Ontem à noite (ou terá sido hoje, pela manhã?) dei por mim a contemplar um gajo meio estranho no espelho do quarto-de-banho. Pronto, está bem, eu sei que era eu, mas era um eu estranho ao meu eu habitual. O corpo reflectido não me pareceu familiar. Melhor; pareceu-me familiar mas estranho porque, ao contrário do que é rotineiro, pus-me a reparar naquela coisa. Não vou entrar em pormenores descritivos, basta notar que notei marcas nítidas de, como dizer, decrepitude? Talvez não tanto. Marcas da passagem do tempo talvez seja mais adequado. E pronto, fiquei assim mesmo e não pensei mais no assunto.
Até hoje de manhã (ou terá sido pelo entardecer?). Aí, dei por mim a pensar que o espelho não reflecte o interior das pessoas. É uma coisa injusta. Posso notar que o meu corpo mudou e está a mudar. Tenho fotos que posso comparar com o estado actual do meu invólucro e registar com maior ou menor rigor, dependendo da atenção que dispenso ao facto, as alterações operadas. Mas no que diz respeito ao modo como penso ou imagino o mundo ou construo as relações com as outras pessoas, é mais difícil estabelecer termos de comparação. Não há espelho que reflicta esse tipo de alteraçôes. Essas são tão secretas que escapam ao olhar do próprio, escapam em absoluto à percepção do indivíduo.
O corpo muda e envelhece, é uma evidência visual. Mas, cá por dentro, as coisas mantêm-se, aparentemente, na mesma. É a tal cena dos "adultescentes" (a ideia da "adultescência" está para aí num post que não estou a conseguir encontrar) e que, a cada dia que passa, me deixa mais afastado de mim próprio. O gajo no espelho sou eu e não sou eu porque o gajo dentro de mim já não se lembra bem de quando era outra pessoa. Isto faz sentido?
Não faz grande sentido e isso não chega a ser incomodativo porque o dia de hoje foi espectacular e o dia de amanhão é prometedor não sei porquê. Tenho essa sensação. Hoje estou a gostar de viver!
4 comentários:
Olá, Silvares!
Também me pego sempre nessa reflexão. Olho-me no espelho e não encontro mais a mim. Mas gosto também dessa mulher que me encara com olhos sabidos de quem não se deixa enganar.
Há o neologismo 'extimidade', que é, ao contrário da intimidade, o ato de se ver de fora pra dentro, só possivel no espelho e em fotos.
É mais ou menos 'os olhos dos outros'. De como os outros nos vêm.
Mas, tenho a dizer que hoje também estou feliz em me ver dentro desse corpo tão complacente aos maltratos que às vezes lhe dou.
Bom fim de semana!
Faz todo o sentido. Às vezes não percebemos que deixámos de ser aquilo que ainda somos.
Lina, "extimidade"... um conceito a ponderar!
Jorge, essa tua observação tem uma curva apertada.
:-)
Como sempre,lindamente colocado ! Faz todo o sentido ...quantas vezes mesmo sem me olhar ao espelho me ponho a recorar e invariavelmente me pergunto...Mas quem era a quela pessoa...?Trazemos todas as vivências mas estranhamente não parece mais que fomos nós...a estar alí naquele momento que quase parece de outra vida...ou terá sido mesmo outra vida?A capacidade de nos reinventarmos me fascina....somos mesmo outros e no entanto os mesmos....ai ai ai....pirante!Quanto ao espelho ...ora melhor dar pouca importância,pois sempre me acho mais jovem do que ele me diz...e olha também estou a gostar de viver...!!!
:-)
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