Este texto é uma carta ao director do jornal Público. Aqui foram acrescentadas as hiperligações.
Não me parece que José Saramago tenha produzido as afirmações da discórdia com o intuito de promover o seu livro [Caim] numa espécie de golpe publicitário espertalhão, como alguns dos que o desprezam pretendem fazer acreditar. Nem tampouco me parece que o velho escritor tenha vindo emendar a mão quando reconhece haver passagens interessantes na Bíblia ou quando assume que muitos dos valores que tem interiorizados são valores cristãos. Aqueles que, como o senhor director do Público, olham para Saramago como um troca-tintas arrogante simplesmente não são capazes de enxergar muito além dos seus narizes e querem ver nele um diabo vermelho, incapaz de compreender os tais valores. Saramago pensa pela sua cabeça, livremente, isso é mais que uma qualidade, é uma bênção. Aquilo que diz é produto de uma visão do mundo fortemente personalizada. Daí que possa olhar para certos críticos descabelados como quem olha para um insecto zumbidor capaz de fazer perder a paciência a um santo.
Mário David, um ilustre eurodeputado desconhecido até dos que nele votaram, encontrou neste episódio a oportunidade para o seu momento warholiano. Vindo lá dos céus de Bruxelas, qual anjo vingador, descarregou um arsenal de boçalidades e imbecilidades sobre José Saramago que imediatamente ganharam eco nos meios de comunicação por serem tão estúpidas quanto sonantes. Os jornais adoram uma boa caixa e aquele infeliz proporcionou-as generosamente. Uma visita à sua página na internet mostra-o aos beijos e abraços a tudo quanto é figura mais ou menos pública, destacando-se duas fotos em que ele ajoelha e oscula o anel de João Paulo II. Se o Mário é português (mesmo que não cheire mal da boca) é natural que muitos dos que também o são queiram ser espanhóis. Pim.
Os que acreditam em deus com devoção de carneirinho não se atrevem a questioná-lo. Quer-me parecer que essa cegueira intelectual é mais fruto de um medo atávico do que propriamente por respeito ou admiração sincera. O inferno é, para muitos, um lugar tão real e verdadeiro quanto o paraíso e convém não esquecer que é a deus que compete decidir quem vai para um e outro desses lugares, numa decisão sem apelo nem agravo. Os devotos de Jeová, o deus dos exércitos, o criador das sete pragas do Egipto, o carrasco de Sodoma e Gomorra, não compreendem muito bem (nem mal) que um homem possa apenas pretender pensar pela sua cabeça e faça uso da inteligência de forma crítica e objectiva. Esses têm demasiadas cercas e gaiolas onde se enfiam temendo a ira daquele implacável deus do Antigo Testamento. Imaginam-se iluminados e no caminho da salvação quando, a meu ver, vivem vidas que não despertam inveja nem a um pinto de aviário, quanto mais a um homem livre. Se eu acreditasse numa divindade desse calibre também havia de sentir ódio por Saramago.
O Antigo Testamento, tal como o conhecemos, será bem diferente da versão original que os evangelistas registaram nos míticos tempos em que deus lhes soprava ao ouvido o que haviam de escrever. Dezenas, centenas, milhares de traduções depois, o texto decerto fará justiça ao provérbio que diz “quem conta um conto acrescenta-lhe um ponto”. E é de contos que falamos, quando falamos da Bíblia. Contos poderosos, uns, mais fraquinhos, outros, mas contos. Para mim faz tanto sentido orientar a minha existência tendo por base a leitura da Bíblia quanto faria sentido orientar-me cegamente por um bom livro de contos de Tchekov. Assim como assim seria uma orientação bem mais humanista para a minha vidinha.
8 comentários:
Subscrevo inteiramente. Não há nada pior do que os detentores da verdade suprema... ai de quem se atreve...
Bom texto, de um debate antigo, velho e repetitivo! Quem se importa com esses críticos? Saramago e outros pensadores livres, deles nem tomam conhecimento! E sempre haverão os piegas e minúsculos! Apesar dos contos das bíblias!!!!
Bravo.
Haja algum bom-senso no reino da estupidez.
Posso assinar embaixo?
Texto lúcido e objetivo. Como diria JP Sartre,"o inferno são os outros".
Legal!
Rui,
a mim não me perturba de todo o que o Saramago diz, até porque no essencial sou capaz de concordar ( é verdade que em nome do bem e dos altos valores já se cometeram muitas barbaridades, muita gente morreu, sofreu e continua a morrer e a sofrer ). Subscrevo na totalidade o que escreveste duma forma bem clara, mas o que para mim é estranho nestas declarações dele ( nestas e noutras idênticas ) é que ele não fala, antes aponta o dedo acusador do alto da sua estatura de Nobel consagrado. Também há muito moralismo na forma como ele diz as coisas. E eu torço o nariz sempre que alguém fala desta forma. Não me parece que o mundo se divida entre bons e maus. O bem e o mal existem em todos nós e essa é a luta de uma vida, tentarmos sempre melhorar seguindo apenas o rasto da nossa consciência. Eu não me identifico com as religiões que existem, apesar de ter tido uma educação católica ( como a maioria dos portugueses ) e de ter crescido no meio das referências de moral judaico-cristã. A igreja é uma coisa que só me cativa pelo lado mundano ( a história e a arte ) embora pense que à minha maneira sou religioso ( uma espécie de religião laica como dizia o outro ) mas quando ouço o Saramago falar desta forma o que me parece é que ele está de mal com a vida. De onde vem tanto rancor é coisa que eu não percebo…. mas se calhar é só impressão minha. O Saramago também já defendeu ideologias politicas ( ou ainda defende, não sei ) que provocaram um rasto de sofrimento em muitas pessoas e também ia achar desajustado que alguém se referisse a ele apontando-lhe o dedo ( tipo ajuste de contas ) como me parece que ele faz cada vez que tem afirmações deste género. Eu não sei mas acho que se chegasse à idade dele, tivesse metade do seu reconhecimento, obra feita e uma mulher 30 anos mais nova, tornava-me budista e dedicava-me ao yoga………….quem sabe, pode ser que lá chegue.
Caçador, até pode ser que exista uma Verdade... quem sabe?
Eduardo, tem havido uma polémica curiosa por causa das afirmações de Saramago. As pessoas precisam de um bom tema de discussão. Saramago forneceu-o.
Fernando, estás à vontade.
:-)
Lina, é isso. E os outros dos outros somos nós.
Beto, como disse no comentário ao comentário do Eduardo, um bom tema de discussão ajuda a aquecer a alma.
Rui, não sou um perito na história da vida de Saramago mas acho que ele teve uma infância complicada e acabou por se inventar a si próprio, quase a partir do nada. Depois foi o que sabemos, os livros, as peças de teatro, o jornalismo, até ao prémio Nobel. Convenhamos que tem razões para ser vaidoso. Pessoalmente ainda não me convenci totalmente de que a modéstia seja uma qualidade e a vaidade um defeito absoluto. Quanto à estupidez não tenho grandes dúvidas...
Convenhamos que o publicidade foi bem feita. Até me deu vontade de ler. Depois lembrei-me que não consigo ler Saramago e que a Bíblia tem letra muito pequena.
Enviar um comentário