quinta-feira, julho 30, 2009

Um texto e um pretexto


Ao ler o texto acima (sacaneado do livro Lenda, Mito e Magia na Imagem do Artista - uma experiência histórica da autoria de Ernst Kris e Otto Kurz, editorial Presença) encontramos referências a uma série de anedotas relacionadas com o acaso enquanto método artístico(anedota é aqui entendida como a narrativa de um certo tipo de acontecimento que se repete ao longo de diferentes gerações, acabando por enformar as nossas noções do passado e, por arrastamento, construindo discretamente a nossa visão do presente).
Repare-se como Piero de Cosimo, por exemplo, imaginava batalhas magníficas olhando para manchas de vomitado escorrendo pelas paredes. Ou como o insuspeito Leonardo sugere que nos percamos em observações que a maioria poderia tomas por absurdas. Tem tudo a ver com imaginação e sugestão.
Vem isto a propósito da conversa sobre Canibalismo Cósmico e Hibridização Anárquica. Alguém seria capaz de imaginar Leonardo de Vinci a sugerir tais processos de exercitação da mente? Volvidos alguns séculos encontramos em Max Ernst a sugestão deste tipo de atitudes na busca de um processo criativo que lhe permitisse encontrar maneira de dar forma visível ao Automatismo Psíquico surrealista (atirar trapos embebidos em tinta contra a tela em branco e ficar a olhar para as manchas daí resultantes até elas significarem algo, por muito estranho que esse "algo" possa parecer). Lá no fundo, a esponja de Protógenes, os vómitos que fascinavam de Cosimo, as manchas de humidade de Leonardo, os trapos sujos de Ernst, são antepassados ilustres da modesta Hibridização Anárquica. Mas a Hibridização é mais complexa.
Volto ao tema para a semana. Acabou-se-me a cervejola e vou de fim-de-semana.
Até 2ª (acho eu...)

Como funciona a hibridização anárquica

Após ter escrito o post anterior fiquei aos saltinhos. Como explicar o processo? Terá algum interesse? Mas que raio de coisa é essa? Hibridização Anárquica? Porra de expressão pomposa a soar mais pretensiosa que renda no punho da camisa. Como já não desenhava nem pintava há demasiado tempo pensei "Nem é tarde nem é cedo!" e fiz o que segue. Como ainda não tem título podes ir inventando um que se lhe ajuste. por mim tudo bem, Se é hibridização aceita enxertos variados e, se é verdadeiramente anárquica, então será aquilo que tu quiseres, simpático leitor.

Começando pelo princípio.

Um cartãozinho tamanho A3 (as costas de um bloco). Um tubo de cola UHU (tenho sempre vários espalhados pelo ateliê) e jornais e revistas e outros restos. Um CD a tocar na aparelhagem (Beatles, Sargent Peppers Lonely Heart Club Band, neste caso) e uma cerveja fresca. Está bastante calor e estou com pressa de acabar pois quero ir ver um jogo de futebol na TV a menos de uma hora de distância. A camara fotográfica tem as pilhas a darem o berro. Como se pode ver nao há muita luz. Colo um rasgão da capa do ùltimo Ypsílon, com as mãos da Agnés Varda, um CD (oferecido com o Público) com 3 temas execráveis dos Taxi e um recorte que sobrou de outra colagem de uma coroa de uma virgem de um ícone ortodoxo de um artista ucraniano que teve uma exposição no Fórum Romeu Correia aqui há uns meses atrás. Tudo isto e tubos de tintas, uma garrafinha de tinta-da-Índia uma lata com tinta de pintar paredes bastante sêca... enfim, os materiais habituais. Colo as coisas (podiam ser outras). Lucy in the sky with diamonds (o som podia ser diferente), sei lá que mais. É tudo, aparentemente aleatório.

A dsiposição das formas sobre o fundo configura, de imediato, uma espécie de corpo. Os meus trabalhos representam sempre seres humanos ou, pelo menos, coisas parecidas. Começo por desenhar algo parecido com um anjo. Tem asas e o CD ganha a posição de um astro no céu. Os dedos enrugados da realizadora francesa já são pernas.
O canto inferior esquerdo parece-me desoladoramente vazio. Três ou quatro toques de pincel generosamente mergulhado em tinta-da-Índia (podia e devia ser da China mas o rótulo é que manda)fazem surgir ali uma nova personagem. Tem o aspecto de um animal embora eu pensasse que seria uma criança. Apercebo-me que criança é a outra personagem. Deixo de a imaginar como uma santa ou uma Virgem e passo a olhá-la como uma princesinha. As asas fazem, agora, pouco sentido. Colo, na esquerda alta, o resto de um outro desenho que andava para aí esquecido.

A princesinha está demasiado semelhante ao bicharoco. Isso desagrada-me. No jornal aberto no chão está a cara de uma cantora qualquer em pose de artista. Olhos semicerrados, queixo empinado. Rasgo-a e colo-a. Não é por nada em especial que escolho esta cara. Apenas porque estava ali, disponível. Mais umas pinceladas e ganha uma expressão de algum alheamento. O que se passa nesta cena? Começo a pensar nisso com maior intensidade.

A tinta branca está muito espessa. Isso agrada-me. Tenho a possibilidade de cobrir a superfície com uma tinta satisfatóriamente opaca. Auilo que eram asas afinal é uma corda de saltar. A princesinha está a divertir-se saltando à corda. Isso é bom. É bonito. Tem leveza.

Até aqui, não sei porquê, tenho insistido numas orelhas enormes. Estarei a pensar numa Princesa com Orelhas-de-Burro? Não me lembro bem da história e resolvo tirar-lhe as orelhas. Há um buraco no peito da menina. Folheio uma revista da CAIS (costumo comprá-la todos s meses) e encontro uma foto de uma senhora operária numa fábrica (imagino) de conservas. Rasgo um pedaço com um amontoado de peixes. tem a cor e o tom certos para a composição.

O bicho (que bicho é aquele?) continua com uma cara inexpressiva. Rasgo a imagem de um gajo qualquer a coçar a orelha. É um gesto que fica bem a um animal doméstico. Colo.

Os Beatles já estão numa desbunda complicada (aquele álbum é estranheco!). Passaram aí uns 25-30 minutos desde que comecei a juntar formas e significados sobre o cartão. O jogo vai começar não tarda. Vou acabar. O animal está a cagar. A princesinha levou o bicho à rua para defecar. Deve ser isso. Pronto. Está pronto. Acabado. Falta um título e falta perceber o significado daquilo.

Isto é hibridização anárquica, é canibalismo cósmico. Amanhã explico melhor. Se for capaz.

quarta-feira, julho 29, 2009

O círculo enquadrado


The Burning Heads, técnica mista, exemplo de uma criação resultante do processo de "hibridização anárquica" por mim realizada há uns anos atrás. Quando partimos para o processo de criação de um objecto não fazemos ideia do lugar a que iremos chegar.

Damos voltas e mais voltas e lá voltamos nós, à esquina do círculo do tempo, esse local improvável onde tudo o que não pode ser verdade encontra fortes probabilidades de se materializar num corpo até aí inexistente. Antigamente era nas encruzilhadas que as bruxas enterravam poderosos feitiços, esperando depois o efeito das suas acções. Nem sempre corria conforme o previsto, que isto da feitiçaria não é ciência e, mesmo a ciência, se parece demasiado vezes com coisas abstrusas e incompreensíveis. Coisas que, ganhando um nome, deixam de o ser e encontram um lugar, nem sempre confortável, entre os objectos e os factos. Quando assim é, deixam de ser "coisas" e ganham um nome que as coloca numa prateleira qualquer da casinha imensa que é o nosso entendimento do mundo. Isto é verdade para a ciência como para a feitiçaria e, obviamente e por maioria de razão, para a arte (a mera designação "arte" é "coisa" mais do domínio do fantástico que da realidade objectiva, como vem sendo matraqueado ao longo de dezenas de posts aqui, no 100 Cabeças).

Esta introdução traz-nos quase à porta de saída. Vem ela a propósito da uma entrevistazinha de Leonel Moura que acabei de ler aqui agora mesmo. A entrevista roda em volta da última obra escrita dé Moura, intitulada "30 Gramas", numa referência à imortal obra de Piero Manzoni, a celebérrima Merda de Artista.

O que me motivou a construir esta prosa arrevezada foi a passagem da dita entrevista que a seguir transcrevo: "Desde muito jovem sempre li livros sobre ciência e gosto de tentar perceber algumas coisas. O que mais me deu a volta à cabeça foi perceber que as coisas não funcionam em processos lineares ou consequentes. Percebi que tudo funciona numa base caótica, aleatória e de repente é que as coisas se transformam e dão origem a algo que nós conhecemos. Todo o sistema da produção de arte em que se concebe uma coisa com processos lineares até chegar a um quadro é completamente obsoleto. Tenho de fazer obras de arte em que eu desencadeio o processo mas não sei no que vão dar porque isso é que se aproxima da realidade natural. "

Concordo quase completamente com esta hipótese de Moura. Há muitos anos que, também eu (quantos de nós, meu Deus!?), cheguei a esta conclusão, se bem que por outras vias e travessas. Uma das vias para eu aqui chegar até foi um livro sobre ciência, o muito citado "Caos" de James Gleick, onde li pela primeira vez a célebre teoria do "efeito borboleta" e outras enormidades maravilhosas. Nessa altura, juntamente com alguns gajos como eu, escrevemos um pequeno manifesto (entretanto perdido) intitulado "Canibalismo Cósmico" onde expunhamos de uma forma mais ou menos ordenada, algumas ideias sobre o processo criativo que chamámos de "hibridização anárquica".

Agora, ao ler a passagem acima transcrita da entrevista de Leonel Moura, recordo a sensação que me inundou quando reli e matutei sobre o texto que, então, tinha escrito. A sensação nítida de que aquilo que, naquele momento, era para mim uma revelação absoluta e luminosa, já havia sido percepcionado por muitos outros, antes de mim e haveria de voltar a sê-lo, ao longo do tempo e por muitos anos, sempre que alguém chegasse àquela esquina do círculo do tempo.

"Hibridização anárquica" era o nome que eu tinha dado à "coisa", puxando-a para o lado de cá da existência, trazendo-a a este universo paralelo, moldando-a numa forma algo imperfeita e inconstante. Essa coisa regressa uma e outra vez, com formas mais ou menos semelhantes. As latinhas de merda de Manzoni ou o Urinol de Duchamp são formas supremas de materialização dessa revelação eterna. Eu terei criado formas mais modestas de a manifestar neste mundo através dos meus trabalhos mas, caramba, também tenho o meu orgulho, sou um animal igual aos outros, senti necessidade de o reafirmar. Também eu fui capaz de enquadrar o círculo quando percepcionei uma das suas infinitas esquinas. E sou vaidoso ao ponto de o recordar aqui, quase publicamente.

terça-feira, julho 28, 2009

Nada (como no mar)




O Verão, se fosse uma pessoa, havia de gostar da leveza que o "doce não fazer nada" oferece, assim, como quem não quer a coisa. A gente veste pouca roupa, anda com o pé fora da sandália e deixa o olhar à solta por não haver muito que possa preocupá-lo. As conversas podem nem sequer ter um início e raramente levam a um fim. É tudo assim, um bocado ao lado da dureza que a realidade costuma ter, como se a realidade fosse meio derretida pela luz intensa e o calor do Sol. A realidade, quando é aquecida pelo Sol, muda de figura. No Verão vivemos uma quase miragem da vida.


Tenho um livro por perto mas não me apetece ler. Os materiais de pintura preparados mas não me apetece pintar. Até mesmo o cérebro parece não querer pensar muito mais do que isto, não querer passar deste desfiar indolente de palavras ao acaso que, no final, haverão de significar alguma coisa, quanto mais não seja o princípio de um pensamento diluído na paisagem das letras que vou deixando, umas atrás das outras, ao longo do texto que surge do fundo branco do écrã.


Vou parar de escrever para a seguir não fazer nada.




segunda-feira, julho 27, 2009

Cabeça cheia de vazio


Uma praia e muito sol. O mar daquela cor... esmeralda? Pessoas morenas ou nem por isso. Um ambiente pacífico banhado pelo Atlântico a namorar o Mediterrâneo. Uma aldeia que é pura invenção onde a vida se desenrola ao ritmo das ondas. Calmaria absoluta. Isto é, assim de repente, o que me é dado recordar dos últimos dias, passados na Ilha de Armona, atirada ao mar, ali defronte a Olhão. Um Algarve absoluta e genuínamente português, a fazer-me acreditar que há lugares impossíveis de estragar com aldeamentos turísticos de pacotilha e canalizadores ingleses em férias armados em lordes malcriados. Um lugar para esvaziar a cabeça e enchê-la de coisa nenhuma. Paz, apenas. O que já é muito e é tudo, ou quase nada, ou nada mesmo. Absolutamente nada. O fim-de-semana passou assim, como uma nuvem. Volto lá no próximo. Será possível repetir o sossego que encontrei? Talvez. É por isso que lá volto. Em busca desse sossego, para tentar encher de vazio os espaços na minha cabeça que ainda têm algum lixo.

sexta-feira, julho 24, 2009

Post coelhinho


O meu anterior post, o Post Macaco, foi comentado de forma muito interessante por vários visitantes do 100 Cabeças. De tal maneira que resolvi responder aos comentários criando este post, um post sem o atrevimento do macaco, antes com a atitude dócil e compreensiva do coelhinho.

Antes do mais queria deixar bem claro que as minhas posições perante o fenómeno da criação e fruição dos objectos de arte não pretendem ser absolutas nem imagino que possa haver uma forma única de encarar a situação. Neste campo sou adepto confesso e devoto do grande mestre E. H. Gombrich que afirmou, na introdução da sua magistral História da Arte que "Não existe algo a que se possa chamar Arte. Existem apenas artistas." Se tomarmos esta afirmação como ponto de partida, muitas questões, aparentemente complexas, encontram uma resposta desarmante de tão simples. Deixamos de ter dúvidas sobre o que é ou o que não é arte. Uma vez que não existe, nada é arte e tudo pode sê-lo desde que seja resultado da actividade de um artista.

Esta perspectiva da coisa coloca o espectador no centro da questão. O espectador completa a obra. Cito Gombrich mais uma vez: "De facto não penso que existam quaisquer razões erradas para se gostar de uma estátua ou de uma tela. Alguém pode gostar de uma paisagem porque lhe recorda a sua terra natal ou de certo retrato porque lhe lembra um amigo. Nada há de errado nisso. Todos nós, quando vemos um quadro, somos fatalmente levados a recordar mil e uma coisas que influenciam o nosso agrado ou desagrado. Na medida em que tais lembranças nos levam a fruir do que vemos, não temos que nos preocupar. Só quando alguma recordação irrelevante nos torna preconceituosos, quando instintivamente voltamos costas a um quadro magnífico de uma cena alpina, porque não gostamos de alpinismo, é que devemos sondar o nosso íntimo para desvendar as razões dessa aversão que frustra o prazer que, de outra forma, poderíamos ter tido. Também existem razões erradas para não se gostar de uma obra de arte." O espectador é, em larga escala, responsável pela existência da arte. Daí que, no Post Macaco, me tenha insurgido um pouco contra aqueles que se comportam com indiferença perante o objecto artístico. Talvez o problema seja mais a forma como, com espectadores deste género, a arte se vê impedida de existir ou, pelo menos, impedida de acontecer. É também por isso que sou levado a considerar que talvez alguns artistas sejam responsáveis por esse alheamento, quando criam objectos de tal modo encriptados que não permitem ao espectador ir mais além do que a superficíe da obra. As pessoas olham mas são incapazes de ver. Talvez isso devesse contribuir para que o artista repensasse a sua atitude criativa. Ou não. A criação artística ou é totalmente livre ou não é nada.

Como este post é Coelhinho, estou a tentar ser o mais consequente e brando que me é possivel, o que me leva a escrever de uma forma algo diferente do habitual e que, confesso, me está a complicar o sistema comunicacional.

Para concluir (que um post tão longo é mais chato que um discurso do Presidente da República numa cerimónia de inauguração de um infantário) queria deixar uma palavrinha particular a cada um dos comentadores.

Beto, como te disse, a perfeição é uma coisa que só existe na mármore.

Luís M, a nossa conversa é interminável e dinâmica. Continuamos depois. Assim como assim sempre te digo que tens toda a razão em afirmar que a arte é elitista mas, nos tempos que correm, democráticos e tudo, talvez tenhamos de reflectir de novo sobre o significado da palavra "elite" e respectivo conceito.

Eduardo, antes do mais esse Luís M aí em cima é meu colega, professor na mesma escola e na mesma área que eu. Clicando aqui encontras um post antigo em que anunciava a inauguração de uma exposição em participámos ambos. O "M" é de Miranda (Beto, neste post está o tal desenho intitulado Knock) e podes encontrar aí duas reproduções de trabalhos dele. Quanto ao barulho nos museus estou totalmente de acordo contigo. Um museu não pode ser um cemitério de obras de arte. Terá de ser outra coisa.

Selena, penso que as citações de Gombrich vão de encontro às questões que colocas. Toda a gente sabe o que pensar sobre um objecto de arte. Tem é de se dar ao trabalho de pensar, o que nem sempre acontece.

Rui, esse Shakespeare era um grande macaco :-) o tempo não o colocou num galho, acabou por lhe oferecer uma floresta inteira! Já a citação de Sophia leva-me a recordar a ideia de Mondrian que citei neste outro post, um dia a arte vai ser desnecessária pois a vida ganhará beleza suficiente. Isto partindo do princípio que a arte é a criação da beleza mas isso são já contas de outro rosário...


Concluo dizendo que, pessoalmente, considero que o artista tem um papel socialmente interventivo que não deve ignorar quando se dispõe a criar objectos de arte. Esta consideração será tema para futuros posts aqui, no 100 Cabeças.

quinta-feira, julho 23, 2009

Post macaco


O que eu pretendia dizer com o post anterior (e mantenho) é que a arte deve ser acessível ao maior número de pessoas possível. Isso não significa que tenha de ser óbvia ou estereotipada. Nada disso. A arte deve ser como um soco no estômago ou uma carícia impossível de resistir. As pessoas que observam um objecto de arte não podem comportar-se como catatuas numa gaiola nem como bois a olhar para um palácio. Não podem ficar indiferentes. Essas pessoas são chamadas a intervir pois só elas completam o objecto de arte.

Esta evidência nem sempre esteve visível no meu espírito conturbado. Mas, ao visitar o MoMA, só para dar um exemplo, e vendo a forma como os visitantes se passeiam entre os objectos artísticos como se estivessem a passear no Centro Comercial a ver montras de sapatarias e pronto-a-vestir, fico com vontade de não voltar a pôr os pés num sítio como esse. Por um lado, o consumo desapaixonado da arte é irritante para quem por ela está apaixonado. Por outro lado, demasiados objectos insignificantes são valorizados até ao paradoxo o que torna o paspalho ignorante num indiferente convencido de que sabe alguma coisa, só porque leu o catálogo da exposição. Falta pele arrepiada, coração descompassado e boca sêca pela ansiedade. Sobram olhares, poses, risinhos forçados e outras patacoadas do género.

Quando terminei o post anterior com a imagem dos artistas a esfregarem-se em merda, estava tentar ironizar com esta situação. Coisa que, aliás, até nem é inédita. Muitos artistas, em desespero de causa ou falta de talento, metem-se a produzir obras grotescas, tomando atitudes dignas de um macaco malandro a pedir amendoins no Jardim Zoológico. Alguns conseguem mesmo engordar. Os macacos, claro!

quarta-feira, julho 22, 2009

A merda e arte (ou a arte e a merda)


Pronto, finalmente cheguei a uma conclusão: a arte ou veicula um discurso que se compreenda ou não vale a pena.

Leio a frase anteriror e percebo que não disse o que queria dizer. Então eu repito: a arte ou é para o povão compreender ou então, se for coisa para masturbaçao intelectual e para fazer prova de superioridade cultural, mais vale que se cubra de merda.

Não está bem, não estou a ser capaz de exprimir aquilo que a minha mente está a formular com uma clareza ofuscante e que, escrito e dito assim, nestas letrinhas no écrã luminoso, não ganha sentido nem a contundência pretendida.

Reformulo uma última vez: a arte é para narrar a história colectiva, para fazer pensar os mais distraídos e pôr a chorar os mais atentos, se for abstracta ao ponto de apenas reflectir sobre si própria e os seus limites é como o cão que tenta morder o próprio rabo ou o parvo que pretende lamber o cotovelo.

Caramba, a linguagem escrita é mesmo uma tanga. A falar talvez pudesse exprimir-me um pouco melhor. As caretas, os gestos das mãos, o jogo de ombros, a entoação dramática da voz cavernosa ou patética, com a estridência de um passarito, sempre dão outro colorido à coisa.

Talvez pudesse ilustrar a dita coisa com uma imagem (isso é que era!) mas também não estou para aí virado.

Resumindo e concluindo, quero que a arte seja expressiva ou, então, não é. Nem expressiva, nem arte. Fica assim a meio caminho, uma epécie de aborto espontâneo, um ser fadado para a tristeza, uma coisa pedante que até pode ser bela mas cuja beleza reside, precisamente, no vazio.

Não temos de temer o amor dos estúpidos nem dos patetas nem dos feios nem dos mal-educados e simples como beterrabas. Não temos de temer o desprezo dos lindinhos nem dos enfatuados nem dos intelectuais nem dos mais altos nem dos mais magros e bonitos. Se queremos fazer arte temos de meter as mãos na merda e esfregá-las na cabeça e mostrar o que esse acto desesperado produziu dentro de nós.

Eheheheh, já estou a imaginar a cena, uma chusma de gajos e de gajas cobertos de merda a berrar no meio da rua... artistas!

segunda-feira, julho 20, 2009

Parece que me lembro de qualquer coisa


Não tenho a certeza. Afinal tinha apenas 6 anos. Não me lembro se o meu pai já me tinha oferecido o Billy Blastoff, um bonequito vestido de astronauta, com um carro lunar que ele comprou algures em Espanha que em Portugal, naquela época, era mais comum o carro de bois. Tenho uma vaga recordação de estar a jantar numa mesa com outras crianças em casa de uns amigos dos meus pais e de passarem na TV a preto e branco imagens relacionadas com a viagem. Mas pode ser uma partida da memória, não sei nem isso me interessa por aí além. Já lá vão 40 anos e a viagem não terá contribuido para mudar grande coisa cá por baixo. Tudo isto cheira a nostalgia. Talvez sirva para se fazerem mais algumas promessas de regresso ao espaço, para se produzirem alguns discursos meio vazios, meio cheios de vazio, sobre a sensação de pequenez que se sente quando se olha a Terra lá do alto do espaço e os impulsos de profundo humanismo que essa visão provoca. Fica a impressão de que se deveriam meter os grandes líderes mundiais e os grandes senhores do capital todos dentro de uma nave espacial e mandá-los lá para cima, para que olhassem cá para baixo e nos vissem, pequeninos, por uma vez que fosse. Podia ser que alguns se perdessem lá no meio das estrelas e por lá ficassem a brilhar na escuridão.

domingo, julho 19, 2009

De Nova Iorque a Lisboa com um estranho Deus por companhia


Lisboa em cima, Nova Iorque em baixo (e poderia colocar as imagens vice-versa)

E.H. Gombrich sintetiza, de forma genial, a condição fundamental do acto criativo. A ideia base que expõe na sua História da Arte (uma autêntica Bíblia para quem segue esta "religião") é que o acto criativo depende sempre de um tempo e um lugar específicos.

Ontem pude confirmar com uma clareza ofuscante a exactidão absoluta desta ideia tão simples e, por isso mesmo, tão bela. Assisti no Teatro Aberto, em Lisboa, à representação de "O Deus da Matança", a peça de Yasmina Reza. Tinha assistido no passado dia 3 de Julho à representação da mesma peça em Nova Iorque, "The God of Carnage", em pleno universo da Broadway. As diferentes interpretações do mesmo objecto confirmam em absoluto a ideia de Gombrich.

Na peça da Broadway, com um elenco constituído por vedetas do cinema americano, a peça ganha uma dimensão profundamente introspectiva e assenta numa representação mais cerebral do humor negríssimo e desarmante que o texto propõe. Em Lisboa, os actores são dirigidos para uma postura diferente, mais física e "clownesca".

É como se em Nova Iorque a comédia surgisse quase por acidente. Ali, uma situação muito séria (o filho de um dos casais agrediu à bastonada o filho do outro casal, partindo-lhe dois dentes e deixando-o desfigurado) contém ingredientes hilariantes que vão surgindo ao longo da representação. Na peça de Lisboa a comédia é assumida logo à partida e a comicidade da situação é exposta com outro grau de evidência. Ou seja, o mesmo ponto de partida dramático é interpretado de acordo com as vivências de quem os leva à cena. Um Novaiorquino olha e interpreta o mundo de uma forma essencialmente distinta de um Lisboeta. Os actores são diferentes, os espectadores também, logo o objecto artístico assume contornos de acordo com o local onde ganha forma.

Bastaria olhar os cenários e os figurinos para compreendermos a ideia de Gombrich. Neste caso, o mesmo tempo (a mesma época) leva à produção de objectos diferentes em locais diferentes. Estas duas idas ao teatro permitiram-me compreender melhor as distâncias entre Nova Iorque e Lisboa, apesar da tão propagandeada globalização económica e cultural em que acreditamos viver. Somos profundamente diferentes apesar de parecermos estranhamente semelhantes.

quarta-feira, julho 15, 2009

Não me apetece falar mais de Nova Iorque (tertúlia final)

Não me apetece e no entanto é, ainda, de Nova Iorque que falo neste post. Que raio de contradição! Ou talvez nem por isso. Se calhar até faz sentido, embora me pareça que estou a abusar da falta de conteúdo, escrevendo uma sequência de frases que não fazem sentido nenhum. Imagino que seja a isto que certos escritores se referem quando utilizam a expressão "caminhar sobre o vazio"... uma pessoa desiquilibra-se e cai, infinitamente, até ao esquecimento. A Tertúlia Virtual, ao que parece, chega ao fim. Pronto. Caiu no vazio. Vamos recordá-la enquanto lhe dizemos adeus. Amanhã será uma grata recordação. Como Nova Iorque. Como a bela sanduiche de presunto que comi há umas horas. Como outras coisa de que já não me lembro. Adeus Tertúlia. Olá Coisa Nova (sejas lá tu o que fores). Agora estou confuso. Já não sei se Nova Iorque foi, de facto, o tema deste post. Se calhar não foi. Então talvez a conversa não seja tão parva como parece. Eventualmente até que é completamente estúpida. A conversa, quero dizer...

sexta-feira, julho 10, 2009

Nova Iorque - Parte 4.1 (As festas)




Quis o destino que a viagem que a minha família fez a Nova Iorque coincidisse com as duas maiores festas lá do sítio. Primeiro foi a Parada do Orgulho Gay, no dia 28 de Junho, se não estou em erro. Depois o 4 de Julho, no dia 4 de Julho.

A Parada nunca mais acabava. Foram umas 4 ou 5 horas de desfile dos mais variados grupos e organizações. Desde os que pedem que o casamento homossexual seja legal (why not?) aos que pedem votos para serem eleitos. Ele eram candidatos a mayor, candidatos a senador e candidatos a mais não sei o quê, que nao sou de lá e não percebo tudo como se fosse.

Foi um espectáculo do caraças. Figuras bizarras e coloridas davam largas à sua alegria por lhes ser permitido manifestarem-se livremente, mostrando a diferença (que começa a ser semelhança, tantos são os gays e as lésbicas). O povão que assistia sob um sol inclemente aplaudia, ria, uivava, participando da festa. Para mim, que sou um homem da Beira Alta, tudo aquilo me pareceu uma mascarada bem disposta, a lembrar, por vezes, os corsos de carnaval trapalhão que por aí se fazem quando não tentamos imitar o carnaval do Rio em pleno Inverno. A normalmente arrumadinha 5ª Avenida parecia um rio de maluquice, umas vezes histérica, outras vezes apenas extraordináriamente bem disposta.

No fim parecia um rio de detritos. Tudo e todos haviam distribuído panfletos, rebuçados, preservativos (femininos e masculinos... para que servirão os preservativos femininos numa relação lésbica? Ha, já me esquecia, há também os "gilletes", aqueles que dão para os dois lados!) saquinhos de plástico, papelinhos, eu sei lá que mais. Uma confusão tremenda. Após o último carro alegórico perfilavam-se os carros da limpeza municipal.

Já o 4th of July foi outra história. Conto amanhã.
Quis-me parecer que aquela infinita parada de personagens espampanantes revelava bem o espírito de NYC. A cidade é uma espécie de portal entre dimensões da realidade. Aquilo não existe. Não pode existir. É demasiado grande, demasiado excessiva mas, ao mesmo tempo, demasiado organizada e lógica. A lógica de Nova Iorque não demora nada a ser apreendida pelo mais distraído dos visitantes; é fácil de perceber. Como diz a canção do Jorge Palma, "na terra dos sonhos podes ser quem tu és, ninguém te leva a mal, na terra dos sonhos toda a gente trata a gente toda por igual"... mais ou menos.

quinta-feira, julho 09, 2009

Nova Iorque - parte 4 (Uma provocação)


A tela de Van Gogh no Guggenheim, ao vivo não parece tão bela.


Até que ponto a arte e os artistas contemporâneos são meros produtos de consumo para as massas? E os velhos mestres? Começo a pensar que a forma como os grandes museus estão "equipados" se baseia em amontoar nomes, independentemente da qualidade das obras.
Em Nova Iorque é até um pouco ridículo verificar que todos se esforçam por terem expostos um Pollock, um Rothko, um Franz Kline, um Jasper Jones e um De Kooniguezinho, como se isso fosse, por si só, garantia de publicidade positiva. Mas, o Turista Cultural atento e menos avisado, poderá até pensar que está a ver as mesmas obras em espaços diferentes.
No museu Guggenheim (um hino de espectacular e estranha harmonia à arte arquitectónica) havia um amontoado de pessoas defronte a uma tela de Van Gogh. Mas tratava-se de um fraco Van Gogh. Os espectadores estavam muito próximos uns dos outros, em poses mais ou menos bizarras, fixados na imagem como se dela esperassem retirar alguma magia.
Fiquei a pensar que todos eles (aqui eu já estava de fora, a olhar as pessoas) esperavam ansiosamente sentir alguma coisa. Estavam assim, hirtos como uma Vénus de Milo, na expectativa de que o contacto com uma obra de um dos maiores pintores da História da Arte lhes proporcionasse uma sensação extraordinária. Olhando as suas expressões pareceu-me ver apenas estupefacção, talvez, por não sentirem nada de especial. Seria isso possível? Penso que sim. Um nome não representa nada. O que poderá representar alguma coisa é a obra em si e aquela tela de Van Gogh é, apenas, um exercício de pintura, uma experiência entre duas obras-primas.
Para o consumidor de arte as telas são todas mais ou menos a mesma coisa. O que importa, acima de tudo, é o nome na assinatura. O nome vale pelo resto. Vale pela nossa falta de conhecimento, pela ausência de sensibilidade e, acima de tudo, é o nome que nos impede de classificar adequadamente tantas e tantas obras expostas nos grandes museus por esse mundo fora. No Guggenheim há um conjunto de telas de Cézanne simplesmente assustadoras de tão cruas no trato pictórico. Mas, tal como perante o Van Gogh atrás citado, os espectadores consomem-se tentando explicar a si próprios no silêncio interior que os apoquenta porque razão aquilo lhes parece pouco mais que uma valente merda, apesar do nome no canto inferior direito. E ali ficam(os), especados, como árvores tristes numa floresta queimada.

Nova Iorque-Parte 3 (O Turista Cultural)


Ser Turista Cultural é complicado. Quando um Turista Cultural se aproxima de uma coisa como o Metropolitan Museum of Art tem de cerrar os dentes e avançar com coragem e determinação. É quase como pegar um touro desembolado ou ler de uma assentada a imortal obra de Proust "À Procura do Tempo Perdido" (coisa que eu nunca fiz, mas conheço quem tenha feito e tenha sobrevivido).

Um gajo pode perder-se, ficar confuso, nauseado, sem saber muito bem para que lado se haverá de voltar. O melhor é centrar a atenção em algo específico e tentar desfrutar apenas uma parte do monstro já que pretender abarcá-lo todo numa visita seria trabalho digno de Hércules.

Foi o que fiz. Dirigi-me ao piso dedicado à pintura europeia e por ali me perdi mais uma vez. Para finalizar visitei a retrospectiva de Bacon e já me dava por satisfeito. Mas... não podia abandonar um local pejado de tantos tesouros. Resolvi deambular sem grande sentido nem destino pelas salas e diferentes pisos do Museu. Gregos, romanos e egipcios, povos daqui, dali e dacoli, tudo misturado por uma enorme e invisível varinha mágica. Fiquei fascinado com as espectaculares peças oriundas do Pacífico, principalmente as da Nova Guiné. Caminhei, caminhei, olhei para todos os lados e senti-me perdido. Tinha sido apanhado pela terrível síndrome do turista cultural. Resolvi sair dali, afastar-me daquele antro de perdição intelectual. A custo lá consegui dirigir-me para a saída. Uma vez cá fora fui encontrar-me com a família que já descansava calmamente na relva do Central Park. Sentei-me, descalcei as sandálias e o contacto dos pés com a frescura verde da relva trouxe-me de volta a mim próprio e à realidade do mundo real.

Rai's partam aquele maldito lugar! Agora, tentando recordar o que vi, sinto um aperto no coração. Tenho a sensação de que não vi nada. Estou cheio de dúvidas em relação ao que perdi tal como tenho dúvidas de ter ganho alguma coisa. Já me tinha acontecido algo de semelhante no Louvre que visitei duas vezes no espaço de uma semana. Prometo a mim mesmo não voltar a vestir a pele do Turista Cultural. É uma pele muito apertada. Incomoda-me.

quarta-feira, julho 08, 2009

Nova Iorque-Parte 2.2 (Pollock)

Ainda no MoMA, depois de deixar a família para trás (a minha filha e a minha mulher não têm paciência para me aturar quando estou num sítio assim, eu próprio sinto dificuldades em lidar com a minha pessoa perante tal enxurrada de informação) continuei a minha cavalgada heróica no meio daquela floresta encantada.

Cada nova sala produzia em mim um efeito de estupidificação ou, pelo contrário, de desapontamento. É absolutamente impossível dar notícia de todas as sensações, sentimentos, ideias, vontades e etecetera e tal que me arrepanharam o cérebro. Transcrevo apenas algumas das notas que registei no meu bloquinho.

Parece haver um Pollock tridimensional nos formatos menores. A técnica pictórica sugere, pelo empastelamento, um Van Gogh completamente passado (se tivesse viajado no tempo, acordando em plenos anos 50 do século XX, Van Gogh haveria de ter pintado mais ou menos daquele modo). Depois há um Pollock mais liquído nos formatos mais avantajados, onde o gesto se solta, se alarga e inventa numa liberdade cambalenate e gotejante. Nesses formatos grandes nota-se bem a zona dos pézinhos em volta do ambiente central, mais massacrado e saturado de sinais gráficos, a zona de deslocação do artista.


É como se as telas tivessem uma moldura feita de vazio. Nem gesto, nem tinta; nada. Sente-se ali a presença do fantasma de Pollock.

Há ainda um Pollock antes de Pollock, aquele que primeiro me fascinou nos livrinhos com fotos. O expressionista abstracto que não conseguia impor-se na cena artística, talvez por não ser suficientemente esquisito para os padrões da época.

Fico a pensar que se Pollock pudesse regressar do Além e ver as suas pinturas e as refizesse hoje, talvez fosse mais excessivo. Há qualquer coisa nas telas expostas no MoMA que me parece resultado de uma certa timidez, uma falta de capacidade para se superar a si próprio. Talvez a consciência de estar a inventar um planeta artístico completamente inovador possa ter condicionado o instinto criativo do velho Jackson. Talvez isso tenha acontecido com Pollock. Talvez isso tenha acontecido a Deus quando criou o Universo.

O Expressionismo Abstracto vive muito da dimensão da obra e do gesto que a superficíe proporciona ao artista. Numa escala reduzida corre o risco de se tornar algo mesquinho e, simplesmente, pretensioso. Olhem-se os casos de Rothko e Franz Kline.

terça-feira, julho 07, 2009

Nova Iorque - Parte 2.1


Já estou em casa. Cansado como um canguru que tivesse andado perdido no Alaska, devido à diferença horária. Não durmo já não sei há quantas horas. Mas não há-de ser nada.


8 dias em Nova Iorque mais dois para ir e voltar já bastavam para desorganizar a cabeça que me resta. Este dia, que parece ter outro escondido dentro do relógio, é fogo! Tenho a cabeça a cozer em fogo lento.


Muitas coisas aconteceram. Há histórias mais ou menos interessantes para contar, como a do gajo que deitava salsichas para o lago no Central Park no dia 4 de Julho ou o estranho grupo que se reuniu uma noite no Higline Ballroom para assitir a um concerto do quarteto de Jazz de Charles Lloyd, mas, para o 100 Cabeças, parece-me adequado dar conta de algumas coisas que vi penduradas nas paredes dos museus de Nova Iorque.


Quando visitei o MoMA tive um vislumbre da dimensão da coisa. Se calhar não percebi nada mas fartei-me de tirar apontamentos.


Uma coisa que salta à vista é que os mestres da Arte Moderna aboliram o erro abrindo uma verdadeira Caixa de Pandora. Confirmei a impressão de que algumas pinturas de Picasso ou de Matisse (para citar apenas dois monstros sagrados) são simplesmente abomináveis. Coisas feias, desgraciosas, desiquilibradas, mal pintadas, sem chama nem o mínimo interesse. Mas isso não parece ser relevante. Estão nos livros de História da Arte e nos postaizinhos de "recuerdo" portanto... claro que estes artistas produziram obras-primas mas também deitaram ao mundo muito lixo, muita poluição visual.


De Chirico, por exemplo, aldraba alegremente nas sombras projectadas e nem sempre satura a superficíe com a tinta necessária para cobrir a tela ou organizar algumas pinceladas malucas que destoam nítidamente do espírito da obra. Mas isto só pode constatar-se "in loco". As reproduções nos livrinhos de arte são muito lisongeiras.


As esculturas de Brancusi (expostas num conjunto de 5) parecem uma metáfora da sobrepopulação da cidade. Atravancadas num pequeno espaço anulam-se umas às outras. Decerto que separadas teriam outra dignidade mas, caramba, há que mostrá-las, há que exibi-las a todas.


Muitas pinturas estão velhas, ganharam uma sujidade pouco saudável e têm o aspecto de um trapo de limpar o pó. Nas telas de Mondrian o amarelo está quebradiço e estalado. As outras cores não apresentam este sintoma de doença, apenas o branco está mais triste que o espantalho do Feiticeiro de Oz por não ter um cérebro que o alumie.


Isto não acontece na pinturinha de Dali (A Persistência da Memória) na sua sumptuosa técnica de óleo de linhaça. Brilhante e mais perfeita que a perfeição de um sonho impossível de ser sonhado. Ao lado o espectacular "Rouxinol Ameaçando Duas crianças" de Max Ernst mostra aquilo que cada vez mais prezo num artista: a sua versatilidade e capacidade de não ter um "estilo" definido. A capacidade de o indivíduo se inventar e reinventar constantemente a si próprio através da criação artística.


Bom, o post já vai longo e há muito mais para dizer. Por exemplo, o guarda da sala anterior estava a comer um chupa-chupa, com o pauzinho fora dos lábios, produzindo um ruído guloso, enquanto duas senhoras com ar de senhoras tiravam fotos com um flash radioso como o sol. O guarda (aquele guarda) não esboçou outro gesto que não fosse mais uma chupadela ruidosa. Parecia não estar ali, parecia uma daquelas personagens patuscas de uma tela de Miró.


Continuei a minha caminhada por aquela floresta artística.

sexta-feira, julho 03, 2009

Nova Iorque (parte 1)


Estou em Nova Iorque há uns dias. Dificilmente voltarei a encontrar um lugar onde haja gente de tantos lugares diferentes, falando tantas línguas diferentes (mesmo o inglês ganha milhares de sonoridades) e movendo-se em tal harmonia. A cidade é estranha de tão grande e de tanta gente que se move nas ruas. Uma amálgama de ferro, betão, vidro e carne em movimento.

O que salta à vista é a extraordinária organização. Tudo é feito de modo a que o dolar possa fluir como a água do Amazonas desembestada em direcção ao imenso oceano. Li há pouco que a bolsa desceu ali em baixo, no Financial District. Cá mais para cima não se notou nada, garanto-vos!

Não há sinal da crise económica nem da gripe-A. Não se passa nada. É como se Nova Iorque fosse a capital do Mundo Extrasuperterrestrial, uma foleirice do género. Esta cidade é imbatível, nada a pode atingir. É assombrosa nos contrastes, extraordinária de tão vulgar. VVou continuar a passear por estas bandas até à próxima 2ª feira. Depois disso terei umas quantas considerações a fazer. Até lá, amigos meus, vou ter de me desconectar.