domingo, maio 10, 2009

O exagero do gosto


Há fronteiras por todo o lado. Por exemplo, fronteiras que limitam territórios físicos e nos oferecem o desenho dos países que estão por detrás do conceito de nação. São fronteiras materiais. Ou fronteiras da nossa capacidade de compreensão dos fenómenos que nos rodeiam e nos revelam a nossa inteligência ou a falta dela. São fronteiras imateriais, mas fronteiras na mesma. Na lista destas fronteiras invisíveis encontram-se as que limitam ou caracterizam aquilo a que chamamos de "gosto". Não confundir com o resultado da acção das papilas gustativas, essas geram uma fronteira bem material que tem outro tipo de influências. A minha barriga que o diga!

A outro nível há o gosto individual, o gosto colectivo, a forma como encaramos os objectos e com eles estabelecemos uma hierarquia de valor estético. Gosta-se de uma pintura de uma forma diferente daquela que nos leva a afirmar que gostamos de macumba de gambas. Mas o valor estético não é um exclusivo dos objectos de arte, tendemos a estender o conceito a tudo o que nos rodeia, desde a esferográfica, à camisa interior ou ao automóvel do vizinho.

Gostamos de gostar de tudo o que nos rodeia. Mais, gostamos de mostrar que aquilo de que gostamos merece ser mais valorizado do que aquilo que os outros gostam, ou seja, pretendemos colocar-nos no topo da lista daqueles que podem gabar-se de ter "bom gosto", uma vez que isso nos parece um factor valorativo em termos sociais. Confuso? Não me parece. Pelo menos, depois de ler três vezes, acho que começo a perceber perfeitamente aquilo que queria dizer com a frase anterior.

Este prazer, esta pretensão, esta vaidade, pode levar-nos a cometer um pecado que, não sendo mortal, não deixa de ser um pecado responsável por muitas guias de marcha em direcção ao inferno. Trata-se do pecado do "exagero do gosto".

Por vezes o nosso gosto incha até parecer um tumor, uma excrescência purulenta, mas, se formos verdeiramente pecadores a este nível entregamos a nossa alma ao terrível e hediondo "kitsch", verdadeiro monstro dos infernos da estética merdosa.

Normalmente, quando pecamos a este nível, nem sequer nos apercebemos da dimensão do nosso pecado. Olhamo-nos ao espelho e gostamos do que vemos, pegamos na canetinha dourada com rubis e achamo-la o máximo. Mesmo que nunca escrevamos nada com ela podemos sempre exibi-la despertando no outro a inveja (esse sim, um pecado mortal).

Resumindo, caro leitor, se és uma pessoa preocupada com a salvação da tua alma e daqueles que te são próximos, examina bem as tuas opções estéticas, procura as razões profundas que estão na base do teu gosto pessoal. Não cometas o pecado do exagero do gosto. Mantém-te puro e sóbrio, vais ver que sabe bem.

Bom Domingo!

15 comentários:

Anónimo disse...

Aplausos, aplausos, e mais aplausos! Este seu texto merece uma ovação! Ou seria um exagero e portanto um pecado!!! Há esses exageros estéticos, visuais e linguísticos! Tem gente que acha "belo" escrever com o texto impregnado de rococós!Aí o pecado é mortal.
Parabéns pelo claríssimo post! As ilustrações estão perfeitas!
Há que se fazer uma ressalva ao kitsch proposital, que na verdade fala por si só!
O Varal esta participando de uma campanha, " A Web anda muito chata" e seu blog é a prova de que ela tem saídas!
Mas se estiver de acôrdo, participe!

Jorge Pinheiro disse...

Um excelente conselho. Melhor que ir à missa! Excelente texto. Eu não diria melhor.

the dear Zé disse...

Primeiro que tudo preciso de saber o que é uma macumba de gambas, a questão mais inrigante deste post.
Depois, há a questão do kitsch, complicada esta, de fronteiras verdadeiramente escorregadias. eu distingo kitsch de piroso. Na minha escala, piroso é de fugir, mas já o (que eu considero) kitsch tem o seu encanto. Aplico-lhe essa feliz expressão, exagero do gosto, e confesso que se fosse assim perdulariamente rico, abria o meu próprio museu do kitsch. O prazer que me daria reunir a colecção... Assim, quando posso, vou tirando uma fotografiasinhas e até as mostro aqui ao lado.

Adeus (... a macumba de gambas...)

Ví Leardi disse...

....bom devo confessar que adoro o que, por sair fora de meus padrões normais,considero kitsh...nada como um pinguin de geladeira.

Agora o Eduardo chegou primeiro ...mas naõ tenho como não repetir o que disse..conforme fui lendo teu texto fui ficando "extasiada"....pode parecer exagêro ou "puchação de saco" ..mas saiba, não é..vc tem um talento muito especial para colocar tua "privilegiada cabeça" no papel...eu sou das que perguntei "será que a web está tão chata assim?" não será uma questão de onde colocar o OLHAR? Você e seu 100 Cabeças são a prova...Não tenho como não fazer um up date e linkar este post ao meu post de hoje...Congratulações.Que prazer!

Alice Salles disse...

Nossa!
Me matei de rir de PENSAR que tem gente que realmente bebe desse exagero e vive a vida a encher as veias com essas babaquices intensamente ridiculas! Ah... como pode!? GRANDE CONSELHO!

Anónimo disse...

Silvares,
me permita dizer a sua leitora Vi, que o seu, como o dela, estão na minha lista de 12 que se salvam!( Fiz um comentário no blog dela, falando que dos um bilhão de blogs existentes, convivo com 411 linkados no Varal, e que desses só 12 estão fora da lista de blogs que precisam vir cá, e ir lá, na Vi, para aprenderem o que é um bom blog!)
Voltei para reler seu texto. Uma preciosidade com cinco comentários!Umas tantas outras visitas.Isso é que me leva a perder as esperanças de que a web se salve!Tem MUITO blog kitsh para meu gosto!
A propósito na minha lista(12) estão o Jorge, o Caçador, a minha queridíssima Alice, que não por acaso, estão todos comentando aqui!

conduarte disse...

Silvares,
Muito boa a sua visão sobre o bom gosto ou não das coisas.

Confesso a você que o Kitsch pode ser engraçado, claro! Confesso também, que não tenho nada em casa desse tipo, nem o famoso pinguim rsrsrsr - e verdade que é preciso tomar cuidado com o exagero, o excesso.

Só acredito que a inveja, exista mesmo sem o Kitsch( Você se refere a caneta de brilhantes como provocação de...apesar de...) Assim como a educação, a delicadeza.

Na verdade, tudo na vida tem que ser equilibrado, bem pensado, ajustado e colocado de forma correta.

Um bom exercício para isso, que já está um pouco além do Kitsch que tão bem escreveu e usou uma foto ótima para ilustrar isso, é agir com os outros, como gostaríamos que agíssemos conosco.


Desejo ótima semana!

Um grande beijo,

CON

peri s.c. disse...

Silvares
Ótimo texto.
Acho que o kitsch está sempre à espreita , escondido e pronto para dar o bote, nas profundezas do cérebro de qualquer ser humano.
Até nós , senhoras e senhores de fino trato estético, corremos o risco de colocar um pinguim em cima da geladeira, mesmo que ironicamente.
E sempre podemos usar a desculpa "fashion" : "Estou numa momento kitsch"

Silvares disse...

Eduardo, já te agradeci no Varal e aqui te volto a mostrar gratidão por seres um leitor do 100 Cabeças. Quanto ao texto, eu, pecador, me confesso. Tenho algumas fraquezas kitsch, mas também tenho fé na cura!

Jorge, a missa vem já a seguir.

Caçador, uma "macumba de gambas" é um prato que a Ana cozinha na perfeição e que foi pedido pelo meu sobrinho Pedro uma vez que ficou cá em casa e a tia lhe perguntou o que queria ele comer. O post sobre o kitsch surgiu na sequência do anterior, precisamente a partir da ideia do "exagero de gosto"...

Ví, o kitsch tem um momentinho, antes de entrar no mau gosto, que é irresistível.
:-)
Vou já ao seu blogue ver o tal link. Sou um vaidoso.

Alice, o kitsch nem sempre é exibição, muitas vezes é, apenas, ingenuidade visual.
:-)

Conceição, por aqui não usamos o pinguim no frigorífico mas há o Galo de Barcelos, por exemplo, um kitsch bem português!

Peri, é isso mesmo, por vezes o "kitsch" é "fashion"... quer-me parecer que a "fashion" é, muitas vezes, apenas "kitsch"!
:-)

Lina Faria disse...

Nada mais Kitsch que querer ser fashion, né?
Silvares, seu blog, longe de kitsch ou fashion, não permite qualquer rótulo. Muito bom!
Vou fazer um link dele lá no não lugar.
abc,
lina

Caçador disse...

Silvares, a minha avó tinha um pinguim no frigorífico com um bengala de arame debaixo da asa. Por falar nisso, onde é que ele andará?

Silvares disse...

Lina, a última que eu pretendia era fazer um juízo de valor. Quero dizer, não vejo no kitsch grande mal... nem grande bem
:-)
Aparece sempre. Tenho de ir visitar-te.

Caçador, muito me contas. Não me lembro de ver nenhum, talvez estivesse atrás do galo de Barcelos.
:-)
Pelos vistos essacena do pinguim é internacional.

fada*do*lar disse...

ahahahahahah!!!
I LOVE IT! I LOVE IT! ;D

E estou de acordo com o primeiro comentário do Caçador...

Silvares disse...

Fadinha, o Caçador diz tudo!
Aquele museuzinho haveria de ser uma coisa digna de ser visitada...

jugioli disse...

Uma excelente reflexão. Hoje por exemplo fui ver a exposição de Vick Muniz, que trabalho o lixo e outros materiais em suas investigações pictóricas, e achei o máximo. Como este tipo de trabalho contemporâneo sendo bem elaborado pode revelar suas riquezas e criatividades, e o quanto é sutil esta fronteira do gosto, do mercado, do que nos revela a arte em seu consumo.

bjs.