo feito e parece-me que avisto já a guarita do guarda alfandegário.

Estar mais velho provoca-me situações de alguma vertigem, algum desconforto. Principalmente quando estou com pessoas mais jovens e conversamos. Seja qual for o tema há sempre uma história a propósito que posso contar. A sério? Que seca! Talvez devesse calar a boca, mas não, dou por mim e já avanço em passo de corrida história adentro. Arrependo-me sempre tarde de mais.

Depois começa a acontecer-me não ter a certeza se já contei aquela história àquela pessoa.

O guarda alfandegário tem uma farda cinzenta (ou será azul clara?) e está a ler um jornal enorme, com folhas que parecem lençóis. Uma ligeira brisa dificulta-lhe a leitura e ele parece irritado. Acho que me vou sentar um pouco e esperar que tudo passe ou, pelo menos, que tudo acalme. Então será tempo de avançar.

segunda-feira, outubro 04, 2021

Cínico

Estava para aqui a pensar que o exotismo é algo exageradamente valorizado e que a banalidade nem sempre merece o desprezo que lhe atiram à cara. Pensava também que nem a riqueza é assim tão apetecível. Por cada rico que se pavoneia neste mundo há milhares (ou milhões) de miseráveis que lhe enchem a peida. Estava para aqui a pensar que muito do glamour que nos preenche o imaginário tem o brilho de lixo polido com luva branca. E muito do lixo que atiramos ao rio acaba a flutuar.

Não estou a fazer grande sentido, e depois? Fazer sentido não depende de mim. Depende de ti, depende de nós.

Estava para aqui a pensar que a vida não tem assim tanto valor porque se tivesse havíamos de olhar uns para os outros com olhos mais límpidos e coração mais aberto. Se a bondade verdadeiramente importasse não seríamos tão cínicos.

Talvez o problema resida na certeza de que um dia vamos todos morrer.

Caramba! Que coisa, que conversa tão banal. Que pobreza, que discurso tão sujo! Quanto cinismo, benza-me Deus!!!

sexta-feira, outubro 01, 2021

Ser zombie

Ser um zombie e saber o que se é custa e dói. Nem sempre me apercebo dessa minha condição de morto-vivo (umas vezes mais morto outras nem por isso) mas a sensação está lá, alojada nalguma prega do meu cérebro. Zomzomzomzomzom, a moer, a moer, a moer, zom, zomb, zombi, zombie!

Quando a coisa bate, olho em volta e vejo. Vejo os outros que, como eu, arrastam os pés, caminhando todos na mesma direcção, olhares vazios, caras pálidas uns, apáticas outros, narizes a apontar ao peito, muitos. Raspamos a plataforma com as solas dos sapatos, dos ténis, das botas, das sandálias, a variedade dos trapinhos dá-nos uma falsa sensação de individualidade.

Não! Somos todos iguais perante a morte, na putrefacção e na morte. Aquele já não tem nariz, o outro perdeu parte do couro cabeludo, a senhora do vestido vermelho precisa de encontrar umas pernas ou então nunca mais vai sair dali. 

Talvez até fosse divertido.

sexta-feira, setembro 24, 2021

Conversa de merda

Se pudesse fazer acontecer aquilo que desejasse... um acontecimento apenas, aquilo que desejasse, como o Aladino... seria eu capaz de pensar no planeta e esquecer o corpo que me alberga? Se pudesse salvar a Humanidade invocando um milagre qualquer (que de momento não me ocorre) ou, em alternativa, pudesse garantir uma vida magnífica para mim próprio nos anos que me restam e para a minha descendência enquanto durar a Eternidade... qual seria a minha escolha?

Suspendo por momentos o acto de pensar. Retomo a actividade e percebo que estou a fazer uma reflexão de merda. Vou visitar aquela exposição ou fico em casa? Esta sim, é uma dúvida importante no futuro imediato.

terça-feira, setembro 21, 2021

Morte aos feios!

Nos últimos dias tenho matutado sobre as qualidades exigidas (ou não) aos candidatos às eleições autárquicas do próximo Domingo. Sendo esta a disputa eleitoral mais abrangente, a que exige um maior esforço popular de participação em termos de disponibilidade para o exercício de cargos na "coisa pública", era de esperar que surgissem uns quantos cromos. Perfeitamente natural.

Não estava era preparado para a enormidade de certos cromos que vão aparecendo. Alguns são maluquinhos de camisa-de-forças, sem tirar nem pôr.

Para ser professor é-me exigido um certificado de "robustez física e mental". Ok, eu sei como esse documento é lavrado, mas não deixa de ser uma exigência que tenta evitar que as crianças fiquem expostas a algum maluquinho-de-hospício. E para ser presidente da junta? Pode um candidato ser completa e absolutamente lunático? Pelos vistos pode.

Estou para aqui preocupado com meia dúzia de juntas de freguesia e uma ou outra câmara municipal perdidas no portugalzinho profundo, quando os dois maiores exemplos de malucos perigosos eleitos o foram para a presidência da república. Do Brasil e dos Estados Unidos. Nestes casos com a agravante de terem sido eleitos dois sociopatas narcisistas e, ainda por cima, feios pra caralho. 

Caso para proclamar a "morte aos feios"?

sexta-feira, setembro 17, 2021

No future

No future. A velha palavra de ordem que tanto me fez saltar e espernear quando era ainda um teenager sem juízo que pudesse ignorar parece estar de regresso. O contexto é outro, a envolvência muito diferente mas, imagino eu, a sensação de vazio que ora te põe em pulgas ora te deixa prostrado é decerto semelhante.

Nos anos 70 o problema era a Guerra Fria e a iminência de uma guerra nuclear que arrasasse o planeta de um momento para o outro. Esta pressão constante fazia com que fosse urgente viver tudo, "a vida num só dia", aproveitar cada minuto para rebentar a cabeça e explodir em delírio permanente. A música punk é uma boa metáfora de como nos sentíamos.

Neste final do primeiro quartel do século XXI o problema é a certeza da degradação das condições de vida sobre o planeta devido à poluição e às alterações climáticas. Embora saibamos qual o final anunciado devido aos constantes spoilers produzidos pelos cientistas sobre a História da Humanidade, não somos capazes de evitar o desastre. A nossa sociedade global já não consegue travar a tempo de evitar o mergulho no precipício.

Antes o temor da morte súbita, agora a certeza da morte lenta. Isto não são invenções ou delírios juvenis, são coisas que acontecem. O Ser Humano não tem hipóteses de ser outra coisa a não ser predador de si próprio. Somos como o tal escorpião que atravessa o rio no lombo do sapo.

terça-feira, setembro 14, 2021

Magia a preto e branco (outras vezes com cores)

                                           Monstro, canetas de gel sobre papel, 50X65cm

 

Tenho receio de ser mal compreendido. Tenho receio de ser demasiado bem compreendido. Do mesmo modo, tenho receio de eu próprio não ter compreendido. O melhor é deixar cada um compreender aquilo que for capaz de compreender e não pensar mais nisso, deixar a coisa passar e fazer outro desenho. É sempre assim, após realizar um desenho começo a pensar no seguinte. 

É como um rio de imagens que nasce algures dentro da minha cabeça e corre por mim abaixo até me encontrar as pontas dos dedos e as canetas, os pincéis, os pastéis, os lápis, os tubos de cola, as tesouras, as superfícies de suporte. Aquilo vai tudo de enxurrada! Plof, catrapumbas, slooooosh... as imagens ganham forma e têm sempre um título.

Forma e conteúdo, técnica e narrativa. Esta magia é maravilhosa. O que está ali, naquele papel, naquela imagem? Tantas coisas, tantos mundos, tantas histórias diferentes. Esta magia é maravilhosa...


terça-feira, setembro 07, 2021

Mais um dia no reino da tua cabeça

O dia hesita em começar apesar de trazer a minha cabeça ligada há já uma hora, um pouco mais ou menos. Arrasto-me para aqui, empilho meia-dúzia de livros, deslizo para ali, enfio uns desenhos numa pasta e fecho a caixa de lata dos pastéis de óleo. Sento-me em frente ao computador e vou escrevendo isto. O dia já começa a deitar a cabecita de fora mas continua receoso de mostrar o corpo inteiro. 

Não espero nada de especial deste dia. Imagino que ele tenha o mesmo sentimento em relação a mim. Sinto-me estúpido quando digo que "é um dia igual aos outros" porque um dia nunca é igual a nenhum outro. Os dias são sempre diferentes, talvez os haja parecidos mas iguais? Isso nunca. 

Será por isso que muitos de nós se predispõem a vivê-los, um dia atrás do outro, na esperança que aconteça algo de surpreendente, algo inspirador, algo que faça sentido ou que confira algum sentido ao facto de estarmos vivos. Arrastamo-nos para aqui e trocamos dois dedos de conversa com o vizinho de baixo, deslizamos para ali e bebemos um cafézinho na esplanada, sentamo-nos em frente ao rio e ficamos uns momentos a fitar a linha do horizonte. Estas coisas acontecem.

sábado, setembro 04, 2021

Do sarcasmo

Por vezes sinto uma vontade descontrolada de ser ácido, sarcástico e usar as palavras como pequenas marretas nas cabeças de algumas pessoas que, por uma razão ou por outra, me foram desagradáveis. Sinto um ligeiro remorso mas sabe tão bem que não evito fazê-lo. De forma nenhuma!

E lá vem o problema: o facto de me ser aprazível zurzir tolices na paciência de outras pessoas dá-me esse direito? E se os outros me responderem à letra? É bem feito. E se me responderem fora do contexto com insultos directos e deselegantes? Já não me parece tão bem feito, mas acontece. O jogo do sarcasmo tem regras que se intuem mas que não estão ao alcance de qualquer macaco. Há demasiada gente com o sentido de humor de um armário de cozinha, gente que não é capaz de encaixar uma boca marada sem reagir atacando à bomba.

A meu ver precisamos de exercitar o sarcasmo com maior regularidade e outra paixão. Precisamos de ensiná-lo nas escolas, de veiculá-lo nos meios de comunicação social, precisamos de o estudar praticando-o. Estarei a ser sarcástico à medida que vou escrevendo este texto? Não sei e se soubesse também não te dizia.