quinta-feira, março 01, 2012

Da arte da espionagem

Esconder dos outros pedaços da realidade é uma tarefa que me dá vontade de rir. É como espantar migalhas para debaixo de um tapete estranhamente colocado sobre o tampo da mesa, deixando o chão abandonado à indiferença das solas de sapatos e botas.

Tentamos agir com uma naturalidade exagerada, como se a colocação do tapete sobre a mesa fizesse algum sentido e a existência de tão sossegadas migalhas não nos interessasse nem um bocadinho. O gesto de as pôr a andar para debaixo do tapete deve ser executado com a elegância de uma distracção indiferente.

Em momento algum podemos comportar-nos como um adolescente que tenha rapado o cabelo e tatuado um 3º olho bem no meio da testa e, ainda assim, pretenda agir com naturalidade na presença de outras pessoas. Seríamos imediatamente notados e a nossa inocente tarefa de esconder pedaços da realidade havia de diluir-se no espaço em volta, tornando-se parte dele e, logo, respirável por olhares alheios.

Manter os nossos gestos ao mesmo nível das nossas intenções, fazer do movimento do corpo uma coisa mental e automática, não está ao alcance de qualquer um. A coisa exige uma cabeça descomunal, uma cabeça que possa armazenar suficiente espaço vazio.

Misturar o gesto com a reflexão abstracta, a impureza do gesto com a pureza da sua ausência, é a alquimia dos grandes espiões, o combustível que lhes alimenta a máquina da sobrevivência.

4 comentários:

Anónimo disse...

Um verdadeiro tratado sobre como deve agir um homem ( mulher ) da CIA, KGB e similares pelo mundo a fora!!!!

the dear Zé disse...

o Le Carré não diria melhor...

Li Ferreira Nhan disse...

Adorei! Que reflexão!! E a imagem não poderia ser outra!
Incrível, ótimo! Como disse o Edu; um verdadeiro tratado.
Esse teu post veio mesmo a calhar.
Caberia perfeitamente por esses últimos dias lá no Varal do Edu.

Silvares disse...

Eduardo, serve para mentirona de espião e mentirinha de menino.
:-)

Dear Zé, Carré é quadrado.
:-D

Li, sinto-me lisonjeado.
:-}