Sweeney Todd, The demon barber of Fleet Street http://www.sweeneytoddmovie.com/ é um filme estrondoso. Tim Burton avança mais uma boa meia-dúzia de passos em direcção à construção da sua própria lenda. Não há outro cineasta como ele nem sequer nenhum que, pelo menos, com ele se assemelhe. A respeito deste musical sanguinolento e romântico até ao quase rebentamento da alma, as críticas têm deixado os próprios críticos atónitos, tão depressa aquelas ultrapassam estes e fica tudo de cara à banda.
Eu, que não costumo ver com bons olhos musicais no cinema, dou o braço a torcer perante este monumental objecto. Tortuoso e estranho, o filme de Burton sugere um ambiente habitado por um conjunto de personagens que misturam o monstruoso no adorável até começar o banho de sangue. A partir daí não há retorno possível. Gore! dizem uns; Gótico! afirmam outros. Seja como for, estes dois rótulos aparecem misturados ou unidos sem grande dificuldade: gore e gótico, como se fossem sinónimos ou, pelo menos, vizinhos no campo da rotulagem contemporânea.
É aqui que entra o pequeno (ou grande?) equívoco do gótico, já de si um erro de classificação desde a primeira hora.
O conceito de gótico, geralmente associado à arte característica de um certo período da Idade Média na Europa, foi criado durante o Renascimento italiano para classificar as grandes catedrais surgidas por terras do Norte europeu. Pode também estar relacionado com a pintura a óleo com foco principal na Flandres e com o designado Estilo Internacional, colorido e luminoso. Preconceituosos e convencidos da superioridade da sua visão, os italianos do "Quattrocento" , queriam com este termo desconsiderar toda a criação não-italiana. Os Godos haviam sido um dos principais povos bárbaros associados à queda do Império Romano, época que os italianos do século XV valorizavam e para qual olhavam saudosos da grandeza que a ela associavam. Daí que o termo gótico tenha sido cunhado com forte carga depreciativa e colado a toda a obra não-italiana. O que é irónico nisto tudo é que as catedrais que chamamos góticas são originárias não da terra dos godos mas da terra dos francos. Alíás, quando surgiram Notre-Dame de Paris e outras catedrais no mesmo estilo, eram conhecidas como "Opus Francisgenum" (perdoem-me se o latinório vai com erros) ou seja, a Obra dos Francos. Por aqui podemos aquilatar do perigo que corremos quando colamos rótulos aos objectos e pretendemos tornar rígida a história dos estilos artísticos.
Seja como for, a Obra dos Franceses caracterizava-se por um conjunto de conquistas técnicas que permitiam uma arquitectura completamente diferente daquela que tinha vingado ao longo da extensa Idade das Trevas que nós associamos ao estilo Românico, pesado e escuro. O Gótico introduzia os enormes janelões com vitrais que permitiram que a ligação entre Deus e a Luz fizesse parte do programa conceptual das catedrais da época.
A pintura Gótica celebra uma progressiva conquista da representação do corpo humano e dos sentimentos das personagens, agora muito mais próximas da teatralidade necessária para veicular uma nova mensagem religiosa um pouco mais centrada na possibilidade redenção das almas pecadoras. O sorriso é introduzido em determinadas figuras, acompanhando gestos mais graciosos, de acordo com a época galante que então se vive nas cortes mais sofisticadas.
Resumindo, aquilo que o renascentistas designaram como gótico pretendendo significar algo desajeitado e não-belo, é afinal um estilo gracioso, luminoso e de um requinte assinalável tanto em termos técnicos quanto formais. Gótico era um termo depreciativo, criado para menosprezar a arte dos povos não-italianos mas acabava por ser apenas tão injusto quanto xenófobo.
Na verdade o conceito de gótico que hoje é popularmente aceite, está relacionado com a visão Romântica de uma Idade Média idealizada e valorizada em pleno século XIX. Por outro lado, os românticos criam um universo criativo onde a obscuridade interior dos indivíduos encontra a possibilidade de se expressar. Os artistas românticos, pálidos, vestidos de negro e incompreendidos pelo mundo com demasiada frequência, geniais mas tão fora que não se parecem com nada nem ninguém, acabam por se transformar no arquétipo do artista durante o século XX. "Os artistas são todos malucos" é uma expressão comum entre nós e que terá nos escanzelados e alucinados românticos a sua raíz mais profunda.
Eu, que não costumo ver com bons olhos musicais no cinema, dou o braço a torcer perante este monumental objecto. Tortuoso e estranho, o filme de Burton sugere um ambiente habitado por um conjunto de personagens que misturam o monstruoso no adorável até começar o banho de sangue. A partir daí não há retorno possível. Gore! dizem uns; Gótico! afirmam outros. Seja como for, estes dois rótulos aparecem misturados ou unidos sem grande dificuldade: gore e gótico, como se fossem sinónimos ou, pelo menos, vizinhos no campo da rotulagem contemporânea.
É aqui que entra o pequeno (ou grande?) equívoco do gótico, já de si um erro de classificação desde a primeira hora.
O conceito de gótico, geralmente associado à arte característica de um certo período da Idade Média na Europa, foi criado durante o Renascimento italiano para classificar as grandes catedrais surgidas por terras do Norte europeu. Pode também estar relacionado com a pintura a óleo com foco principal na Flandres e com o designado Estilo Internacional, colorido e luminoso. Preconceituosos e convencidos da superioridade da sua visão, os italianos do "Quattrocento" , queriam com este termo desconsiderar toda a criação não-italiana. Os Godos haviam sido um dos principais povos bárbaros associados à queda do Império Romano, época que os italianos do século XV valorizavam e para qual olhavam saudosos da grandeza que a ela associavam. Daí que o termo gótico tenha sido cunhado com forte carga depreciativa e colado a toda a obra não-italiana. O que é irónico nisto tudo é que as catedrais que chamamos góticas são originárias não da terra dos godos mas da terra dos francos. Alíás, quando surgiram Notre-Dame de Paris e outras catedrais no mesmo estilo, eram conhecidas como "Opus Francisgenum" (perdoem-me se o latinório vai com erros) ou seja, a Obra dos Francos. Por aqui podemos aquilatar do perigo que corremos quando colamos rótulos aos objectos e pretendemos tornar rígida a história dos estilos artísticos.
Seja como for, a Obra dos Franceses caracterizava-se por um conjunto de conquistas técnicas que permitiam uma arquitectura completamente diferente daquela que tinha vingado ao longo da extensa Idade das Trevas que nós associamos ao estilo Românico, pesado e escuro. O Gótico introduzia os enormes janelões com vitrais que permitiram que a ligação entre Deus e a Luz fizesse parte do programa conceptual das catedrais da época.
A pintura Gótica celebra uma progressiva conquista da representação do corpo humano e dos sentimentos das personagens, agora muito mais próximas da teatralidade necessária para veicular uma nova mensagem religiosa um pouco mais centrada na possibilidade redenção das almas pecadoras. O sorriso é introduzido em determinadas figuras, acompanhando gestos mais graciosos, de acordo com a época galante que então se vive nas cortes mais sofisticadas.
Resumindo, aquilo que o renascentistas designaram como gótico pretendendo significar algo desajeitado e não-belo, é afinal um estilo gracioso, luminoso e de um requinte assinalável tanto em termos técnicos quanto formais. Gótico era um termo depreciativo, criado para menosprezar a arte dos povos não-italianos mas acabava por ser apenas tão injusto quanto xenófobo.
Mas como é que um filme negro e sanguinário como Sweeney Todd pode ser associado ao Gótico? O que tem o ambiente obscuro e decadente das ruelas de Londres no século XIX a ver com as catedrais repletas de vitrais do Gótico?
Na verdade o conceito de gótico que hoje é popularmente aceite, está relacionado com a visão Romântica de uma Idade Média idealizada e valorizada em pleno século XIX. Por outro lado, os românticos criam um universo criativo onde a obscuridade interior dos indivíduos encontra a possibilidade de se expressar. Os artistas românticos, pálidos, vestidos de negro e incompreendidos pelo mundo com demasiada frequência, geniais mas tão fora que não se parecem com nada nem ninguém, acabam por se transformar no arquétipo do artista durante o século XX. "Os artistas são todos malucos" é uma expressão comum entre nós e que terá nos escanzelados e alucinados românticos a sua raíz mais profunda.
Toda esta salsada contribui para que nos dias de hoje, "gótico" seja um(a) jovem pálido como a lua, vestido de negro e cuja roupa terá alguma elemento a fazer lembrar o século XIX. Olhos emoldurados com higliner preto, unhas pretas também. Uma mistura de Rei Artur com Jack, o Estripador. Uma coisa cuja expressão máxima será o estranhíssimo Marilyn Manson. Numa versão mais demente (será isso possível?) de Sweeney Todd talvez Manson pudesse aspirar a um papel... como navalha de barba.
4 comentários:
Além, muito além da resenha do filme, uma lição de história, de arte e de um bom texto!
Parabéns Silvares!
Obrigado Eduardo. A ideia de que Gótico é sinónimo de monstros na escuridão não podia ser mais estranha. Gótico, na verdade, é luz colorida!!! O Tempo prega-nos grandes partidas.
ora aqui temos rui no seu melhor!
Perfeitamente de acordo com o comentário anterior. Adorei o artigo. E estou curiosa com o filme, além de que, ao contrário do Rui, eu sou fã de musicais. Tenho um feeling que este filme será um musical original, mas estou bastante curiosa, Rui...
E nem dava nada pelo filme, sabes?
;**
Cristina Loureiro dos Santos
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