quarta-feira, abril 22, 2009

Elogio da Palavra

imagem de Dave McKean



É difícil explicar como tudo aconteceu. Talvez tenha qualquer coisa a ver com o facto de dizermos que fazemos cocó quando, na verdade, estamos a cagar. Daí a substituirmos a proverbial merda pela inócua caca, vai um passinho de anão. Constatamos que há pedopsiquiatras incomodados com o facto de o Lobo Mau “comer” a Avozinha ou de a velha Tia Chica atirar um pau ao gato. Ouvimos com frequência designar a mentira por “inverdade”. Criamos assim um espaço ambíguo entre o que é e o que não é, entre a verdade e a mentira. Mas como designamos quem profere uma “inverdade”? Arrisco: mentiroso, embora não me pareça que essa designação esteja de acordo com o conceito de inverdade.


Todos sabemos o pântano viscoso que é a língua portuguesa quando utilizada por prestidigitadores habilidosos. Basta pensar na legislação produzida na Assembleia da República, sempre que a letra da lei contraria o seu espírito, nos casos em que a lei acaba por proteger aqueles que pretendia castigar. O feitiço virado contra o feiticeiro? Ou feitiço, simplesmente?


Se formos covardes temos todo o direito de temer as palavras porque, como se vê, uma vez libertas e lançadas ao mundo, elas tomam o destino nas próprias mãos e desobedecem a quem as proferiu. Quantas vezes não ouvimos pessoas a queixarem-se por ser mal interpretadas? Quantas vezes as pessoas se queixam que aquilo que disseram não era o que, na verdade, pretendiam dizer?


Ao que consta, a partir de agora não é aconselhável utilizar a expressão “autista” quando nos referimos a um político bronco ou, simplesmente, casmurro, para não dizer comprometido com alguma posição “inverdadeira”, fazendo de conta que é honesto. E que dizer dos “procedimentos alternativos” e “técnicas avançadas de investigação” para designar a tortura? Como se os santos inquisidores nunca tivessem utilizado a técnica de afogamento nos tempos áureos da igreja católica. Pode o primeiro-ministro utilizar impunemente a expressão “campanha negra”? Cocó em vez de merda, é o que é. Palavras vazias mas cheias de substância.


Temos assim tanto medo de chamar as coisas pelos nomes que verdadeiramente as definem ou, mais candidamente, merecem? Parece que sim. Enrolamos a língua e procuramos uma palavra ou uma expressão que torne a nossa ideia num camaleãozinho simpático, capaz de passar despercebido neste mundo de ambiguidades. Mas o camaleãozinho não deixa de ter a respectiva língua, comprida e viscosa, pronta a capturar a mosca varejeira que é o alvo da nossa ideia.


Escreveu Hugo Ball, na conclusão do inexcedível Manifesto Dadaísta de 14 de Julho de 1916: “Essa maldita linguagem à qual se cola a porcaria como à mão do traficante que as moedas gastaram. A palavra, quero-a quando acaba e quando começa. Cada coisa tem a sua palavra; pois a palavra própria transformou-se em coisa. Porque é que a árvore não há-de chamar-se plupluch e pluplubach depois da chuva? E porque é que raio há-de chamar-se seja o que for? Havemos de pendurar a boca nisso? A palavra, a palavra, a dor precisamente aí, a palavra, meus senhores, é uma questão pública de suprema importância.


Sejamos livres, sejamos criativos, não há que ter medo das palavras. Utilizemos a palavra conforme o instinto nos ordenar. Ignoremos convenções manhosas e pruridos fedorentos. Vamos falar com imaginação total, colorido absoluto. A palavra só nos ultrapassa se tivermos medo de a usar. Como tudo na vida, de resto.



16 comentários:

pqueirozribeiro disse...

Interessante foto e texto!

Beto Canales disse...

muito interessante.

the dear Zé disse...

Bem dito, não sei se bendito. Em todo o caso, bem escrito. Subscrevo.

Abraço.

Silvares disse...

pqueirozribeiro, obrigado. O autor da foto está devidamente identificado e podes aceder ao site dele através da hiperligação que ali coloquei. é uma visita interessante...

Beto, nos últimos tempos andam a pretender cortar-nos a língua mas não vamos deixar que isso aconteça.

Caçador, bendito duvido. A palavra é o nosso último reduto, ai de quem se aproxime com intenções menos amigáveis, caraças!
:-)

Anónimo disse...

Ainda bem que restam elas, ainda que desgastadas !

Bom texto.E não deveria ficar por aqui...Deveria sair do monitor e ganhar as bocas e ruas!

roserouge disse...

Toda a minha vida eu disse "vou prá bicha". De repente, sou obrigada a dizer "vou prá fila", porque não fica bem dizer bicha porque bicha é outra coisa, blá blá blá...

Tiago Alves disse...

Como se já não bastassem os filtros do "politicamente correcto", do "moralmente correcto", do "vamos pensar no que os outros podem achar", do "cuidado com as crianças" agora temos o novíssimo filtro do "não vamos chamar as coisas pelo nome". Tiques desta sociedade ocidental que tenta parece sofisticada.

Um exemplo disso é a dificuldade que alguns têm em chamar pretos aos pretos. Vai desde "pessoas de cor", "negros", "pessoas de origem africana", etc, etc.
E, como se já não bastasse o racismo puro, burro e ignorante, este tipo de desvios à própria linguagem só fazem com que este e outros estigmas tendam a aumentar.

Abraço,
Tiago

Ví Leardi disse...

...palavras que ganham tanto com talentos como o seu.Que grande texto...como diz o Eduardo...Deveria ganhar às ruas!!!!Bravo!!
;-)

luisM disse...

Silvaroto, não confundas as variantes pertencentes ao acto de fala, que tornam sempre o seu aparecimento problemático, seja em que contexto, e a desmontagem da cultura e da ideologia que se cola aos conceitos numa determinada época. Bem, para resumir, porque estou aqui mesmo de passagem, um discurso, qualquer discurso, nunca diz expressamente tudo o que está na intenção do sujeito que fala. Esse não dito é completado pela imaginação do interlocutor (inclusivé na simples informação, do tipo: está vento na rua!}.

Outra coisa é o texto Dada (tem acento?)que pretende romper com os estereótipos dos sentidos das palavras que tornam o discurso normativo e redutor nas possibilidades de ampliação dos pontos de vista de referência da realidade (seja de que tipo).

Um é o aspecto "funcional" da comunicação e outro a capacidade construção de mundos através da linguagem.

Mas eu também estou de acordo contigo sobre determinados preciosismos de linguagem, que não passam de caganitas, para tornar mais correctos os conceitos, quando isso tem mais a ver com a cabeça de quem conversa do que com os termos em si. Pelo facto de tratarmos a humanidade por "O Homem", não implica que as mulheres não sejam contempladas do mesmo modo. Não me parece que seja por aí que o pensamento sexista desapareça, fundamentalmente.

Pronto, o meu tempo acabou, bye!

Silvares disse...

Eduardo, o conteúdo deste texto anda por aí.
:-)

Roserouge, as bichas é que têm de cuidar das suas vidas!

Tiago, os pretos são tão pretos quanto os brancos são brancos (ou "branquelas"). Para haver maior precisão teríamos de encontrar palavras específicas para os diferentes graus de brancura ou negritude. Sim, porque há brancos mais claros que outros, mais escuros e etc.

Ví, grato pelo seu incentivo.

LuísM., este texto saíu disparado por começar a ficar farto de tantas regras e precisões tendo em vista uma linguagem pretensamente correcta. É que, através do controlo da funcionalidade, se vão limitando as fronteiras dos mundos que com a linguagem se constroem.

Selena Sartorelo disse...

Olá Silvares,
A língua portuguesa, com mais de 240 milhões de falantes, é, como língua nativa, a quinta língua mais falada no mundo e a terceira mais falada no mundo ocidental. É o idioma oficial de Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, Macau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste, sendo também falada nos antigos territórios da Índia Portuguesa (Goa, Damão, Ilha de Angediva, Simbor, Gogolá, Diu e Dadrá e Nagar-Aveli), além de ter também estatuto oficial na União Europeia, no Mercosul e na União Africana.
Essas informações foram encontradas na Wikipédia, porém na verdade, a frase que digitei no Google para encontrá-las foi "número de palavras que tem o idioma brasileiro?" .
Está é uma pequena parte da pesquisa, e ao começar a leitura desviei a atenção do que fui pesquisar, para o que encontrei na pesquisa, pois não foi essa a pergunta que fiz. E ao constatar que o idioma que falo em meu país, não é reconhecido em sua essência filosófica e social, observando que nós somos bilíngües em nosso próprio idioma, porém poucos são os que sabem falar com entendimento destes. Li! Acho que foi em um livro de Schopenhauer, algo parecido com; O fato de saber pronunciar palavras e saber o primeiro significado de um outro idioma que não o seu não significa que você entenda o que está sendo dito, pois não pensamos aquela cultura e aquele momento, concluindo que você só pode dizer que fala se souber lê-lo, então estará pensando nesse idioma...
E, sabendo que uma criança com aproximadamente dois, três anos de idade já precisa ter atingido em seu idioma um vocabulário contendo por volta de três mil palavras. Entendendo os sentidos primários de cada palavra e sentido. E curiosamente uma grande maioria adulta da população possuí um número não muito maior que esse ...
Qual o número de palavras existentes no dicionário da Língua Portuguesa eu não descobri, mas também isso não importa, eu não conheço nem um terço delas. O que importa talvez é saber se as que conheço eu sei o que significam.
Não devo ter sido muito clara, mas desde ontem pretendia comentar seu texto que aborda um assunto que gosto muito, mas estou demasiadamente cansada, então uma outra hora tentarei dizer aquilo que penso sobre esse assunto. Mas gostaria de deixar aqui meus parabéns ao LuisM que disse em seu comentário muito bem escrito sob o aspecto observado e com toda a clareza que eu não tive. Parabéns LuisM por tão inteligente comentário e parabéns Silvares por levantar questões as nossas mentes tão pouco pensadas e compreendidas.

luisM disse...

Pois pegando no teu comentário ao meu.

É a economia da linguagem, no sentido literal do termo, ou a linguagem ao serviço das relações funcionais.

Assim como esta conversa neste blog. Agora é feita e entendida como interesse pessoal, gozo, é o luxo de utilizar o tempo com liberdade (no sentido em que se diz que a arte é um "luxo", actividade que "não serve para nada" em termos da vida prática quotidiana).

Mas, se com isto despertares a atenção dos donos dos media e conseguires um programa de TV (como os Gato Fedorento, p.ex.), esta actividade passa a ser considerada como investimento (olha lá o termo). E o exercício de ir pensando aspectos da realidade, deixa de ser uma conversa pessoal, descomprometida e informal com as pessoas que visitam o blog, para se tornar num produto. Como produto fica sujeito às leis do mercado e a condicionantes que constrangem a liberdade do que se pensa e comenta. Claro que, se conseguires adaptar-te a essas exigências, pode ser que as tuas motivações se mantenham próximas das tuas expectativas e das do mercado mediático. Se não, mandam-te embora (como vai acontecer com a pequena que apontaste a 21 de Abril).

Pronto era isso que queria referir acerca das regras sociais da linguagem. Às tantas os nossos interesses, o nosso trabalho, deixa de nos pertencer e entra numa lógica que nos exclui, enquanto sujeitos (autores) da comunicação e enquanto pertinência e riqueza de discurso (aquilo de nós que pode ser importante para os outros). É outra vez aquela conversa do mercado da arte, tal qual...

Podia ser um pouco cínico, ou incorrecto, afirmando que este percurso até tem lógica, e é uma possibilidade (entre outras) de fazer emergir as coisas importantes para as sociedades e deixá-las cair quando se tornam obsoletas. Este é o discurso pragmático. Mas é um discurso distorcido na fundamentação mais profunda, porque torna acessório o acto de fala, sobrevalorizando inevitavelmente oa aspectos de marketing. Precisamente como os Gato Fedorento que se arrastaram por programas repetitivos e feitos à pressa, que só se justificavam porque tinham audiência, logo, vendiam publicidade.

Depois de reler isto tudo... desculpa lá o aspecto pretencioso. Parece que te estou a dar lições. Não é isso, estava escrevendo enquanto ia pensando nestas coisas que acho fascinantes. Não queria de modo nenhum perecer doutoral.

Beto Canales disse...

É verdade, Silvares. E que foto... nossa]
k

Silvares disse...

Selena, a língua que falamos e a forma como a utilizamos é uma afirmação de individualidade e uma tentativa de encontrarmos um terreno comum de expressão que nos permita ilustrar aquilo que vemos e a forma como o interpretamos. além do número de vocábulos há a capacidade de combinação entre eles, outra das maravilhas da expressão verbal e escrita. Um mundo!

LuisM, doutoral? Não. Estás à vontade. Como referes no comentário anterior, aqui temos um espaço de expressão e reflexão cuja regra principal é a liberdade com que nos exprimimos e reflectimos. A linguagem, seja falada, escrita, ou de outra natureza qualquer, será sempre a tentativa de materialização de uma visão do mundo. Essa é a sua faceta mais fascinante e que nos leva a nunca nos cansarmos de reflectir sobre este fenómeno.

Beto, se consideras essa foto algo digno de registo, porponho que cliques na hiperligação debaixo dela. Encontras a página do autor, um desenhador/ilustrador/etc absolutamente espectacular!

Selena Sartorelo disse...

Silvares... Exatamente isso!Por isso devemos difundí-la da maneira como ela foi concebida...e por todas as maneiras em que ela possa ser compreendida. Não exatamente da maneira mais "facil".

Beijos e bom domingo.

Alice Salles disse...

Ótimo texto! E por continuarmos com medo de usar as palavras da forma que devem ser usadas, muitos males acabam por vir, o medo os atrai e assim não damos conta de nos livrarmos deles!