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"A arte, por ser um mero artifício, necessário apenas porque falta beleza nesta vida, vai desaparecer à medida que a vida ganhe beleza (...) Hoje em dia a arte é da maior importância porque há que demonstrar plasticamente, isto é, de uma maneira directa e livre da nossa concepção individual, as leis que fazem surgir a vida verdadeiramente humana." Estas palavras, atribuídas a Piet Mondrian, configuram uma das maiores utopias da modernidade. A utopia de que a humanidade haverá de encontrar, no seu percurso em direcção a Não-Sei-Quê, uma forma de manifestação colectiva absoluta e ideal. A ser assim, a arte e a vida, um dia, serão uma e a mesma coisa. A própria vida, materializada na construção da coisa social, será uma manifestação artística, uma realização total de beleza, caracterizada pelos atributos clássicos daquilo que é belo: equilíbrio, simetria... harmonia. Ética sinónimo de estética? Lindo!
Ontem, ao ler uma reportagem sobre o rescaldo da guerra em Gaza, deparei com o seguinte pedaço de texto, da autoria de Alexandra Lucas Coelho: "O Parlamento de Gaza fica no meio da cidade. Quem estaciona o carro nas traseiras pensa que já não há Parlamento, tal a destruição. (...) Por exemplo, o hemiciclo podia ser uma instalação de arte contemporânea, com os retratos dos deputados ainda emoldurados em cima das mesas, cobertas de areia e cacos, enquanto emaranhados de metal e tubos pendem do tecto, semiderrubado."
No início do século XX a reflexão sobre arte ainda permitia imaginar um mundo belo, limpo, recticulado, equilibrado.; harmonioso. Cem anos volvidos, nós, os que vivemos o início do século XXI, temos da arte e do seu significado um entendimento substancialmente diverso daquele que enformou as utopias modernistas. Para nós os atributos da beleza clássica (quase) deixaram de fazer sentido. Habituados a viver num mundo de excessos e contrastes violentos, já não nos comovemos tanto com a simplicidade abstracta do geometrismo neoplástico de Mondrian. Estamos mais inclinados para linguagens violentamente românticas como a de Bacon, por exemplo. Uma vez que interiozámos os conceitos contemporâneos herdados dos ready-mades de Marcel Duchamp, podemos ver na sala semi-destruída do Parlamento de Gaza uma imagem de contornos artísticos pós-modernos. Vemos na sua ruína o resultado da aplicação de "leis que fazem surgir a vida verdadeiramente humana" tal como a entendemos nos tempos que correm. Essa lei já não tem (nem aspira a) nada de equilibrado ou simetricamente harmonioso. A lei que caracteriza a vida verdadeiramente humana nos tempos que correm é a da brutalidade assimétrica, da desarmonia cultural e do desiquilibrio de forças entre os ricos e os pobres, entre os que se autoproclamam filhos de deus e aqueles que sabemos que não passam de meros filhos-da-puta.
Vivemos dias complicados, tempos de desacerto e desilusão. A utopia modernista afunda-se cada vez mais na massa viscosa da pós-modernidade. As rectas perfeitas de Mondrian e os seus campos de cores primárias absolutamente contidas quebram-se para abrirem caminho à poesia caótica escrita à força dos mísseis e rende-se à musicalidade tenebrosa das metralhadoras e das pás dos helicópetros que pairam na paisagem como agoirentas aves, anunciadoras da proximidade da morte.
Mondrian vai ter de continuar à espera. Para sempre?