sexta-feira, outubro 10, 2008

A rua


Para conhecer verdadeiramente a cidade é necessário caminhar nas ruas. É na rua que sente o pulsar da vida quotidiana. É na rua que vemos outras pessoas como nós, que percebemos os contornos dos objectos, que sentimos os odores da cidade, é nas ruas que ouvimos os ruídos que ajudam a compor o panorama que nos cerca.

Quando passamos dentro do nosso carro, com o leitor de CD a dourar-nos os ouvidos, com os vidros corridos a fazerem de muro separador, temos uma percepção deturpada do que vai lá fora. Não vemos as pessoas, elas passam na vidraça como imagens virtuais, os contornos dos objectos ficam distorcidos (a velocidade desmaterializa os corpos, segundo a máxima dos artistas Futuristas ), o odor que nos sobe pelas narinas é o do ambientador que dançarica pendurado no espelho retrovisor, os ruídos não entram ou, se entram, chegam-nos disfarçados de palhaço pobre.

Há pessoas que nunca põem um pé na rua. Passam sempre de carro. Quanto mais importantes são as pessoas na escala social, menos pisam a calçada. Mais sofisticados são os carros em que se deslocam e maior é a sua capacidade de se isolarem do ambiente circundante. Normalmente, aqueles que nos governam, os que se encontram mais próximos do vértice na pirâmide social, nunca assentam os sapatinhos reluzentes na poeira do nosso chão e muito menos pisam a caca dos cãezinhos da vizinha. O exercício do poder afasta os poderosos da esfera do humano, elevando-os à esfera do não-sei-que-raio-de-merda-é-aquele-gajo.

Então como podem eles governar? Como podem legislar sobre os nossos problemas quotidianos? Os problemas deles são outros. Nem nós os compreendemos nem eles nos compreendem a nós. Caímos assim num paradoxo. Governados e governantes preocupam-se com a mesma coisa pública mas, lá no fundo, essa coisa não é a mesma.

Nestes dias de crise económica crescente ouvimos dizer que esta bodega toda na alta finança vai afectar a economia real. Então torna-se evidente que existe uma outra economia (virtual?) diferente da real e que é a que realmente orienta a nossa existência.

Estou confuso mas, apesar de tudo, continuo feliz como um perú no dia a seguir ao Natal.

11 comentários:

Jorge Pinheiro disse...

Aliás quando se diz que um banco perdeu 400 milhões de euros, porque as acções desceram 7%, cabe perguntar qual é o valor real do banco e se a % perdida foi sobre esse valor ou sobre um valor virtual, especulativo. Mas, mais grave, qual é então o valor real?!

Anónimo disse...

Nosso ex-presidente FHC, quando perguntado o que foi que mais estranhou quando deixou a presidência, num raro momento de franqueza para um político, disse : " foi voltar a abrir portas, passei oito anos sem abrir uma porta" ( exceto as do dormitório e do banheiro da ala íntima do Palácio da alvorada, espero ).

Anónimo disse...

Já tinha pensado sobre o assunto. Belo post. :)

Beto Canales disse...

Excelente post. Tem um poeta aqui do sul, Quintana, que bem fala sobre cidade, conhecer a cidade. Tuas duas primeiras frases lembrarm muito ele.
Bom final de semana.

Beto Canales disse...

Silvares, li de novo. Mas digo: quem governa, não é pra nós, não é de nós, não é "com nós".
Onde vamos eles não vão. E onde eles vão, se formos, estaremos sendo violentados. Mas votamos neles, o que me dói.

Anónimo disse...

Silvares,

duas coisinhas: primeiro quero corrigir o Peri, pois a frase não é do FHC e sim do falecido Abreu Sodré, em homenagem à verdade dos fatos!
Outra é que os governantes só andam e sujam seus sapatinhos em época de eleições e identificam um clima completamente irreal, nesses dias, onde seus partidários maquiam as realidades!
De resto suas observações são absolutamente pertinentes! Eu só ando a pé, nas cidades que visito, e na minha, quando posso!

Forte abraço

Ví Leardi disse...

Silvare,
como sempre ...maravilha de análise e texto...
Como o Eduardo também faço kilometros a pé,mesmo porque cada dia mais fica difícil cumprir todos os compromissos indo de carro ,não se anda mais na cidade de São Paulo...as pessoas tendem a morar em bairros o mais perto possível de suas atividades diárias...Uma coisa positiva disto é realmente o maior contato que se tem com a realidade do pedestre vindo de encontro ao que aqui escreves...além é lógico de contribuir para alguns "kilinhos" a menos...ao que todos agradecem...
ai ai peguemos leve estes nossos tempos...;-}

Alice Salles disse...

Silvares, é uma confusão tamanha que chego ao ponto de não mais nem querer entender, o que é ruim. Eu quero entender! Porque quero saber pra quem aponto meu dedo e falo "você não é tã humano quanto eu? porque fez isso com todos nós?", acho que aí que precisamos abrir nossas cabecinhas burrinhas e absorver tudo que há para ser absrovido para podermos ter informação para passar para quem não tem. Ela está distorcida, como sempre, e nós é que pagamos por isso. Eternamente. Ahhh! Tem saída desse buraco????

Silvares disse...

Jorge, estou em crer que não há "valores reais". Cá pra mim não há sequer nada que se possa designar por realidade!

Peri, essa ideia, seja lá de quem for, é mesmo estranha. E quando vai fazer necessidades quem lhe limpará o buraquito?

Ovelha negra, este assunto está aí mesmo à nossa frente, não está?

Beto, temos de participar na "coisa" democrática. Dizem que é um direito mas parece que é um dever. Acho que merecíamos melhores candidatos para podermos votar sem nos tremer a mão.

Eduardo, é isso aí, temos de andar pelas ruas quando saímos da nossa cidade. E mesmo na nossa cidade uma caminhada por dia através dela só nos poderá fazer bem!

Ví, eu tenho uma passadeira de ginásio no meu sótão. Faço 3 quilómetros sem sair do lugar sempre que posso. Aproveito para ler enquanto caminho.

Alice, esse buraco tem saída mas está meio escondida. A realidade é menos real do que parece e mais real do que não possa parecer... estou a dizer parvoíces!

Anónimo disse...

Excelente, excelente e estou 100% de acordo com tudo!
Obrigada amigo
Bom fim de semana
Beijos no coração

Silvares disse...

Ashera, Grato pela visita.