terça-feira, março 22, 2011

Recuerdo


Por vezes é como um avião a bater as asas no espaço apertado de um quarto fechado dentro de uma pensão de putas. Ali o coração bate sempre da mesma maneira, como um motor a precisar de mudar o óleo. A rapariga. muito branca, com uma pele irreal, fala uma língua incompreensível e lá fora há uma agitação desmedida: deflagrou um incêndio no prédio ao lado. A rua está um caos! Bombeiros, curiosos e labaredas altíssimas desfazem o sentido último da realidade, abrindo um portal para outra dimensão. O avião volteia, zumbindo de encontro às paredes, um homem gordo sua as estopinhas, sentado à janela. Bebe vinho directamente de um garrafão e vai choramingando a sua sorte e a que adivinha para as paredes daquele castelo malcheiroso que é o seu. Ele é o rei da pensão, o chanceler das putas, o grande educador das mais velhas, as que já não têm dentes e não podem mordê-lo. O nosso herói senta-se defronte ao gordo seboso e partilha com ele o gargalo do garrafão. O motor começa a funcionar melhor, está mais ágil, permite outro tipo de olhar sobre o inferno ardente na casa do vizinho. A rapariga transparente já não é mais que um fantasma. O herói engordou e do incêndio não restam mais que cinzas e memórias difusas. O passado intersecta momentos confusos, faz-se o presente. E é tão triste. É tudo tão triste, caraças, como é possível haver uma tão consistente forma corpórea para essa coisa que não se sabe o que seja, a tristeza. Como é possível, meu deus, que ninguém tenha morrido naquela noite? E que agora estejam todos mortos?

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