quarta-feira, fevereiro 10, 2010

O grande filme


Um gajo entra num centro comercial e olha em volta, discretamente. As pessoas circulam com as suas caras no lugar. Parecem saber exactamente o que fazer, seguras na direcção dos seus passos.

Um gajo entra numa loja de roupas, só para dar um exemplo. Há pessoas olhando, mexendo, experimentando. Parecem absortas, como se vogassem numa outra dimensão. Um som agressivo enche o ambiente. É música. Os empregados andam afadigados de um lado para o outro. A música continua a bater. Bate com força. Incomoda. As pessoas parecem não dar pelo som que as submerge como se estivessem numa piscina. Sinto-me ansioso. Quero saír dali rapidamente e é o que faço.


Cá fora as coisas estão mais calmas. Ouve-se apenas aquele ruído branco que ecoa pelas galerias. Vozes? Passos? Restos das músicas que infernizam cada uma das lojas? Não sei dizer ao certo. Noto que não há um momento de silêncio (de que estava eu à espera?).

Um gajo entra no supermercado e, lá no alto, há mais música. Discreta, quase indistinta. Só se lhe percebem os contornos quando nos concentramos nela. É uma música horrorosa mas, cá em baixo, os cidadãos consumidores como eu parecem não lhe dar a mínima importância, caso contrário haviam de estar parados a olhar para o ar com cara de poucos amigos. Que é o que eu estou a fazer.

Reparo na minha atitude e sinto um certo embaraço, como se alguém estivesse a olhar para mim. Como se a minha insignificância neste planeta do consumo pudesse ter interesse particular para algum ser invisível pronto a avaliar o meu comportamento. Que ridículo! Tudo isto é ridículo. E eu também. E depois? Qual é o problema? Um gajo é como se vivesse num filme e desempenhasse o papel principal (como diz a canção dos Talking Heads: "I'm the star of my own movie...").

Será assim que Deus nos vê? Eternamente sentado numa sala repleta com biliões de triliões de écrãs onde se desenrolam ininterruptamente os nossos filmes particulares que Ele vê, todos em simultâneo, omnipresente, retocando os argumentos de cada um, tomando notas sobre a qualidade dos nossos desempenhos para depois, chegado o momento, nos ler a crítica final antes de decidir o futuro da nossa eternidade?

Um gajo não devia ir a um centro comercial logo pela manhã.

5 comentários:

Anónimo disse...

Pois é, e o filme dos ´Tempos Modernos´passou na minha cabeça agora , com o seu texto, mas com nova roupagem. E nós os atores, ah sim com músicas massacrantes, faz favor.
madoka

jugioli disse...

há dias que acordamos assim, qualquer som nos invade, o mundo nos invade....
somos personagens com variações cromáticas.

bjs

Silvares disse...

Madoka, a nossa modernidade é o futuro das gerações passadas e será passado quando chegarem a gerações do nosso futuro... :-)

Ju, a relação entre som e cor abre universos infinitos de imaginação.
:-)

Anónimo disse...

Nossa ´Cabeça´ , tou lendo texto do Durkheim agora, e vc parece ele falando hahahahahahaha deu um nó agora!
madoka

fab disse...

Já leu Cantiga de Ninar (esse é o título aqui no Brasil), de Chuck Palahniuk? Os barulhomanos, os calmofóbicos. Você iria se identificar. Abraços.