sábado, janeiro 12, 2008

Esta espécie de coisa nenhuma


Será que para podermos viver em liberdade temos de ter conhecido antes a prisão? Quero dizer, será que os jovens políticos portugueses nascidos após o 24 de Abril de 1974, são incapazes de compreender a vontade libertária dos mais crescidos, sejam políticos ou não? Não me estou a explicar bem; para construir a Democracia será necessário ter vivido antes num regime totalitário?

Ainda hoje há coisas que me comovem até às lágrimas. Por exemplo, cantar a Grândola Vila Morena no dia 25 de Abril ou ver um documentário sobre a Revolução com entrevistas feitas na época onde os trabalhadores revelavam os seus desejos para o futuro. Essas declarações comovem-me por estar hoje a viver esse futuro e constatar como os sonhos de homens e mulheres podem ser tão pueris na sua simplicidade extrema. Desejar uma vida melhor, um mundo mais justo, no qual a riqueza seja melhor distribuída, parece-me agora coisa mais própria de conto infantil para ler na hora de ir dormir.

O hábito de viver em liberdade endureceu os espíritos e, tal como entre os animais selvagens, essa liberdade de tão vulgarizada acabou por gerar e permitir a lei da selva. Para os jovens políticos com 30 e picos liberdade de pensamento é motivo de anedota. Todos eles sabem que não se ganha nada com isso. Pelo menos não se ganha nada com que se possa comprar um apartamento de luxo ou um automóvel topo de gama, logo não interessa. Se um marreta qualquer lhes disser que se ganha orgulho em si próprio e paz de espírito e que isso não há dinheiro que possa comprar o cabrãozinho vai sorrir e fazer de contas que está de acordo. Ele compreende que o marreta vai sentir-se melhor se ele fingir aceitar o ensinamento. O que ele não consegue compreender é o que o marreta lhe está a tentar explicar quando fala em liberdade e paz de espírito. Mas isso não faz mal porque não paga as contas do healthcenter nem dá para mudar de personal trainer.

A dúvida inicial deste post mantém-se. Quando se deu a Revolução eu tinha 11 anos de idade. Na altura não percebi bem o que tinha mudado, ou melhor, não podia perceber o que estava a mudar. No entanto as memórias da miséria e do investimento do poder salazarista no analfabetismo e no embrutecimento do povo português são coisas que até uma criança pode compreender e que o tempo não apaga. Pode um gajo nascer numa sociedade selváticamente consumista e desejar que ela mude e os valores (ou a sua ausência) se alterem?
Portugal mudou imenso e evoluiu extraordinariamente ao longo destes últimos 34 anos. Temos hoje um país livre e uma sociedade vagamente democrática. Até quando?

4 comentários:

Anónimo disse...

Sinto exactamente o mesmo. Para a maioria das pessoas que nasceram já em liberdade, falar-se nessa conquista, ouvir os desejos tão simples e pueris de quem conhecia apenas o lado duro da vida, é irrelevante e cheira a velho, passado e fermentado. Gostei muito do texto e a preocupação é essa - até quando?

MoiMêMê disse...

Acho que não, respondendo à tua pergunta. Acho que para conhecermos a liberdade temos que a compreender ou a sentir.
Quando nasci já tinha sido a revolução, mas como tu, também eu me comovo a cantar ou a ouvir cantar a Grândola, também eu me comovo quando desço a Avenida da Liberdade com um ou mil cravos vermelhos na mão, também eu me arrepio quando oiço gritar nessa mesma Avenida, 25 de Abril SEMPRE!!!
Mas claro, que só por mim posso falar...

Anónimo disse...

Silvares,

só da REALMENTE valor à LIBERDADE quem conheceu o cárcere. O resto é teoria....
Falar de liberdade sem nunca te-la perdido, é como falar do paraíso sem conhecer o inferno!

Abçs

PS- Espero que nunca mais!!!!

Silvares disse...

Sofia, este é um assunto em que se torna evidente a dificuldade de compreender o que sente "o outro";
Célia (toi même), 25 de Abril sempre... na memória, na vontade, no desejo. O 25 de Abril é, cada vez mais, um sentimento nostálgico que vai perdendo fulgor na vulgarização do significado da Liberdade;
Eduardo, realmente tenho dificuldades em chegar a uma conclusão nesta questão. Se calhar o melhor é reflectir sobre o assunto sem nunca chegar a nenhuma conclusão, para que não esqueçamos a essência do problema.