domingo, dezembro 13, 2009

O que é Pop?


Pode a mera pintura da fachada amenizar o significado daquilo que ela esconde?

A leitura da notícia do Público com o título "Bustos de Oliveira Salazar em estilo pop art" levou-me até aqui, ao atelierdofmf.blogspot.com e deixou-me a pensar no assunto.

Uma passagem do relato da conversa entre a jornalista e o autor dos bustos coloridos captou-me particularmente a atenção, quando Francisco Mota Ferreira afirma: "Nasci em 1972, no Estado Novo, mas obviamente não me lembro de nada. E para quem tem a minha idade ou 20 anos, Salazar é um ícone pop. Não serão os nostálgicos - que os há e muitos - a comprar estes bustos." Salazar como ícone pop... pessoalmente nunca tinha olhado o ditador de Santa Comba por este prisma.

Sou um pouco mais velho que Francisco Ferreira (nasci em 1963) e, para mim, Salazar representa, desde há muito tempo, uma parte importante daquilo que considero desprezível num ser humano. Apesar de afirmar que não é movido por intenções políticas, Francisco Ferreira criou um Salazar como porta-lápis azuis, o símbolo da censura salazrista, e um outro como porta-salazares, o nome dado há décadas aos instrumentos culinários que servem para rapar o fundo aos tachos, duas peças que não abonam grande coisa a favor da imagem de ícone pop do dito cujo.

Mas, a reflexão e a dúvida que quero aqui expor, é a seguinte; podem o tempo e umas quantas pinceladas transformar um ditador abjecto em algo tão soft e, até, vazio, como um ícone pop?

Andy Warhol transformou Mao Zedong em ícone pop, ao nível de Marilyn Monroe, Elvis Presley ou Judy Garland, por exemplo. Esse nivelamento foi alcançado através de uma opção estética uniforme e uniformizadora no tratamento das imagens fotográficas de base. À partida, as figuras esvaziar-se-iam de significado para se tornarem em formas plásticas puras. A leitura destas formas passaria a fazer-se, apenas, em termos superficiais. Sendo assim, os crimes contra a humanidade perpetrados pelo ditador chinês estariam ao nível das performances melosas de Marilyn ou das canções rock do King, tudo por força da magia das cores.

Realmente, o Salazar pop parece-me uma boa ideia quando olhada como atitude estética e projecto comercial mas, na minha retorcida cabeça, a estética não pode dissociar-se da ética e, aí, a coisa fica esquisita e desagradável.

Resumindo, para mim, o ditador de Santa Comba não presta nem pintado. Como atitude pop valorizo muito mais a célebre "Merda de artista" de Manzoni. Merda por merda...

10 comentários:

Anónimo disse...

Também concordo! Merda por merda, tenho dúvidas com qual me simpatizo mais, porém não há dúvida que a idéia é pop, e engraçada! Quais crimes terão sido maiores ou piores : os do Mao ou os de Salazar??? E nem por isso!....É pop sim! E merda!

Chapa disse...

Concordo contigo. A merda é sempre merda, mesmo pintada de cores garridas e disfarçada de Channel.

pedro oliveira disse...

«a estética não pode dissociar-se da ética e, aí, a coisa fica esquisita e desagradável»

Lembro-me há tempos duma discussão semelhante a propósito dum qualquer monumento português na costa africana que teria sido utilizado para traficar escravos,
Segundo alguns puristas aquele «monumento» não deveria ser considerado (era um concurso qualquer) devido à função para a qual teria servido.
Imaginemos (vou dar um exemplo, meramente, teórico como ponto de partida para discussão) que a pintura Paula Rego submetia os modelos (crianças, mulheres e animais) que povoam os seus quadros a tortura (queimava-as com cigarros, infligia-lhes dor) antes de os pintar, daí o sofrimento real que parece brotar de alguns dos seus (dela) quadros.
Essa falta de ética na realização afectaria de algum modo a estética do quadro?
Ou seja o produto final, os quadro como os conhecemos hoje perderiam qualidade se «descobríssemos» que foram realizados com recurso à tortura?
Retomando aos bustos de Salazar, é uma obra/uma ideia com qualidade ou não, independentemente, de quem foi ou do que fez Salazar?

Rui Sousa disse...

A esta hora o homem deve estar a dar voltas sabe-se lá onde, a pensar que a ética do capitalismo baralhou mais uma vez a estética em nome da tal coisa chamada cultura pop. Não será isso mesmo a arte pop? Uma forma de baralhar tudo dentro do mesmo saco para produzir efeitos levezinhos, superficiais, para o menino e para a menina, para o tio e para o avô? Fica bem, é barato e dá milhões, ou se não dá pelo menos já deu. A estética e a ética é das tais discussões que parecem não ter fim. Eu gostava imenso de ser um defensor da arte pura e dura, a arte pela arte, essa coisa que não serve para mais nada senão para aquilo mesmo, mas, depois …. é inevitável a pergunta: então quais são os limites? Vale tudo? O Nabakov escreveu a Lolita e aquilo foi o fim do mundo na altura ( e ainda hoje ), houve editoras que se recusaram a editar o livro. Há aqueles tipos que se matam e filmam tudo e apresentam a coisa como arte. E as corridas de toiros de morte? Aquela que muitos consideram a maior performance artística do homem, onde o tempo e a arte se misturam com o imprevisto da vida e da morte. As perguntas do Pedro Oliveira fazem todo o sentido...e o problema é que eu não tenho respostas coerentes para essas perguntas.
No fundo, no fundo continuamos a só ver o que nos interessa. O amor é cego dizem uns, outros dizem que a estética é dos poetas, …….e o poeta é um fingidor….

Silvares disse...

Eduardo, Salazar foi um criminoso menor, um homem de estatura provinciana em tudo o que fez ou pensou. Comparado com Mao Zedong nem se vê de tão pequenichito.

Chapa, é difícil disfarçar-lhe o cheiro.

Pedro Oliveira, nunca tinha colocado semelhante questão a mim próprio. Quando penso em ética ligada a estética, estou a pensar no papel do objecto artístico após ser largado no mundo. Duchamp mostrou como um objecto retirado do contexto "original" e colocado num ambiente alternativo pode produzir significados absolutamente inesperados. Ou seja, um rapador de tachos colocado no cocuruto de um busto em gesso de Salazar passa a ter outro significado. O que até pode ser uma boa ideia em termos comerciais. Já me parece um pouco banal enquanto projecto artístico.

Rui Sousa, a cultura pop parece ter costas mais largas que um levantador de pesos. Concordo contigo quando falas de uma coisa levezinha mas lembra-te que, por exemplo, Rauschenberg é considerado um artista pop e o trabalho dele é... como dizer?... bom, adiante, há um lado obscuro em todas as formas artísticas e a pop não foge à regra. Quanto aos limites ou à validade de certos objectos enquanto manifestações artísticas acredito que somos nós, indivíduos, que fazemos esse trabalho. Nós completamos o objecto e nós decidimos da sua dimensão artística (ou não-artística).

Lina Faria disse...

Acho que esses déspotas só cabem em deboche na arte.
Hitler, por exemplo, foi satirizado por Chaplin.
Esses malditos só deverim ter espaço à parodias. Travestidos de pop, parece apologia.
Cruzcredo!

pedro oliveira disse...

Rui, obrigado pelas simpáticas palavras.
Gostei de saber (fui investigar os seus «blogs») que esteve, recentemente, em Constância, parabéns pelos desenhos.

Silvares, «quando penso em ética ligada a estética, estou a pensar no papel do objecto artístico após ser largado no mundo».
Diria que um objecto nunca é largado no mundo sem mais.
É largado no mundo num determinado contexto espácio-temporal do qual não podemos dissociar a questão da autoria.
Concretizando, se eu colocar uma lavagante em cima dum telefone e disser que é uma obra de arte, provavelmente, olhar-me-ão com o mesmo ar que olhariam alguém que tivesse atirado uma estatueta à face de Berlusconi; contudo se eu mostrar o mesmo telefone com o lavagante em cima é disser que acabei de comprar uma obra de arte de Salvador Dali, olhá-lo-ão com admiração.

Jorge Pinheiro disse...

Eu, que sou ainda um pouco mais velho, ainda acho que um bom ícone pop era o Alexandre Magno. Quanto mais vetustos melhor. A memória é tão pop que às vezes fica cor-de-rosa!

the dear Zé disse...

E o super-pop limão? Ninguém fala do super-pop limão?
Quanto ao salazar penso como tu, não consigo ficar neutro, o gajo ainda me dá a volta ao estômago. E por falar em vómitos, sabias que fizeram uma estátua estátua ao filho da puta do cerejeira e a colocaram, adivinha... lá no sítio do cristo-rei, na nossa cidadezinha, sem os protestos dos nossos queridos autarcas?
À pois é...

Silvares disse...

Lina, a Pop encerra esse tipo de riscos, ao transformar todo o bicho careta em coisinha colorida podemos estar a limpar o sangue da boca do vampiro!

Pedro, a questão é tão velha como a arte contemporânea. Os limites da atitude estética não sao definidos. Talvez a ética possa ajudar a clarificar as fronteiras da arte. Não estou certo disso. Aqui há pouco tempo li uma definição de Arte (penso que de André Malraux) que dizia: "O que é arte? É fácil. Arte é tudo aquilo que desespera." (não sei se as palavras são exactamente estas mas andam por lá perto)).

Jorge, se calhar é isso. É a memória que é Pop e a Arte apenas se aproveita disso.

Caçador, se reparares, essa estátua do Cerejeira apresenta-o com um rolo (uma escritura?) que parece mais "um das Caldas" a brotar-lhe do baixo ventre. Mensagem subliminar (o gajo ajudou o Slazar a sodomizar o povo português) ou mera inépcia do "artista"? Deus saberá responder...