Lá fora o temporal desespera. Ele chove, ele faz vento, bate, açoita, geme e grita. Parece capaz de continuar naquilo a noite toda. A vizinha do andar de baixo vem até à minha porta. Não usa a campaínha, bate com os nós dos dedos, a imitar a borrasca, mas com menos vigor, menos ímpeto, outras motivações a fazem assim bater, devagarinho. Que há uma toalha no estendal a esbarrar-lhe na janela da cozinha. Coisa essa que a incomoda. Compreendo. Que a toalha poderá voar para dentro da tempestade e perder-se lá para o meio daquele inferno de ruas encharcadas, levada por um dos pequenos rios que agora correm ladeira abaixo, como diabretes a brilhar sobre o asfalto.. Que está bem, que me desculpe. Vou já resolver isso, boa noite. Olhe que se vai molhar todo, que se há-de fazer (que raio queria ela que eu fizesse?)? Muito obrigada. A vizinha regressa ao seu buraco por baixo da minha toca. Somos muitos, demasiados, apinhados como formigas, como baratas, enfim, apinhados como insectos. As janelonas da marquise estremecem, abanadas pela ventania e picotadas pelas gotas de chuva que o céu atira cá pra baixo como se fossem setas. Que hei-de fazer (que raio queria a vizinha que eu fizesse?)?
Abro a janela. Sou um marinheiro em luta com as velas açoitadas pela tempestade, encarrapitado no mastro grande, a tentar por na ordem panos que esvoaçam encharcados, irritados e enlouquecidos pelo vento. A chuva é fria como o caraças e as peças no estendal estão enroladas. São difíceis de controlar. A luta é intensa. Sinto-me a cavalgar as ondas. Mas estou apenas no 3º andar, a levar com a chuva nas trombas, com o cabelo encharcado e as mangas do casaco molhadas. Não me parece que a toalha citada estivesse sequer perto de bater na janela da senhora mas ela é assim mesmo. Simpática. E preocupa-se comigo (que me ia molhar, pois.) e já não é a 1ª vez que se queixa das toalhas. É para aí a centésima vez. E por muito que me queira imaginar num veleiro em pleno mar alto, por muito que queira brincar um pouco como se tivesse outra vez 10 anos de idade, a verdade é que não consigo. Esta não é brincadeira que me apetecesse brincar. Já não sou capaz de entrar nestes filmes a fingir que a realidade, quando é uma merda, não é a merda que parece.
Quando termino o meu acto heróico estou a dizer mal da vida, sinto a cabeça gelada (espero não ficar doente) e estou perfeitamente ciente dos anos a que por cá ando. Decido descalçar as botas e enfiar os pés numas pantufas. Ao menos isso.
5 comentários:
como sempre bom...
E se percebe que não é marinheiro de primeira viagem!
Beto, Eduardo, batido pelo vento...
Porque é que não arranjas uma máquina de secar roupa? Poupava-te a esses trabalhos.
Não tenho espaço para ela e, lá no fundo, até gosto de me imaginar em pleno mar alto a perseguir um barco cheio de piratas socialistas!
:-)
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