domingo, julho 19, 2009

De Nova Iorque a Lisboa com um estranho Deus por companhia


Lisboa em cima, Nova Iorque em baixo (e poderia colocar as imagens vice-versa)

E.H. Gombrich sintetiza, de forma genial, a condição fundamental do acto criativo. A ideia base que expõe na sua História da Arte (uma autêntica Bíblia para quem segue esta "religião") é que o acto criativo depende sempre de um tempo e um lugar específicos.

Ontem pude confirmar com uma clareza ofuscante a exactidão absoluta desta ideia tão simples e, por isso mesmo, tão bela. Assisti no Teatro Aberto, em Lisboa, à representação de "O Deus da Matança", a peça de Yasmina Reza. Tinha assistido no passado dia 3 de Julho à representação da mesma peça em Nova Iorque, "The God of Carnage", em pleno universo da Broadway. As diferentes interpretações do mesmo objecto confirmam em absoluto a ideia de Gombrich.

Na peça da Broadway, com um elenco constituído por vedetas do cinema americano, a peça ganha uma dimensão profundamente introspectiva e assenta numa representação mais cerebral do humor negríssimo e desarmante que o texto propõe. Em Lisboa, os actores são dirigidos para uma postura diferente, mais física e "clownesca".

É como se em Nova Iorque a comédia surgisse quase por acidente. Ali, uma situação muito séria (o filho de um dos casais agrediu à bastonada o filho do outro casal, partindo-lhe dois dentes e deixando-o desfigurado) contém ingredientes hilariantes que vão surgindo ao longo da representação. Na peça de Lisboa a comédia é assumida logo à partida e a comicidade da situação é exposta com outro grau de evidência. Ou seja, o mesmo ponto de partida dramático é interpretado de acordo com as vivências de quem os leva à cena. Um Novaiorquino olha e interpreta o mundo de uma forma essencialmente distinta de um Lisboeta. Os actores são diferentes, os espectadores também, logo o objecto artístico assume contornos de acordo com o local onde ganha forma.

Bastaria olhar os cenários e os figurinos para compreendermos a ideia de Gombrich. Neste caso, o mesmo tempo (a mesma época) leva à produção de objectos diferentes em locais diferentes. Estas duas idas ao teatro permitiram-me compreender melhor as distâncias entre Nova Iorque e Lisboa, apesar da tão propagandeada globalização económica e cultural em que acreditamos viver. Somos profundamente diferentes apesar de parecermos estranhamente semelhantes.

6 comentários:

Anónimo disse...

Gostei das observações, embora nunca possa ter achado que um Lisboeta possa ser parecido com um Novayorkino, e vice versa.Como nenhum brasileiro, idem! Pelo contrário, são estranhamente, muito diferentes!

Silvares disse...

Certo. E como são diferentes criam imagens diferentes, mesmo quando estão a falar da mesma coisa. Fenomenal!

Luma Rosa disse...

Interpretamos de acordo com a nossa bagagem cultural, além do que, a inspiração também depende, não somente do tempo, lugar específico e bagagem cultural, como das influências sociais. Em civilizações diferentes, quanto mais as culturas se aproximam, mais o fator social se distancia. O que não era pra ser, então, finjimos que está tudo certo! Ser 'muderno' é ser um bom finjidor? (rs*) Beijus

Silvares disse...

Luma, é isso mesmo. Português não é norte americano apesar dos jeans Levi's, dos hamburgers McDonald's, dos cigarros Marlboro e dos posteres da Marylin Monroe.

Jorge Pinheiro disse...

A equipa do "Olhar Direito", onde me incluo, queria fazer-te uma proposta. Será que me podes enviar o teu mail para o expressodalinha@gmail.com? Obrigado.

the dear Zé disse...

E afinal, vale a pena ir ao T.Aberto ou não?