sexta-feira, dezembro 11, 2009

Da invisibilidade

Pintura monumental de Richard Wright na exposição deste ano do Prémio Turner, na Tate Gallery


É sempre a mesma conversa, o mesmo espanto, algo entre a irritação invejosa e a vertigem do deslumbramento. Obras de Rafael, Rembrandt e Il Domenichino batem recordes em Londres, noticiam com alguma pompa as agências internacionais. Logo a notícia se espalha, mais eficaz que o H1N1, para infectar a imaginação dos mortais comuns, um pouco por todo o lado.

Os números das transacções, como sempre, escapam à compreensão, 28,8 milhões de euros por um mero desenho de Rafael! O que significa essa quantia? "Uma perna do Cristiano Ronaldo", segundo o meu irmão. Ficamos então a saber que uma perna do Cristiano Ronaldo equivale à Cabeça de Uma Musa, o que acaba por fazer algum sentido, dependendo de quem observa e é inspirado pelas imagens.

Aquele desenho, agora tão valioso, não passa de um vulgar e ranhoso esboço saído da mão do mestre em preparação de um dos frescos da Sala da Assinatura. Ora aqui está qualquer de interessante que se pode retirar desta mundanidade entediante. A "Stanza della Signatura" é o local onde se encontra a celebérrima "Escola de Atenas", uma das obras mais reproduzidas e famosas do dulcíssimo pintor de Urbino. É um gabinete coberto do chão ao tecto por formas e imagens, a maioria delas da autoria de Rafael. A fama da "Escola de Atenas" é tão grande que as restantes pinturas da "Stanza" quase se tornaram invisíveis (a sala onde está a Mona Lisa...), o que poderá explicar em parte o sucesso de Richard Wright, vencedor do Prémio Turner deste ano.

Nestas voltas do raciocínio uma pessoa até se perde e quase se esquece de formular a outra pergunta que a tal notícia nos atira à cabeça: Domeni quê? Domenichino! Ah, pois, vamos lá a googlar isso e ver o que nos diz a Wikipédia. Desta vez saíu-me na rifa um texto em italiano, o que não deixa de ser interessante se bem que um pouco cansativo. Por isso aqui fica uma entrada em português.

De facto, no fim de contas (e descontando o Rembrandt), a notícia dos valores astronómicos atingidos nos leilões de obras de arte já não impressiona por aí além. Já cansa. Cansa tentar perceber a irracionalidade de certas coisas que acontecem na sociedade de consumo capitalista. Richard Wright talvez esteja a tentar perceber a lógica disto. Como vencedor do maior prémio de artes plásticas do Reino Unido vai receber vinte e tal mil euros em reconhecimento do valor da sua obra. Isso não pagava nem as aparas do lápis de Rafael se fossem postas à venda no e-bay.

3 comentários:

Anónimo disse...

Melhor assim, a obra desaparece, e com ela, as cansativas e repetitivas discussões de quanto vale um desenho... ou a perna do Ronaldo!

luísM disse...

Compadre, vamos recomeçar a discussão de há uns tempos atrás. Mas como não tenho nada de substancial a acrescentar remeto para a nossa conversa, partilhada com outros visitantes, sobre o mercado da arte.

Sobre a perna do Cristiano tenho algumas dúvidas. Ela vale isso tudo colada ao resto, ou amputada? Quem a comprasse ficava a saber jogar futebol, ou apenas podia contemplá-la? E neste caso seria porque o pernão era extrordinariamente bem torneado ou apenas um relicário semelhante aos da Idade Média? Para mim, as minhas pernas valem muito mais que as do Ronaldo e não têm preço.

Quanto ao desenho do Rafael, também não saberia o que fazer com ele, a não ser guardá-lo num cofre bancário. Para estar na parede e olhá-lo quando me apetecesse, não me parece que pudesse aprender grande coisa, uma vez que é apenas um ligeiro indício de algo maior. É outro relicário, tal como os pincéis e a mesa onde colocava os frascos com os pigmentos.

Isto é como os muitos esboços, apontamentos, estudos, que circulam por aí, resultantes do trabalho de artistas prolixos. Poderiam ser complementos, curiosidades, que eventualmente complementariam o processo de trabalho dos artistas, mas valem pouco, frequentemente, como objectos estéticos e artísticos. Nem deviam andar à solta. Qual é o seu interesse, para além da assinatura, ou atribuição? Só pode ser especulação fianceira, como o mercado das acções (também é um mercado de papel).

Mas a imprensa sabe que o público se excita com estas coisas das fortunas e do sucesso e vai-lhes enviando estas notícias bombásticas. E o público sonha que, se fosse conhecido e conceituado, ó, o dinheiro que se ganhava!

Silvares disse...

Eduardo, pelo que vejo, tudo desaparece... refazendo: pelo que não vejo, tudo reaparece... enfim, há poucas coisas que façam verdadeiramente sentido quando olhadas com atenção. A atenção retira sentido às coisas que olhamos? Estou a confundir-me a mim próprio!
:-)

Luís M, o público sonha tanto que chega mesmo a sonhar que existe, quando, na verdade, a verdade não existe, muito menos ele, o público, que é coisa tão etérea quanto Deus (só para dar um exemplo meio desconxavado). Público (não me refiro ao jornal) e Deus estão bem um para o outro e são talhados na mesmíssima massa colectiva e indefinível.
Estes comentários aos vossos comentários estão mesmo confusos!