domingo, junho 27, 2010

Libertação


Diz-se que os fantasmas ficam a pairar sobre o planeta Terra enquanto têm contas a ajustar com a sua existência carnal. Quando essas contas terminam, por ajustadas, a essência fantasmagórica encontra a sua porta para a Eternidade, ou lá para onde vogam essas quase-coisas, e desaparecem de vez. Para bem deles e nosso bem também, não sei porquê.

Nos últimos dias têm sido publicados, um pouco por todo o lado, textos de opinião sobre o falecido José Saramago.

Dos que vão sendo dados à estampa aqui, na lusa pátria, muitos são de uma agressividade extrema que, estou certo, muito teriam agradado ao escritor, se vivo fosse, e, não posso afirmá-lo, certamente vão ajudando o seu fantasma a entreter-se enquanto por aqui anda pairando.

Saramago abriu feridas profundas na sociedade portuguesa. Algumas foram cosidas à sovela ou simplesmente gangrenaram, outras, muito poucas, sararam sem deixar cicratiz que o olhar veja. Seja da igreja católica ou da intelectualidade mais descaída à direita, os remoques chovem como sapos sobre o fantasma do nobelizado escritor. Penso que nunca haverá paz definitiva nesta questão tão portuguesinha. Porque Saramago foi um milagre social, um neto de analfabetos que se tornou escritor de mérito, e porque nunca acreditou em milagres por lhes encontrar sempre uma explicação em acções humanas. Isto desagrada aos tais intelectuais de direita, todos eles mais ou menos princípes neste mundo merdoso por direito de nascimento e classe social, e desagrada aos padres da igreja, mais interessados em manter os mistérios no respectivo lugar sombrio do que permitir que se revelem sob a luz do entendimento humano.

Saramago foi um homem algo desatinado. Reconheço que entre as palavras e os actos nem sempre mostrou a coerência que faria dele um santo dos ateus. Proponho que nos concentremos cada vez mais na obra que deixou, que desfrutemos do prazer da leitura das páginas que escreveu, e vamos olvidando docemente os actos humanos por ele praticados, tão dados às fraquezas da carne e do espírito.
Quando formos capazes de o ler, apenas, o que não será pouco, o seu fantasma poderá, enfim, encontrar a tal luz, ou porta, ou que coisa seja, que o leve para além deste lado. Libertemos o fantasma.

7 comentários:

Lina Faria disse...

Pois é...
Julgamento, blitz no cemitério, ops, sobre as cinzas do sábio e corajoso Saramago. Isso tudo é desconfortável a quem admira sua obra.

Jorge Pinheiro disse...

Pois,vamos deixar arrefecer as cinzas e tentar ler a obra. Eu ainda não consegui. Tenho outras prioridades.

Silvares disse...

Lina, por estas bandas temos a arte de endeusar os estrangeiros e menosprezar os portugueses. É mania.

Jorge, há tempo.

Rui Sousa disse...

Rui
O caso Saramago é um daqueles em que devemos de facto pensar e falar, sem ressentimentos nem espíritos de vingança, porque é um bom exemplo da complexidade na natureza humana. Durante toda a sua vida confundiu-se e misturou-se muita coisa (algumas vezes por culpa dele, outras por tacanhez de outros). A minha opinião ( que vale o que vale ) é que é sempre muito difícil pedirmos a alguém que separe a obra da vida do autor como se uma vivesse bem sem a outra. Já há uns largos tempos atrás me lembro de ter comentado, aqui, um post sobre um tema algo parecido, sobre o relevo que as sociedades dão às obras e não dão ao homem. Sobre a força ofuscante que a arte provoca em nós a ponto de conseguirmos desvalorizar o lado da natureza humana. A história está cheia de homens com grandes obras, mas de carácter zero, e não sei porquê todos convivemos relativamente bem com isso. O génio da obra desculpa a mediocridade da natureza humana. Não estou a dizer que seja o caso do Saramago. O Saramago não tinha uma natureza medíocre ( que eu saiba ), mas nunca conviveu muito bem com a verdade, ou pelo menos com alguma verdade. Em relação às suas criticas ao Vaticano e ao catolicismo concordo quase com tudo, parece-me lúcido, óbvio e claro, mas o facto de ele ter pertencido ao PCP ( embora depois tenha saído de militante ) nunca lhe deu a clareza de espírito para olhar para a história com a mesma acutilância com que sempre “martelou “ o Vaticano ( e bem ). Eu acho que ele nunca percebeu ( ou não quis ) que pedir a um católico que reveja determinadas verdades não é muito diferente que pedir a um comunista que reveja toda uma história. O comunismo tal como o catolicismo, em nome do bem ( e é aqui que dói ), provocaram um enorme sofrimento no mundo, foi em nome de uma superioridade moral que se fez o que se sabe. Saramago nunca teve essa grandeza de criticar alto e a bom som, as mesmas misérias de um lado como fazia em relação a outro. Eu não acho que ele tenha sido incoerente, antes pelo contrário, mostrou a coerência e militância que fez de muitas pessoas uns verdadeiros chatos ( só se preocupa com a coerência quem tem falta de imaginação, alguém disse um dia ). Reconhecer é ter grandeza e não o contrário.
Esta é a parte que eu acho em relação ao homem.
Em relação ao poder politico foi a miséria que se sabe. O governo Cavaco e os seus ministros idiotas não souberam distinguir o interesse nacional dos interesses pessoais mesquinhos e foi o que se sabe ( até na hora da morte ).
Da obra só posso falar de dois livro: o Memorial, que adorei e o Homem Duplicado que gostei.
Da vida dele também acho que foi de facto um milagre. Para alguém que nasceu com o destino traçado conseguiu ousar sonhar. Vingou o destino. Creio que não é preciso dizer muito mais.

Silvares disse...

Rui, concordo com o que dizes a 100%. A morte dele está ainda muito "fresca", ainda por aqui o fantasma. Quando ele for enviado para longe (só o tempo o poderá fazer) talvez se possa conviver de outra forma com a sua obra. Mas isso, se calhar, vai ser trabalho de gerações futuras...

Anónimo disse...

Gostei muito do comentario do Rui Sousa! Raramente se lê um comentario tão lúcido e equilibrado!

Silvares disse...

Concordo consigo. O equilíbrio é uma das condições clássicas para a possibilidade da existência da beleza. Já visitou o Blogue do Rui?