sexta-feira, março 19, 2010

Traduções

O velho Errol, o Robin da minha infância (era a preto e branco, aqui está num belo cinemacolor)


Um dos meus heróis favoritos era o Robin dos Bosques. O meu avô autorizava-me sempre a comer a perna de frango "à Robin dos Bosques"; ou seja, permitia-me comer com as mãos o que, na minha infância, era um gesto de extrema liberdade; poder fazer tal coisa na companhia de adultos... e era isso que Robin significava: liberdade. Ele personificava o eterno lutador, alguém que defende uma causa pondo em risco a própria vida. Os alegres companheiros do herói completevam-no em qualidades e defeitos. Havia o abade, gordo e beberrão ou João Pequeno, um gigante hercúleo capaz de extraordinárias proezas físicas. Para lá de tudo isto Robin era ainda um homem apaixonado o que sublinhava o romantismo da personagem e da sua história. Quantas vezes revi Robin e Lady Mariam de mãos dadas, apertadas de encontro ao peito, olhando-se como se estivessem a contemplar as profundezas de um oceano escarlate?

Robin dos Bosques, quanta saudade...

Recentemente apercebi-me de um pormenor que me havia escapado ao longo de todos estes anos. No original trata-se de Robin Hood. Hood? Soava-me mais como Wood. Que raio de coisa significa Hood? Consultado o dicionário dá-se a revelação: "hood" significa "capuz". Então... Robin dos Bosques é, na verdade, o Robin do Capuz!? Ai, que susto! Como foi possível engolir este erro durante tantos anos? Claro, como Robin e os companheiros vivem escondidos numa floresta, não é difícil aceitar o nome de Robin dos Bosques. O tempo, a distância e uma tradução retorcida, podem construir uma imagem aparentemente intocável que, na verdade, é uma quase-mentira.

Tudo isto me fez recordar aquela primeira cena do filme "Snatch", quando um grupo de assaltantes disfarçados de judeus comentam uma anedota que diz que o cristianismo é uma religião fundada num erro de tradução. Os falsos judeus riem dizendo que a palavra que esteve na origem da designação de Maria nos evangelhos actuais significava, no original, mulher jovem (ver aqui explicação clara e objectiva).

Este tipo de erros só podem ser ultrapassados quando atingimos a idade adulta e começamos a questionar certas situações que, enquanto andamos a brincar e a saltar pela vida fora, não sentimos necessidade de pôr em causa. Isto mostra bem como uma mentira repetida até à exaustão acaba por se confundir com a verdade. Mesmo que a mentira seja (aparentemente)involuntária e de contornos (eventualmente) inocentes, é preciso ter muito cuidado com ela pois nunca se sabe quando poderá vir a estar na base de todo um culto religioso.

6 comentários:

Beto Canales disse...

Excelente texto. Capuz... Perdi hj um pouco da minha infância...

Silvares disse...

É estranho, não é? Mas porquê? se calhar há uma explicação que desconheço.

jorge disse...

Permite-me uma observação: 'hood' pode ser também uma abreviatura de 'hoodlum', qualquer coisa como 'malfeitor'. No entanto, recordando o garboso Errol Flynn ( sobre o qual recaem fortes suspeitas de ter espiado para Hitler na Segunda Guerra Mundial)e o famoso torneio onde vai disfarçado e consegue acertar na mouche quebrando a flecha que já lá estava, lembro que o homem levava um capuz para não ser reconhecido, o que provavelmente te dá razão.

Lina Faria disse...

E o que é a vida se naõ um amontuado de quase-mentiras?
Eu, querendo ser otimista, prefiro designa-las como "quase-verdades".

peri s.c. disse...

Aqui não corremos este risco : Robin Hood sempre foi Robin Hood .
Até na adaptação de nosso maior autor de literatura infantil Monteiro Lobato, que não traduziu o nome em sua adaptação, que é a versão que minha geração, e as anteriores e muitas posteriores, leram.

Silvares disse...

Jorge, "hood" nao deixa grande margem de dúvida... quanto às suspeitas sobre o Errolzinho, isso já é outra história.

Lina, questão de perspectiva.

Peri, mas não relacionavam o Robin com "bosque"?