segunda-feira, fevereiro 18, 2008

O melhor dos mundos

Pangloss (...). Provava admiravelmente que não há efeito sem causa e que, neste que é o melhor possível dos mundos, o castelo do senhor barão era o mais belo possível dos castelos e a senhora a melhor das baronesas possíveis.
Está demonstrado, dizia ele, que as coisas não podem ser de outra maneira: pois, como tudo foi feito para um fim, tudo está necessariamente destinado ao melhor fim. Queiram notar que os narizes foram feitos para usar óculos, e por isso nós temos óculos. As pernas foram visivelmente instituídas para as calças, e por isso temos calças. As pedras foram feitas para serem talhadas e edificar castelos, e por isso Monsenhor tem um lindo castelo; o mais considerável barão da província deve ser o mais bem alojado; e, como os porcos foram feitos para serem comidos, nós comemos porco o ano inteiro: por conseguinte, aqueles que asseveravam que tudo está bem disseram uma tolice; deviam era dizer que tudo está o melhor possível.

Excerto de Cândido, de Voltaire retirado de http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/candido.html

Muitas vezes eu penso como o Professor Pangloss. Penso que vivemos no melhor dos mundos em que é possível viver. Mais, vivemos a era do vinho e das rosas, o melhor mundo em que alguém jamais viveu. Estarei a gozar? Estarei simplesmente parvo? Talvez não. E a gozar sei que não estou. De certeza.

Olhando para trás, para aquilo que sabemos da História deste mundo, haverá alguma época, alguma civilização, que tenha alcançado um tão elevado grau civilizacional? Haverá alguma época em que, apesar de todo o sofrimento e desigualdade na distribuição da riqueza produzida, essa distribuição tenha sido mais abrangente e tenha proporcionado bem-estar a um tão grande número de seres humanos? A manutenção da paz dentro das fronteiras do actual Império Europeu (sei que à custa de ir fazer a guerra longe daqui, há preços a pagar, mas já lá vamos) dura desde 1945. Ao que parece a 2ª Guerra deu para perceber que temos mais a ganhar fazendo a paz com os nossos vizinhos do que cobiçar-lhes as riquezas e usar a força.

Apesar de toda a miséria que o nosso modo de vida provoca noutros continentes, quantos de nós estariam dispostos a abdicar do conforto de um apartamento com água corrente e luz eléctrica, de um automóvel movido a gasolina, de um computador pessoal ligado à World Wide Web e alimentos à disposição no supermercado, quantos de nós estariam dispostos a abdicar de tudo isto para permitir que as populações da África subsaariana vivessem melhor, com menos doença, menos guerra e menos miséria? Sejamos sinceros e frios ao olhar para o espelho. Quando depositamos 20€ numa conta de solidariedade para com o povo sudanês ou uma coisa desse género, estamos apenas a fazer uma festinha no nosso ego. Sabemos perfeitamente que esse dinheiro não vai resolver nada, dificilmente chegará ao destino que lhe apregoam e mais depressa servirá para alimentar um funcionário corrupto que regista uma compra de armas como sendo uma compra de farinha para fazer pão. É uma espécie de indulgência do mundo contemporâneo. Mas este é o melhor dos mundos possíveis. Convenhamos que poderia ser muito pior!

Temos uma elevada taxa de desemprego, ganhamos mal e mal podemos garantir o pagamento da renda da casa, das contas correntes, da alimentação e da educação dos nossos rebentos? Coitadinhos de nós! Como será viver no Chade ou em Timor? Eu sei, eu sei: com o mal dos outros podemos nós bem. Mas até que ponto o nosso bem-estar contribui para o mal-estar desses outros? Proudhon (ver http://pt.wikiquote.org/wiki/Pierre-Joseph_Proudhon ) afirmou que a "propriedade é um roubo", para possuirmos algo de bom haverá sempre alguém a quem falta qualquer coisa importante. Para sermos uma sociedade em constante crescimento económico e social...

Não vale a pena alargar-me muito mais nesta espécie de elogio a Pangloss, a personagem do Cândido, nós vivemos no melhor dos mundos de que há memória. Por muito que nos custe admiti-lo ou sequer pensar sobre o assunto. A menos que haja alguma civilização esquecida (o eterno mito da Atlântida) não estou a ver outra que se equipare à actual civilização ocidental.

Mas este paraíso de pacotilha em que vivemos está adoentado. O capitalismo selvagem ameaça décadas de construção laboriosa de uma sociedade democrática apoiada nos princípios sociais-democratas do Estado Providência. Como em todas a histórias que conhecemos, a ganância acaba por consumir os gananciosos e foi nisso que nos tornámos: uns estúpidos gananciosos. E filhos-da-puta.

Mas, mesmo quando este nosso mundo implodir, ele será sempre o melhor possível dos mundos possíveis. Até haver outro melhor.

17 comentários:

Anónimo disse...

...e será que haverá???


C;-(

Silvares disse...

Pois é Eduardo, essa questão é, no mínimo, uma questão estranha. Temos o direito (há quem diga que temos mesmo o DEVER) de lutar por um mundo melhor... até onde for possível. Penso que se a vida tem algum sentido só poderá ser esse!
:-)

Só- Poesias e outros itens disse...

uma reflexão de vida, de ser e estar no mundo, com a possibilidade de troca entre o eu e o outro, que nos faz coletivo, mas quem faz disso um exercício????

bjs.

Ju gioli

Albino disse...

Quando dizes que estamos no mais elevado grau de civilização alguma vez alcançado, apetece-me perguntar-te se querias que, o D. Afonso Henriques tivesse ido de Ferrari, conquistar o que viria a ser o sul do país. Ou se deveria ainda haver escravos à maneira dos gregos ou dos romanos. O tempo passou, e é claro que houve evolução. Os tempos que correm exigem outros modos.
Tudo isto mudou, e nem sempre para melhor. Houve algumas marcas importantes para que assim fosse (cito-te apenas as revoluções francesa e a russa).
A respeito dos valores ocidentais, quando falamos do “nosso modo de vida”, lembro-me muitas vezes do Triunfo dos Porcos do Orwell, que quase sempre era citado para criticar (com alguma razão) as sociedades que se diziam a caminho do socialismo. Então na nossa sociedade ocidental, não se aplica o “todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais que os outros”?
Podemos falar do “nosso modo de vida”?
Aplica-se aqui a aquela história de comermos em média um ou dois, sei lá, frangos por semana.
E os que nem o cheiram, não entram nessa média? Quem é que come os frangos desses?
O capitalismo tornou-se mais selvagem, pela falta de quem o confronte. Devido à falta de confrontação, ainda que por vezes com erros semelhantes aos dos seus opositores, a selvajaria tornou-se sufocante. Só pelo facto de estarem lá, faziam com que os outros rugissem muito mais baixo.
Agora, que isto já dava para todos termos um apartamento com água corrente, com luz eléctrica, um automóvel (pequeno por causa do estacionamento e do consumo), um computador ligado à net, alimentos à disposição e outras coisas mais, que fazem parte das necessidades que fomos criando, acho que dava.
Tínhamos porém, que por uma banda gástrica na pança de alguns (que não são tão poucos como às vezes se diz), para isto ser exequível.
E é claro que este não seria ainda o melhor dos mundos possível. Estaria então na altura de começarmos a pensar noutro melhor.

Silvares disse...

Ju, fazemos nós esse exercício. Não vale a pena ficarmos à espera que alguém o faça por nós!
:-)
Albino, pois é, no final do teu comentário quase chegas ao mesmo ponto que cheguei. Só te falta um pouco mais de liberdade de pensamento (engolir uns sapos, a bem dizer :-). Eu não digo que vivemos num paraíso, não sou assim tão parvo. Digo que vivemos no melhor dos mundos até à data. Olha para o mundo dos nossos avós ou dos nossos pais.
O problema é que não vejo possibilidades muito evidentes de a minha filha vir a dizer o mesmo... rai's parta a selvajaria capitalista!!! Mais a filha-da-putice comunista.

Olaio disse...

Raios partam a “liberdade de pensamento”, que quanto mais “liberdade” mais os nossos filhos parecem tar tramados.

E o problema é que há quem diga que primeiro começam a sacar os direitos sociais e económicos, os culturais já nem se fala, independência é lirismo e quando o pessoal começar a barafustar, então lá se vai a liberdade por mais formal que seja.

Silvares disse...

No "barafustanço" é que reside a nossa capacidade de sonhar com um mundo melhor... na medida do possível, é bom de ver!
:-)

MUMIA disse...

A malta tem que barafustar e "estilhaçar", com os meios legais à disposição, claro.
Não nos tapem a boca.

Olaio disse...

mumia, meios legais e ilegais, desde que legitimos, senão nunca tinha havido 25 de Abril, nem tantas outras coisas que fizeram o mundo andar para a afrente

Silvares disse...

Ai amigos, o que p'ráí vai!!!
Olaio, num sistema democrático os meios legais são (em teoria) mais do que suficientes para fazermos valer os nossos direitos. O 25 de Abril fez-se, precisamente, para não ser necessário ir preso por cometer certas ilegalidades que deviam ser legais! Confuso? Não, de forma nenhuma.

Jo-zéi F. disse...

"Fight the power"- como diziam os Public Enemy (acho que eram estes gaijos que gritavam esta frase).

Anónimo disse...

De qualquer maneira, desde que seja
para melhorar a vida da malta (digo eu, a MUMIA).

Olaio disse...

Pois é Silvares, esse "em teoria" faz uma difernça do c....

Silvares disse...

Olaio, não podes negar que, apesar de tudo, temos mais direitos e estamos mais protegidos dos "acasos do destino" que, por exemplo, um venezuelano. Eu sei que vais negar mas isso já é teimosia.
A vida da malta só melhora se a própria malta melhorar.

Olaio disse...

Isto já é mania, cada vez que se fala de democracia ou liberdade em Portugal, lá vêm os preconceitos em relação à Venezuela... porra!

Passas o tempo a ver a realidade Venezuelana com uns óculos estilo neo-liberal.

Olaio disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Luiz Santilli Jr disse...

Silvares
Me desculpe a neligência em visitá-lo!
Reconheço que me perdi com tantos novos amigos de tua terra!
Quando comecei 2008, acho que apenas conhecia dai o Quintarantino.
Hoje vai para mais de tres dezenas de amigos de Portugal,e a cada dia tenho mais!
Tive até que comprar um caderno e colocar ao lado do teclado, para anotar as visitas que faço e os comentários!
Tenho muito receio de ser ingrato com os que têm me dado tanto apoio como ti.
Nesse meio tempo dei uma parada e tive um virus internético a me atazanar!
Quanto ao Pangloss (interessante, quando usava ainda o DOS, o Windows era apenas notícia de revista de informática, o melhor editor de textos para os PC XT 186 da época, 1990, era o Pangloss) e suas (do Silvares) considerações - o Português é uma língia deverasmente difícil _ tenho a dizer o que segue:
Minhas concepções pouco ortodoxas de existência me indicam que o mundo é só este.
O céu e o inferno são aqui mesmo e é você quem escolhe onde quer viver!
Depois que você morrer, os problemas são dos que ficam!
Então, essa viajem que é a vida deve ser feita de primeira classe!
Quem fez fez, quem não fez, fizesse!

Abraço
Luiz