Ontem fui caminhar pelas ruas da Cova da Piedade. Caminhar, apenas, virando nas esquinas sem destino, a cabeça a vaguear juntamente com os olhos; a ver. A banalidade absoluta de um Domingo com sol quentinho, sol de fim do Inverno, a merecer celebração profana, tais são as promessas que traz agarradas e memórias que, com ele, renascem; como flores, como folhas, como ramos que o passado esconde e revela, conforme recordamos ou esquecemos.
Uma velha senhora a secar o verniz das unhas ao sol, com os cotovelos apoiados no parapeito da janela e abanando as mãos, como se estivesse a fazer um gesto de uma coreografia à Michael Jackson; um homem de aspecto derrotado, enfiado num casaco outrora branco e óculos fora de moda que talvez regressasse a casa (uma casa que imaginei vazia), desalentado e com vontade que a vontade fosse outra coisa; uma florista a formigar de clientes (era Dia Internacional da Mulher); um homem enorme, gordo e careca, transportava um vasinho desajeitado com uma flor vermelha a cair para o lado que parecia querer fugir (do homem ou do vaso?); um bando de miúdos a jogar futebol, corados, suados, gritando a plenos pulmões gritos que são vida enorme e cheia de futuro.
Caminhando pelas ruas dei por mim extasiado perante o espectáculo daquela banalidade absoluta, espantado pela riqueza que existe nas coisas que não são nada mas que, todas juntas, acabam sendo tudo, expressões simples da complexidade da vida.
A Cova da Piedade é um sítio feio, de prédios meio decrépitos e horizontes curtinhos, emparedados por fachadas de janelas sujas e todas demasiado semelhantes. As pessoas vestem-se, quase sempre, com roupas de cores escuras, como se se identificassem absolutamente com o espaço que as circunda, e parecem arrastar os pés, como zombies à procura da tumba respectiva. Mas a vida é uma coisa maravilhosa e as suas manifestações são sempre deslumbrantes, mesmo num cenário como este. Talvez ainda mais deslumbrantes num cenário como este. Aqui parece ser complicado encontrar a felicidade. Mera ilusão. Nem sequer é necessário procurar com grande afinco. Basta andar, abrir os olhos e ver.
13 comentários:
pois basta abrir os olhos e os tímpanos e deixar entrar...mesmo na "feia" Cova da Piedade.
pois basta abrir os olhos e os tímpanos e deixar entrar...mesmo na "feia" Cova da Piedade.
silvares desculpa o eco :-)
E tudo porque era Domingo!
Acho que nuca fui à Cova da Piedade. Mas já fui a Alhos Vedros!
"Davam grandes passeios aos Domingos". Isso é piedade por quem mora na Cova. Um sítiozinho esquecido da sra. presidenta de Almada e da sua renovação urbana que descobriu o centro no centro.
...como sempre,tão lindamente escrito!:-)
Sempre a vagar, perder os sentidos, por vezes encontrá-los mais dispersos...e saber-se sempre renovado.
Lindos nomes das ruas, já não sinto ser um lugar tão feio.
JU
Pandora, como diria a Lili Caneças, "estar atento é o contrário de estar distraído".
:-)
Eduardo, Domingo é dia santo (acho eu).
:-)
Jorge, deve ser mais ou menos a mesma coisa embora nunca tenha ido a Alhos Vedros.
:-)
Ogre, a Cova da Piedade foi esquecida até por Deus, tenho cá a impressão.
:-)
Ví, obrigado.
.-)
Ju, é, andar pelas ruas sem objectivo pode fazer-nos sentir coisas estranhas.
:-)
olá.
muito bacana o seu texto.
acho que todo mundo precisa dar uma volta por aí de vez enquando.
sorte e luz.
muito bom seu blog, parabens pelos tetos e pelas fotos, to sempre visitando.
Afobório, Rafael, muito obrigado pela visita. Voltem sempre, serão bem recebidos (espero:-)
obrigado senhor professor rui, deixou me sem vontade de voltar a casa ;)
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