segunda-feira, junho 05, 2023

Seria um prazer

     Visto sob a perspectiva de quem anda por aqui a fazer pela vida, o nosso sistema sócio-político é uma coisa odiosa. Já muitas vezes expliquei que me considero um tipo com sorte. Por nunca ter passado fome que não fosse por opção, por nunca ter tido frio que não fosse por descuido, por ter uma saúde razoável. A tudo isto posso somar o facto de nunca ter tido faltas de dinheiro dramáticas. Enfim, sou aquilo que alguns designam por "nababo". Se bem que em pequena escala.

    "Então, se és um nababo, ainda que em pequena escala, de que te queixas" podes tu perguntar, velho amigo leitor (ou velha amiga). Queixo-me não por mim, mas por outros que vivem vidas de merda por serem, tal como eu, comidos por parvos pelas forças do capital. A diferença é que eu, depois de bem rapado e chupado pela vampiragem ainda vou ficando com uns trocos que me permitem comer bem e beber melhor. Nada de luxos desnecessários até porque, na sua maior parte, são inalcançáveis. E, sinceramente, estou-me bem a cagar para os luxos de um modo geral. Petinga, arroz de feijão e uma boa garrafa de tinto já fazem mim algo próximo de um paxá.

    Mas a verdade é que a forma como somos roubados à descarada pelos bancos e pelas geringonças das finanças não é nada agradável, muito menos justa, absolutamente imoral. Os ordenados miseráveis que auferem largas fatias da população, gente que trabalha para ser pobre, as rendas, os juros, os impostos, as taxas, tornam para mim um mistério a vida destes meus concidadãos. Daí que sinta alguma vontade de lixar a vida aos cabrões que nos lixam a nossa.Seria um prazer.

quinta-feira, junho 01, 2023

Cansaço inquietante (terror infinito)

     Cada dia que passa é menos um dia que vives, mais um dia que viveste. É assim, andas enrodilhado com o tempo, com o espaço, enfiado numa camisa de sete varas que te tolhe o pensamento. Tentas esbracejar mas nada, a coisa não se move, a coisa olha-te com aquele aspecto sobranceiro que têm as coisas como ela. 

    É inquietante.

    Corres para aqui, deslizas para ali. Faz um calor de cozer camelos no deserto, sentes a transpiração nos pés, nas mãos, escorre-te calor costas abaixo, são pingos de suor. Não é suor resultante do esforço intelectual, nem sequer do esforço braçal que te faz acreditar nos benefícios do trabalho. Não. Nada disso. É transpiração produzida por aquela estranha sensação que te deixa petrificado.

    É o terror.

    Esforças-te por acordar. Queres regressar aos lençóis, deixar para trás aquele mar infinito sobre o qual caminhas (sabes que apenas Cristo poderia fazê-lo!) mas não consegues deixar de avançar. Para onde diriges os teus passos? Em direcção ao horizonte que, como sempre fazem todos os horizontes, teima em deslocar-se à tua frente. Nunca o alcançarás.

    É o cansaço.

quarta-feira, maio 31, 2023

Pesadelo

     "É o bicho, é o bicho, vai-te devorar..." como cantava um certo cantor (qual o seu nome?) num tema que teve grande êxito e punha muita gente aos pulinhos. O bicho não esmoreceu (ele nunca vai esmorecer) e continua por aí, a cheirar, a lamber o beiço, a arreganhar a tacha, olhinho luzidio, contente por partilhar contigo este mundo no qual interpretas o papel de idiota gorducho pronto a ser papado. O bicho nem precisa ter fome, bastam-lhe os dentes.

    E se a maioria dos cidadãos for fascista por instinto e vocação? E se andares por aí a proclamar justiça e humanidade aos vizinhos estando eles simplesmente a cagar-se no que dizes, no que és e representas? Já pensaste nessa possibilidade? Eu penso nisso. Cada vez mais.

    Se os fascistas vierem a ocupar as cadeiras do poder estou feito ao bife mas não será isso que me transformará em pateta alegre. Só espero que a raiva (ou será coragem) que hoje me enche o peito perante uma besta fascista não se esvazie caso a besta se transforme em governante.

domingo, maio 28, 2023

Pequenas mentiras dominicais

     Tenho, por vezes, a sensação de que a presunção me poderia matar, tão forte a sinto no meu peito. Logo de seguida penso: "não é presunção tua mas do outro, tomas por presunção a tua percepção da mania de grandeza que emana daquele que discursa perante ti". Fico angustiado por não ser capaz de perceber o que realmente se passa comigo e com os outros, que relação posso estabelecer entre o que sinto, o que sei e o que acontece lá fora, ao redor do meu corpo.

    Mas afinal o que quero eu? Aspiro à santidade? Alguém consegue ser (absolutamente) imparcial na avaliação que faz de si próprio e do mundo circundante? Apercebo-me do modo como a ignorância me tem atrapalhado a existência, o modo como distorce, amplia e reduz as minhas ambições até esfrangalhar por completo a mais ténue possibilidade de percepção que possa ter de mim, do outro, do mundo.

    Poderá este texto assemelhar-se a um confuso lamento. Não creio que o seja. Faz-me lembrar vagamente os tempos em que ia à missa e, não tendo tomates para me confessar ao padre, aproveitava a homilia para imaginar conversas íntimas com Nosso Senhor. A coisa proporcionava-me momentos de imensa paz, dava-me conforto. Não é que tenha saudades desse tempo... talvez minta.

terça-feira, maio 23, 2023

Público, 22 de Maio de 2023

Público, 22 de Maio de 2023

Leio (página 2): “Imigrantes em Lisboa e Porto: um quarto para cinco, por mil euros” e penso “é o Mercado a auto-regular-se”. Não tenhamos ilusões, o Mercado é um bicho esfomeado, a sua auto-regulação consiste em satisfazer a gula que é a sua razão de existir. Bem podem contorcer-se os chamados “liberais”, bater no peito reclamando que há bons e maus nesta história (os que batem no peito querem acreditar que são bons). Haverá bons e maus mas, como no Gólgota, uns e outros não passam de ladrões.

Mais adiante (página 9) o texto de Ricardo Arroja, “A ciência sombria” deixa-me a impressão de que a Economia é uma ciência capaz de proporcionar previsões credíveis desde que não haja “quebras de estrutura nos dados” e fico com a desagradável sensação de que Economia e Mercado são vírus produzidos no mesmo laboratório gerido por um qualquer génio maligno, daqueles que pululam nos livros de BD, cujo único sonho é a dominação do mundo.

Por fim (página 20) “Guterres fala em fracasso moral dos países ricos e pede reformas”. Qual herói com pequeníssimos poderes, o secretário-geral das Nações Unidas faz a sua habitual pregação no deserto. Os ricos não têm ouvidos; bem podes bradar, ó Guterres!

Haverá excepções entre ricos, economistas e liberais adoradores do Mercado mas as suas vozes, abafadas na multidão dos seus pares, nunca chegarão aos céus.

 Carta enviada ao director do jornal Público

 

segunda-feira, maio 22, 2023

À flor da pele

     Não sei se podemos chegar a considerar um mistério esta necessidade avassaladora que temos de encontrar dentro de nós algo de especial, qualquer coisa que nos distinga da manada, que faça de nós um bicho diferente dos outros embora de semelhante aparência. Raramente nos basta ser quem somos; raramente matutamos sobre o que realmente somos: animais.

    Quando por vezes alguém nos chama a atenção para essa nossa condição indiscutível procuramos espelhos por nós cuidadosamente escolhidos e mostramos o nosso reflexo neles. Desde a Bíblia, que prova que fomos criados por Deus e somos diferentes da restante bicharada, até aos manuais escolares que nos explicam que somos animais sim, mas animais racionais, os únicos que pensam, que se sonham e se questionam, arranjamos um sem número de artefactos por nós construídos que provam a quem quiser ver  a nossa excepcionalidade. Somos especiais, é o mínimo que podemos pensar.

    Quando olhamos um cão bem dentro dos seus olhos, ou um gato, ou mesmo um pequeno pardal saltitante, há qualquer coisa que assoma dentro da nossa alma, se por acaso a tivermos. Há qualquer coisa que faz vacilar a nossa certeza, qualquer coisa que nos traz o coração à flor da pele e ficamos a pensar: que maravilhosa expressão esta, "à flor da pele"! E damos por nós a imaginar como dirá o cão aquilo que o comove, como explicará o gato que coisas maravilhosas viu ao longo das suas sete vidas, o que pensará o pardal na hora de ir finalmente descansar.

    Se Deus existe não somos nada mais que bichos entre a bicharada, todos nós com o coração ao pé da boca e a sensibilidade à flor da pele.

quarta-feira, maio 17, 2023

Dos objectos

     Possuímos tantas pequenas coisas que nos são imprescindíveis no dia-a-dia que mais parecemos baús de viajantes desajeitados. Antes de pormos um pé fora de casa convém verificar se levamos connosco essa miríade de coisinhas: o telemóvel, a chave de casa, a chave do carro, a carteira, os cartõezinhos, o isqueiro, o maço de cigarros e mais que de momento não me estou a lembrar.

    Esquecer algum destes objectos pode fazer-nos sentir um agonia violenta ao ponto de voltarmos atrás para o recolher. Perder um deles pode revelar-se uma tragédia à moda dos gregos. Tecemos estranhas relações com coisinhas exteriores a nós que são aparentemente insignificantes, como se fossem pintos de uma enorme galinha cujo papel estamos sempre prontos a representar. 

    Fazemos disto um modo de vida, isto de andar a chocar objectos para depois os transportarmos e conduzirmos através das agruras deste mundo. Um dos problemas desta situação prende-se com a ausência de vida verdadeira nos nossos filhinhos queridos. De vez em quando um deles resolve esconder-se e, por mais que o procuremos, por mais que viremos tudo de pernas para o ar, o diabrete não se mostra nem revela deixando-nos meio loucos de angústia e raiva.

    Dizem que é a malícia dos objectos mas talvez tudo isto seja apenas uma expressão complexa da nossa infinita estupidez.


sábado, maio 13, 2023

Ser quase nada

     Não sei se também te acontece, não sei se, por vezes, tens aquela incómoda sensação de que pouco mais és que o teu número de contribuinte (o célebre NIF), que a tua identidade é mais fiscal do que humana. Sabes bem que, mesmo depois de morto e enterrado, os que por cá ficarem e sejam ecos do que foste, vão continuar a debitar aquele número que te identifica, como se o tivesses tatuado na alma e ele continue por aí, a pairar como se fosse um fantasma, o que resta de ti.

    Não sei se também te acontece tremer um bocadinho quando pensas que além do NIF tens o número da Segurança Social, o do Sistema de Saúde, o da Carta de Condução, o do telefone, o da porta de casa e do Código Postal... e o teu nome? A tua pessoa? Há alguém dentro de ti?

    Não sei se também te acontece mas eu, tem dias que penso que sou uma ficção na cabeça de alguém que tem a paranóia dos números e por vezes sonho um pesadelo em que esse alguém muda de registo (transforma-se em poeta) e eu fico reduzido a quase nada. Ás vezes sonho este pesadelo em que não sou nada apesar de saber que sou alguém. E transpiro como se tivesse rios inteiros dentro das veias.

sexta-feira, maio 12, 2023

Ser artificial

     É a Inteligência Artificial, IA para os amigos. E para os inimigos.

    Dizem que anda por aí, que vai ser a nossa madrasta, a nossa carcereira, há até quem diga que a IA vai ser a nossa assassina ou a nossa médica assistente neste processo de auto-destruição que encetámos vai pra muito, muito tempo. É a eutanásia global a ganhar contornos definitivos.

    Pessoalmente não lhe tenho ligado muito mas isso não me imuniza em relação aos seus efeitos, sejam de curta ou longa duração. Para ser sincero penso que não precisamos da IA para assinarmos a nossa sentença de morte: bastamo-nos bem uns aos outros.

terça-feira, maio 09, 2023

Riso e siso (e riso)

     "Muito riso, pouco siso", pois sim, já me tinhas dito. Rir é das coisas mais fixes que me lembro de ter feito em toda a minha vida. Quando o riso é sincero e me abana as fundações do esqueleto é como se a Felicidade ganhasse forma e consistência: a consistência de uma gargalhada incontrolável. É tão bom!

    Depois temos a versão "gargalhada forçada". 

    A gargalhada forçada não tem nada a ver com aquela outra, que referi logo a abrir ou, pelo menos, tem muito pouco a ver; é familiar afastada, é o que é! Uma prima em 3º grau a dar-se ares de putéfia mas que, na verdade, é apenas uma prima incompreendida por emitir sinais dúbios, sinais confusos, enfim, todos corremos o risco de sermos mal interpretados. A gargalhada forçada corre muitos riscos de interpretação.

    Se pensarmos um pouco compreendemos que a gargalhada forçada pode ter diferentes origens e outros tantos destinos. Pode vir da necessidade de mostrarmos cumplicidade com o outro e dirigir-se ao ego alheio; pode ser uma demonstração de compreensão de algo que não compreendemos lá muito bem e ir direitinha para o canal que sintoniza o desprezo no nosso interlocutor; pode ser muito simplesmente uma proverbial expressão de boçalidade... a gargalhada forçada pode ser tantas coisas que nem ela sabe o que na realidade significa (até porque, sendo forçada, não pode reclamar grande coisa em termos de "realidade"... ou pode?)

    Termino aqui esta breve reflexão pois que me está a deixar um pouco macambúzio, um nada meditabundo, pensar tanto em gargalhadas não está a ser nada divertido.

domingo, maio 07, 2023

Coisa suspeita

     Hoje acordei bem disposto mas a coisa passou depressa. Regressei ao lugar um pouco incómodo, um pouco sombrio, ainda assim agradavelmente fresco, onde venho parar quando não me porto mal. Não há nada de errado, pelo menos nada que se note, mas a boa disposição dura muito pouco tempo. 

    Não é que se transforme em terror ou desespero, nada disso! Longe disso. Nem sequer posso suspeitar que alguma depressão possa vir a instalar-se no céu por cima desta minha cabeça. É apenas este leve sopro, esta pálida maçã, aquele vulto difuso, uma certa ausência de vontade. É este não-sei-quê que me incomoda por não ser capaz de compreendê-lo.

    Mas, assim à primeira vista, não parece coisa capaz de me deitar na cama.

sexta-feira, maio 05, 2023

Fado velho

 

Toda a gente fala da trapalhada. Olha o Costa! Olha o Marcelo! E o Galamba? Andou tudo a adivinhar a atitude do Costa, a resposta do Marcelo, o castigo do Galamba. Agora é tudo a tentar adivinhar as intenções do Costa e as habilidades do Marcelo; o Galamba, esse, vai perdendo consistência física até ficar reduzido à pejorativa expressão: “galambada”.

Pessoalmente preocupa-me que seja necessário recorrer a gente do calibre de um Galamba quando se pretende formal um elenco ministerial. Poderia referir uma infindável galeria de personagens mais ou menos horrorosas que já desempenharam cargos de relevo nos governos da nação mas queria apenas realçar esse aspecto; não há gente melhor para sentar nas cadeiras ministeriais? Já nem digo gente mais qualificada, apenas alguém mais honesto ou, pelo menos, alguém que não mentisse descaradamente.

Depois penso: nas próximas eleições tudo vai mudar. Mas olho para as fotos nos jornais e vejo um Hugo Soares em bicos dos pés atrás do ombro de Luís Montenegro, vejo Ventura com aquela nuvem de personagens confusas de aspecto malévolo que o emolduram sempre que vem jurar amor a Deus, à Pátria e a não sei mais quê, vejo gente que vocifera e cospe perdigotos em todas as direcções, vejo pessoas nas quais acredito mas não têm a força dos votos e penso “ai o Costa” e suspiro “ai o Marcelo”. É o velho fado português. Folheio o jornal e vejo Trump, vejo Putin, vejo Biden, Zelensky, Meloni, Lagarde, Xi, Bibi, e penso: estamos f******!

 Carta enviada ao Director do jornal Público

sábado, abril 29, 2023

Nas ruas da zumbisfera

     Sim, eu compreendo, ler umas palavras escritas por um gajo qualquer num blogue perdido na confusão florestal da Internet é algo quase estranho. Cada dia que passa a nossa atenção é mais e mais solicitada de diversas formas; com maior ou menor agressividade, de forma mais melodiosa ou imposta por voz autoritária, a requisição dos nossos amores é feita pela publicidade, pela informação jornalística (24 horas-dia, 7 dias da semana), pelos vendedores de felicidade, pelas sereias, pelos vigaristas, pelos profetas, pelas plataformas digitais, tik-tok, tik-tok, o relógio substituído, pelos políticos de todas as formas e feitios... textos e imagens, sobretudo imagens, imagens em movimento, submergem a alma do confuso cidadão que esbraceja sem saber muito bem se é a maré que o puxa, se é ele quem a empurra para a costa.

    E, dás por ti, ainda lês estas palavras. És um dos 7 ou 8 que o fazem com alguma regularidade. Estás neste recanto escondido de um beco sem saída na Cidade da Informação e pensas... não faço a mínima ideia do que estás a pensar mas, imagino, gosto de te "ver" por aqui, seja qual for a razão que te trouxe até este lugar. 

    Apesar de tudo, tenho a ilusão de quebrar um pouco o isolamento escrevendo nestas 100 Cabeças, insistindo em arrastar os meus passos pelas ruas desertas da zumbisfera. Até mais logo.

quinta-feira, abril 27, 2023

Fome de mais tempo

     O tempo encurta-se, cada dia mais curto, cada dia mais fechado, é uma caixinha com forma de ampulheta. O tempo muda de forma, ora ganha ora perde um aspecto que anteontem não tinha ainda. É um tempo de narrativas curtas, vidas inteiras metidas num clip, num anúncio publicitário, numa canção da moda, três minutos top. O tempo encolhe, as histórias são historinhas e os heróis... o que é isso?

    O passado continua moribundo, espeto-lhe um garfo, corto-lhe um bom pedaço. Chamo-lhe nomes mas ele, digno (afinal é o passado!), ele não responde à provocação. A caixinha cai no chão e despedaça-se. Tempo espalhado, varrido, tempo na pá do lixo, tempo a jazer no caixote. Mastigo o pedaço.

    Acabaram-se as epopeias.

segunda-feira, abril 24, 2023

Uma grande aventura

     Nem Paraíso, nem Nirvana, nem o caraças! Muito me alegraria caso conseguisse manter a compostura durante os anos que me restam nesta vida que, imagino, seja a única que tenho e que, uma vez acabada: adeuzinho pessoal, até nunca mais!

    Penso que esta sensação de finitude absoluta não complica demasiado aquilo que se me vai formando na mona. Pelo menos por enquanto. Já ouvi falar de ateus empedernidos que se convertem à última da hora, não vá o Diabo tecê-las. Será que, chegado o derradeiro minuto, a morte nos abre nos olhos uma perspectiva qualquer sobre um outro universo? "Ah, bom, sendo assim..." pensa o ateu com um pé cá e outro no lado de lá,"... sendo assim acredito em Ti.", mesmo sem imaginar o que quer que seja que ordena o andamento destas coisas.

    Estou, portanto, a ponderar várias possibilidades de nem sei o quê. Imagino que a vida seja exactamente assim, uma aventura imprevisível mesmo até ao último suspiro.

quinta-feira, abril 20, 2023

Pode ser que me entendas

     É deixar correr a coisa, que se lixe. Ser lindinho e sorrir como se tivesse caca na boca? Fingir ser o que se não sente? Para quê, para que serve tal coisa? Ser uma treta e lucrar com isso ou não ser nada e ficar como estamos? É deixar correr a coisa e depois logo se vê.

    Fazer planos, forçar os acontecimentos de modo a que as coisas se ajustem ao que imaginámos? Que seca, que angústia. Quem pode desejar viver assim, a torcer as vidas de outras pessoas? É deixar correr as coisas, pode ser que a felicidade aconteça. A felicidade rompe-nos o peito quando menos se espera. 

    Viver sem ambições maiores do que aquelas que nos cabem na vida que vivemos. Pois, também me parece, esta frase parece uma coisa e, vai na volta, não quer dizer absolutamente nada. Seja como for, pode ser que me entendas.

quarta-feira, abril 19, 2023

Anseio

     Como influenciar o delírio do quotidiano? Como fazer parte do todo produzindo algo relevante? Como não ser invisível nem inconsistente? Como ser alguém neste mundo confuso e hiper-mediatizado? Ora porra, por que carga de água poderemos nós ser assaltados por questões como as que acima ficam e fazer das suas respostas algo semelhante a um objectivo de vida? Não nos basta respirar e existir?

    É difícil compreender onde acaba a mera vaidade humana e onde começa o espírito altruísta, onde cessa a selfie e começa o olhar alheio. É complicado separar o acto de ver da sensação de ser visto. 

    Gostava de acreditar que me comporto de forma desinteressada, que o que os outros pensam não influencia a direcção que decido tomar, gostava de acreditar que sou uma espécie de herói que respeita um certo conjunto de valores que gosto de apregoar. Gostava de acreditar em tudo isto... mas não sou capaz.

terça-feira, abril 18, 2023

Frustrações

     Não devo nada ao mundo real mas nunca viverei tempo suficiente para saldar a minha dívida com mundos que não existem. A cada dia que passa sinto o meu corpo a pedir com maior veemência que me deixe de merdas; a pedir que me deixe ir, que desligue, que seja de sonho ou, pelo menos, que me deixe ser imaginado. A vontade de compreender o mundo a que chamamos real não encontra correspondência na minha capacidade de o fazer. Fico frustrado.

    A frustração é como uma pequena pessoa impertinente, inconveniente como um canito mimado que ladra a tudo o que passa e não deixa ninguém sossegado. Preferia deixar-me andar à boleia na barca de Caronte, acompanhá-lo de um lado para o outro levando corpos, cobrando óbulos, conversando com as almas hesitantes. Mas não posso pertencer simultaneamente a dois mundos que mal se tocam. É frustrante.

    Concluo que a vida me obriga a ferrar um calote valente, a não ter como pagar esta dívida difusa que apenas sei que vai crescendo. O que me vale é que o Sonho não cobra quando estou acordado e dos pesadelos resta o suor matinal: está pago? O que me vale é que o Absurdo se vai contentando com as coisas que desenho, que escrevo e com tudo aquilo que me passa pela cabeça e esqueço quase de imediato. 

    Na verdade (seja isso o que for), contas feitas, só posso dizer, como terá dito Picabia: não compreendes o que digo? Pois bem, eu compreendo ainda menos.

quarta-feira, abril 12, 2023

Leveza

     O Passado é uma coisa estranha. Ora parece pesar na memória, ora parece aliviá-la. Vem como se fosse feito de ondas parecidas com as que vivem no mar. A estranheza da coisa é que o Passado não provoca desconforto nem conforta por aí além, está ali, está aqui, sabemos que continuará a crescer atrás de nós irmanado no Futuro, um e outro sendo coisas que não sabemos bem o que são.

    O coração confunde-se-me com a alma, misturam-se-me no cérebro, somos todos uma coisa só que se agarra ao corpo, somos todos eu. E somos feitos de Passado e de Futuro, andamos por aqui a viver aquilo que o mundo nos oferece e o que somos capazes de oferecer ao mundo. Sinto uma espécie de paz que até aqui desconhecia. Pareço mais leve.

sábado, abril 01, 2023

Se calhar

     André Ventura tem um discurso abjecto, cavalga a xenofobia como se fosse a Virgem Maria em direcção ao Egipto montada no seu burrico, debita palavras vazias, é uma espécie de fascista mal encapotado, etc. A complacência do PS, a indefinição do PSD, as acções do PS,  a fome do PSD, a inépcia do CDS, etc. Leio o Público e são várias as tentativas de explicação para a ascensão da extrema-direita no nosso país. A maioria dos comentadores aponta para a tibieza do sistema e dos políticos. Fico a pensar: então e os cidadãos que se deixam seduzir por um discurso tão notoriamente abjecto, que aplaudem e aceitam a xenofobia, que não se incomodam (antes pelo contrário) com o voto depositado na boca de um fascista? São vítimas inocentes das malfeitorias da classe política? São pessoas de bem tão desiludidas que se transformam em... em quê? 

    Se calhar o tal racismo larvar de que para aí se fala é mais real do que estamos dispostos a aceitar. Se calhar o falhanço do sistema educativo vem de muito mais longe do que pensamos. Se calhar as pessoas não se incomodam tanto com a mentira como afirmam quando estão na casa de Deus a bater no peito. Se calhar há mais fascistas entre as pessoas de bem do que seria salutar para o nosso futuro colectivo.