terça-feira, julho 29, 2025

Lâminas

     A mentira não crescia, mantinha-se estável, tão estável que talvez nem pudesse ser considerada traição. Os olhares tensos cruzavam-se no espaço do quarto formando uma perigosa teia de fios brilhantes, duros como aço e afiados como lâminas. Se algum dos presentes se movesse correria risco de vida imediato. Ninguém se atrevia a, sequer, piscar os olhos com receio de perder a sua pequena vantagem.

    Assim permaneceram por longos minutos até que a rapariga loira, sentada na poltrona de cabedal luzidio, resolveu quebrar o silêncio. E o tempo regressou e voltou a correr. Até ao fim.

segunda-feira, julho 28, 2025

Manhã soalheira

     As coisas banais crescem como cogumelos alucinogénicos e crescem por todo o lado infectando mentes e paisagens com a sua estranheza aparentemente inofensiva. A cadeira não teria nada de extraordinário não fosse o estranho ângulo que fazia com a mesa (que tinha uma perna ligeiramente mais curta que as outras o que a tornava instável e perigosa).

    Sobre a mesa uma jarra com água. Tudo dentro da mais fastidiosa normalidade. No entanto o sol que entrava pela janela (não tão limpa quanto poderia e talvez devesse estar) trespassava o jarro e atirava sobre o tampo da mesa um desenho feito a facadas luminosas que tremelicou quando o gato esfregou as costas ociosas na perna bamba fazendo oscilar todo o conjunto.

    A aranha festejou na sua teia a chegada de uma mosca incauta. 

domingo, julho 27, 2025

Romper a aurora

     Aquele momento em que se apercebia de que o sono acabava e o estado de vigília viria tomar o lugar que lhe cabia, aparentemente, por direito, aquele momento era o seu preferido. Apercebia-se de que havia uma alma dentro dele, um fantasma que o habitava como se fosse uma casa assombrada. E isso era-lhe extremamente agradável. Sentia que a vida tinha um propósito.

    Aquele momento marcava com precisão a passagem do sonho para a realidade, era a prova de que a vida é uma continuidade, que poderia ser eterna não fosse a eternidade um logro. 

    O fantasma entrava no saco de pele e ossos que haveria de lhe servir como veículo para o tempo em que estivesse acordado e lá se deslocava, desajeitado, a lutar constantemente com a gravidade e outras leis que limitam as possibilidades da poesia sempre que se está deste lado. As leis que fazem de nós seres humanos e dão uma forma tangível às coisas e lhes atribuem os nomes pelos quais as conhecemos.

    Tanto para fazer e tanto que nunca haverá de ser feito! 

sábado, julho 26, 2025

3 impossibilidades entre mil

     Impossível. É-me impossível manter um ritmo diário de escrita. Não é que não queira, não é que não possa, não. É porque me esqueço. Essa é a mais implacável de todas as razões e contra ela pouco há a fazer. Talvez tomando Memofante. Forte.

    Impossível escolher a quem confiar o meu voto quando nenhuma das candidaturas apresentadas me inspira confiança. Uma ou outra faz-me despertar uma confiançazinha pequenina, um broto, uma ténue sensação de "je ne sais quoi" mas nenhuma o suficiente para que, no dia da verdade, cruze dois traços no quadradinho que lhe corresponda. Impossível. Resta o voto em branco. Abstenção não é opção.

    Impossível ficar indiferente ao genocídio do povo palestino. Indignação e, por vezes, raiva irrompem em mim de forma mais ou menos descontrolada perante as notícias que vão chegando. Mas todo o meu sentimentário resulta estéril. Qualquer atitude, qualquer discurso, qualquer coisa que pretenda fazer a propósito disto não representa absolutamente nada em termos práticos. Não aquece nem arrefece. E fico a pensar se a minha indignação teria o mesmo tom e semelhante intensidade caso estivesse deveras envolvido no processo, caso tivesse outra proximidade espacial e emocional à Palestina e ao seu povo. Impossível saber.

     

quarta-feira, julho 23, 2025

Vai-se a ver...

     É de ficar arrepiado, pele de galinha desde a nuca ao calcanhar. A coisa não é para menos, deixa uma pessoa indignada. Pessoalmente acho mal. Acho muito mal, mesmo. Não estou disponível para pactuar com semelhante bandalheira! Benza-me Deus, guarde-me Nossa Senhora.

    Sim, porque ontem não foram capazes de me elucidar. Antes pelo contrário! Dei-me ao trabalho de ouvir os gajos e eles falaram, falaram, falaram e no fim, nicles batatóides! Fiquei na mesma como a lesma. Valeu a pena ouvir o debate? Claro que não, foi pura perda de tempo. E tempo é coisa que não devemos desperdiçar pois nunca se sabe quando batemos a caçoleta, indo desta pra melhor. 

    A meu ver estão todos vendidos se bem que uns receberão de um lado e os outros receberão do outro, como é mais ou menos evidente. Não acredito que sejam todos pagos pelo mesmo patrão... ou então... vai na volta... afinal de contas o dinheiro é todo igual. Igualzinho mesmo!

terça-feira, julho 22, 2025

Calado como um rato

     Está tudo excitado com a retirada da sexualidade do programa da disciplina de Cidadania. Uns porque concordam e não se cansam de mostrar o quanto se sentem libertados por esta decisão. Até arfam de contentamento. Outros porque discordam em absoluto e já imaginam os putos descontrolados na pinocada sem preservativo nem tino. Um reboliço.

    Cá pra mim é conversa de surdos, como vem sendo costume. Não há debate, não há discussão. Há apenas gritaria e escavação de trincheiras, a guerra instala-se. De um lado e do outro atira-se tudo o que se tem à mão tentando causar qualquer tipo de dano que seja ao inimigo jurado. No fim do dia está tudo mais confuso, mais sujo, mais esburacado. Não há esperança.

    Pessoalmente sinto uma profunda angústia. Tenho a minha opinião mas recuso-me a partilhá-la no meio de semelhante confusão. Qualquer coisa que possa dizer será imediatamente alvo de uma etiqueta e, ai de mim, metralhado por um lado ou pelo outro (ou até pelos dois) caso não esteja de acordo com as boas práticas e os pensamentos decentes. Portanto, calo-me.

sábado, julho 19, 2025

Ai, solidão!

     A solidão parece ser o pior dos vírus, eventualmente de todos o mais mortal. Depois de instalada não precisa de muito tempo para se impor e prosperar. Alojada nos nossos corações, nos nossos cérebros ou, nos casos mais complicados, alojada nas nossas almas, a solidão faz de conta que não está lá, finge não saber quem somos. E vai ficando, vai crescendo e engordando alimentando-se de qualquer coisa que nos faça falta.

    Há diferentes tipos de solidão, diversas estirpes; umas mais encarniçadas outras menos. Umas assustadoras e repelentes outras quase fofinhas. Seja qual for o aspecto ou o grau de infecciosidade, a solidão não se recomenda nem ao gato da vizinha.

            

sexta-feira, julho 18, 2025

É assim mesmo!

     E é assim mesmo! Olhamos para os outros esperando ver-nos a nós próprios, imaginamos o mundo comparando-o com a nossa casa. Como nada se ajusta ficamos desgostosos e decepcionados. O mundo é uma merda e quanto mais conheço as pessoas mais gosto do meu cão, cenas desse calibre. É pra rir.

    Não é pêra doce aguentar o barco, suportar tanta contrariedade. Para o fazer precisamos de nos equipar com instrumentos adequados: religião, psicanálise, ideologia, arte, tudo serve para tentarmos aguentar a barcaça à tona de água, tudo ajuda a cavalgar as ondas embora o risco de naufrágio esteja sempre ali, logo após a linha do horizonte.

    A vantagem das analogias marítimas é que o horizonte vai sempre à nossa frente, é uma linha que se afasta. Está próximo, está longe?  De cada vez que para ele dirigimos o destino do barco que somos só o vemos a escapulir-se uma e outra vez até se transformar numa linha de costa. E depois atracamos e é assim mesmo.  

quinta-feira, julho 17, 2025

Candidato

     Estava-lhe entalada a vontade na garganta. Queria dizer, falar, expor, narrar a sua história pessoal era um tesouro a merecer partilha pública. Tudo dentro dele estava em alvoroço, a urgência sufocava-o. Suster a torrente discursiva era particularmente doloroso mas a ocasião assim o exigia. Não era momento adequado a dar bandeira.

    Contorceu-se um pouco na cadeira, ardia-lhe o olho do cu.

quarta-feira, julho 16, 2025

Animais de criação

     Há quem se veja a si próprio como eterna e constante vítima do "sistema". Esses encaram tal condição como sendo algo heróico, são mártires da pureza dos ideais que os animam. Se, porventura, os seus ideais vierem um dia a triunfar, os nossos candidatos ao paraíso dos deserdados ficarão órfãos da sua razão de existir. Isso é trágico.

    Há também aqueles que são, de facto, vítimas eternas e constantes do sistema mas esses, não sei bem, talvez não coloquem a questão nestes termos além de todos estarmos conscientes de que nunca, mas mesmo nunca, virão a ter direito à mais insignificante migalha de justiça. 

    Entre uns e outros está muita boa gente. Gente farta de aturar as lamentações dos justos eternamente injustiçados e que sente repulsa pelas verdadeiras vítimas. Gente na qual me incluo. Uns têm mais que fazer do que dar atenção a este tipo de questões, estão demasiado ocupados a trabalhar para poderem consumir. Outros vivem em mundos mais ou menos abstractos, não têm espaço mental para oferecer a este mundo. Outros ainda têm ódio aos primeiros e desprezam os segundos. Etc. É muita boa gente, são muitas condições diferenciadas.

    O que resta disto tudo? Um pouco de amor requentado, bastante ódio, muita estupidez e oceanos de ignorância. É a nossa espécie em todo o seu esplendor, criação divina. 

terça-feira, julho 15, 2025

Viver o momento

     Fazer citações é caminho estreito e repleto de pedregulhos, daqueles que não dão para construir castelos. Ou bem que sabemos do que estamos a falar ou melhor seria manter a boquinha trancada a sete-chaves. Mas as coisas não se passam bem assim.

    No mundo ideal, citar alguém implica recolher e acrescentar dados relacionados com a proveniência da coisa o que implica, pelo menos, um "onde" e um "quem", eventualmente um "quando", o que se aconselha vivamente. É, portanto, tarefa que impõe algum rigor e boa-fé da parte de quem cita.

    No mundo real é a confusão que se sabe. As citações chovem como sapos em narrativa bíblica. As vindas sabe-se lá de onde misturadas com as que se sabe bem de onde vêm, tudo vale a mesma coisa, não há problema de maior. A ideia original pode estar já um bocadinho distorcida, por vezes completamente adulterada mas, pronto, não vamos chatear-nos por isso. O que interessa é passar a mensagem.

    Uma citação errada pode substituir a original e correcta sem grande problema nem esforço. Basta que seja repetida as vezes suficientes para se tornar mais verdadeira que a verdade. Alguém se incomoda com isso? Não vale a pena, desde que a mensagem tenha passado estará tudo bem.

    Quem diz uma citação diz um facto. A confirmação é, muitas vezes, puro aborrecimento. Se a coisa for suficientemente sumarenta podemos ficar pela primeira forma, mesmo que não seja propriamente verdade: desfrutar do momento é o grande objectivo dos seres vivos. Seja ele qual for (o facto, o ser vivo, ambos ou vice-versa). 

segunda-feira, julho 14, 2025

Desistir é estúpido

     Hesitar perante a indefinição de uma obra é algo perfeitamente normal. Ainda não esgotámos todos os recursos técnicos, confiamos na possibilidade de que um ou outro rasgo criativo possa trazer novas orientações durante a realização da coisa mas a tentação de desistir instala-se. Acontece muitas vezes.

    Nessas ocasiões devemos invocar a nossa capacidade de resistir à tentação, insistir na continuação do processo. Há sempre uma fase complicada quando estamos a fazer um desenho ou uma pintura (imagino que possa acontecer com todos os actos criativos), uma fase em que as coisas estão feias, desajeitadas quando, na verdade, estão apenas incompletas. É como na história do Patinho Feio que, afinal, era um cisne. Ganda cena!

    Agora já não desisto quando penso nisso e sou assolado pela tentação de o fazer. A experiência mostrou-me que desistir antes do fim pode privar-me de momentos interessantes. Desistir é estúpido.

domingo, julho 13, 2025

Ser ou não ser (inumano)

     Por vezes penso que a condição de Ser Humano não é automática entre os indivíduos da nossa espécie. Uns serão mais humanos do que outros. E, quando penso nisto, não sou capaz de aceitar a coisa sem lhe resistir. 

    Custa-me a crer que seja como no Triunfo dos Porcos. Mas parece-me inquestionável que há gente genuinamente má e o seu oposto. Parece-me também que os maus estão a ganhar a batalha contra os bons. Espero que seja apenas um desequilíbrio momentâneo.

    Os maus estão a aproveitar muito mais e muito melhor os equipamentos de inteligência artificial a seu favor. Os bons ainda se questionam e debatem com problemas e dilemas éticos. Bondade é fraqueza e lentidão. Os maus são mais decididos e actuam com outra objectividade. Para eles, ser um ciborgue não constitui problema de maior desde que isso os ajude a pulverizar os inimigos. Estamos fodidos.

sábado, julho 12, 2025

Coachar

     Aquelas pessoas cheias a deitar por fora de certezas relacionadas com questões comportamentais enojam-me um bocadinho. Não digo que sejam como cagalhões no meio da sala mas são como respingo de diarreia na lapela de um doutor. Não sei onde vão buscar aqueles números exactos nem como mantêm uma cara de pau à prova de tudo e mais alguma coisa enquanto vão debitando afirmações entre o fofinho e o "ai-ai-ainda-levas-tau-tau", normalmente sem contraditório. São como pequenos deuses ambiciosos, pequenos deuses que em breve irão fundar novos infernos.

    Normalmente ouço esses seres vivos a falar brasileiro (ou português, ou português do Brasil, para mim é tudo exactamente a mesma coisa) com vozes bem colocadas, com dicção perfeita, como se o discurso tivesse sido preparado ao milímetro, construído ao segundo, como se tudo, discurso e discursante, seja fruto de um plano minuciosamente elaborado. Se for um tuga a perorar, a coisa não soa tão bem, soa a falso. Quando é um brasileiro a encher-nos a cabeça de merda está tudo certo: adoramos!

    São os mental coaches, aqueles que irão tapar com amor e compreensão todas as fendas que a tua alma for abrindo. 

sexta-feira, julho 11, 2025

À beira da estupidez

     Chove inesperadamente. O calor mantém-se, tal como os calções, as camisas de mangas cavadas, sandálias e chinelos, a parafernália habitual dos dias em que a canícula nos morde e abocanha do nascer ao pôr-do-sol e mesmo durante a noite. Só que, esta manhã, surgiu uma chuva fresca e miudinha, batida a vento que nos atinge como se Deus fosse um acupunctor nervoso e indeciso, tentando picar-nos o corpo na totalidade, por via das dúvidas. 

    Não sei se por causa da chuva, sinto-me enfastiado. Pensando um bocadinho, por que razão a chuva haveria de me enfastiar? É um pensamento um bocado estúpido. Fico a matutar na coisa.

    Será que tenho pensamentos estúpidos a toda a hora ou, pelo menos, tenho-os com frequência e não me apercebo de tanta estupidez apenas porque não reparo? Se parar para pensar a cada passo descobrirei uma quantidade de pensamentos estúpidos e imbecis muito para lá do que imaginaria aceitável? Ai Jesus!

    O melhor será parar de pensar. Pausa.

quinta-feira, julho 10, 2025

O dia de hoje

     Antecipar um dia em que podemos fazer tudo aquilo que podemos imaginar e podemos ponderar dadas as circunstâncias não é a tarefa mais simples nem é evidente. O meu cérebro desorganiza-se com facilidade; aliás, para se desorganizar seria necessário que o meu cérebro estivesse, de alguma forma, organizado, o que raramente acontece. A pontuação da frase anterior deixou-me a pensar e encheu-me de dúvidas mas parece-me ter chegado a uma conclusão aceitável.

    Já me desviava do que pretendia dizer. Lá está! É a tal tendência para uma desorganização constante e persistente. De que falava eu? Ah, sim, já me lembro (li a primeira frase deste post). Poder fazer aquilo que seja capaz de imaginar...

    Desenhar? Recortar coisinhas e fazer colagens? Ler? Ouvir música durante as tarefas mais criativas? Ir dar uma volta, apanhar ar no trombil? Dormir uma sesta? Ir ao velório? As possibilidades são variadas e eventualmente combinatórias. Posso estabelecer um plano, elaborar uma lista, ordenar, organizar, prever, antever, posso fazer tanta coisa, caraças! Por isso mesmo opto por não fazer nada. Ou melhor, por isso mesmo deixo que seja o dia a decidir por mim. Decerto tomará melhores opções.

    Não me sinto capaz de fazer as coisas "bem feitas". 

quarta-feira, julho 09, 2025

Prévio conceito

     Falava sozinha rua acima, como se mastigasse palavras, como se ruminasse ideias esquecidas. O aspecto de "maluca como o caraças" ninguém lho tirava. Lá vinha ela. Não me pareceu desleixada, quando nos cruzámos não persistiu na atmosfera nenhum fedor particular, era aquela cena, aquela ladainha a martelar, juntamente com os passos sublinhados a salto alto na calçada. Na verdade nada me garantia que se tratasse de uma maluca. Nada, além do meu preconceito.

    O preconceito é uma espinha que não conseguimos desencravar da garganta, é uma pedra no sapato que não descalçamos nem por nada, é um fantasma hediondo a assombrar-nos a mioleira e que não conseguimos espantar nem à força de mil "cabrão" nem dez mil "filho-da-puta". O preconceito é mesmo fodido.

    A última esperança reside na nossa capacidade de percebermos o preconceito que nos infecta. Não nos livramos dele mas saber que nos desorienta, estarmos conscientes de que o trazemos dentro de nós, é coisa que transporta consigo algum alívio. 

terça-feira, julho 08, 2025

Tarefas

     Não poder falar verdade é uma tortura para o espírito. Tentar encontrar formas sinuosas de afirmar coisas simples é trabalho que dispenso, obrigadinho. Se a tarefa não for exclusivamente imaginativa então que seja o mais objectiva possível.

    Assistir ao último suspiro de uma pessoa não é tarefa fácil. É como se um pedaço de nós fosse também embora. E depois há o odor, o estranho odor que a morte desprende ao passar (quanto tempo ficará ela ali, junto ao cadáver?). A flacidez dos tecidos cutâneos aliada ao frio que sentimos nas mãos enquanto tentamos reanimar o corpo ali estendido.

    Agora não tenho vontade de fazer nada. 

segunda-feira, julho 07, 2025

A promessa

     E pronto, bastou falar nisso para que não acontecesse logo no dia seguinte. terei um espírito de contradição tão forte, tão enraizado, que me contradigo a mim próprio? Mais estranho ainda, esse espírito de contradição leva-me a estabelecer compromissos comigo próprio com o intuito inconfessado de apenas os quebrar? Fecho contratos comigo próprio com o único objectivo de os não cumprir? 

    Seja como for, falhei apenas um dia. Ontem não escrevi um post no 100 Cabeças quebrando a meia promessa que fiz anteontem. Não é grave. É apenas motivo de reflexão. Talvez não haja conclusões a tirar. Talvez a coisa se resolva escrevendo um post todos os dias até ao final do mês (risinho desdenhoso).

sábado, julho 05, 2025

Morremo-nos

     Eu sei que não vou ser capaz de escrever um post todos os dias deste mês mas, não sei se reparaste, estou a tentar. Porquê? Por nada, lembrei-me agora dessa possibilidade. Ter assunto não é complicado uma vez que sou muito bem capaz de escrever umas linhas valentes sem dizer absolutamente nada. Pelo menos, sem dizer alguma coisa que tenha algum interesse.

    Hoje soube da morte de mais um homem que foi um grande amigo meu. Nos últimos anos tinha-me cruzado com ele apenas um par de vezes. Abraços, festinhas e, até, troca de beijos. Amigo é amigo, mesmo que não saibamos nada dele, mesmo que estejamos anos sem nos vermos. Ser amigo de alguém é um bocado como ser um cão. 

    Morreu mais esse amigo e eu percebi que "vamos morrendo". Eu ainda estou vivo, muitos de "nós" ainda vivem, mas o número dos que já morreram não pára de aumentar (coisa mais óbvia...) fazendo com que a "nossa" presença neste mundo vá perdendo nitidez de contorno, se desvaneça.

    Sinto uma súbita vontade de sublinhar a minha existência. Mas, isso faz falta a alguém, a minha existência marcada a traço grosso nas paredes deste mundo? Parece-me ser apenas um reflexo da angústia que me provoca a percepção de que o tempo que me resta é muito menos do que o tempo que já vivi.

    Será isto, a percepção da caducidade, o que faz com que os ditadores fiquem bandidos cada vez mais ásperos à medida que envelhecem e percebem que a Eternidade ainda não será por eles alcançada? Será esta necessidade ditada por uma certa inveja em relação às vidas mais jovens? Fico inquieto. Tinha-me por melhor pessoa.

sexta-feira, julho 04, 2025

Nem sei que te diga

     Um tipo acorda de manhã a sonhar com o dia que aí vem e com dias passados, um gajo acorda a sonhar. Um gajo sente-se bem. Imagina-se especial. Acordar, sonhar, sentir, imaginar, suave sequência verbal. Prometedora.

     Promessas feitas por encomenda abstracta dificilmente poderão realizar-se de forma a contentar quem delas nada esperava mas que, ao imaginá-las, acreditou virem a ser possíveis para além daquilo que se atrevera a desejar. Protejam-me dos meus desejos. Protejam-me daquilo que eu quero. Qualquer coisa para traduzir a máxima infinita: Protect me from what I want. Espantosa síntese da condição humana estabelecida por Jenny Holzer.

     Jenny, reconheço a magnificência do que afirmaste mas não sei se te agradeça.

quinta-feira, julho 03, 2025

Somos todos irmãos

     Somos todos irmãos. Esta conversa é norma entre os católicos. Quando nos dizem que somos todos irmãos pretendem sugerir a possibilidade de sermos todos amigos uns dos outros? Basta ler uma mão-cheia de páginas do Antigo Testamento para darmos de caras com a história miserável de Caim e Abel. E não precisamos de nos esforçar por aí além para encontrarmos situações em que irmãos mentem uns aos outros, situações em que se agridem, se abandonam, se ignoram, se roubam, todo o catálogo de tramóia e vigarice aberto e exposto aos nossos olhos.

    Somos todos irmãos. Conversa vazia e carente de significado. Veja-se Gaza, olhe-se para Israel, pense-se no liberalismo económico ou na exploração de recursos naturais. Somos todos irmãos mas uns de nós são mais irmãos que os outros? Deve ser isso. A coisa, vista assim, começa a fazer algum sentido.

    "Somos todos irmãos" é uma frase feita que se completa com outra que também não precisamos de inventar: "uns são filhos e outros são enteados". Está quase tudo dito. 

quarta-feira, julho 02, 2025

O mundo nunca foi o que era

     Acontece de cada vez que dou por terminado um desenho. É uma sucessão de ideias e sentimentos que desfila perante mim, como um comboio a partir do cais de embarque, a dirigir-se lentamente para fora da estação. Não sei se lhe acene se corra atrás dele na tentativa de saltar lá para dentro.

    Já o disse e repeti várias vezes em alguns dos dois mil seiscentos e tal posts deste blogue: um desenho, uma pintura, uma obra de arte, nunca estão verdadeiramente concluídos, são deixados em estado de suspensão pelo autor no momento em que este considera ter-se empenhado suficientemente no trabalho de dar forma ao objecto.

    Sei que isto é verdade inquestionável mas sei também que custa um bocadinho deixar a coisa entregue a si própria e a quem a possa ver a partir daqui, a partir do tempo em que passa a ser objecto de exposição e não objecto de criação.

    Tenho tantos desenhos que nunca foram vistos por ninguém, além de mim. Tantos desenhos (centenas, pelo menos) que têm um tempo de exposição exclusivamente virtual, vistos apenas através de ecrãs. E depois?

    Ainda esta manhã estive a pensar sobre a razão que me leva a desenhar e qual a utilidade dos desenhos que vou fazendo. Não obtive nem sombra de resposta. Entretanto concluí um desenho a que dei o título de Floresta Desencantada (o mundo nunca foi o que era).

terça-feira, julho 01, 2025

O monstro regressa

     Assistimos incrédulos ao ressuscitar do fundamentalismo cristão. É de sublinhar o papel arrasador desempenhado pelo cristianismo na destruição da sabedoria e do conhecimento logo que foi alcandorado aos lugares de governação no antigo Império Romano. 

    A História costuma sublinhar o papel dos mártires cristãos e obliterar em absoluto todos os que foram  martirizados em nome do Livro único e do cristianismo. Ainda hoje sentimos um tremor beatífico nos meios de comunicação ocidentais quando, lá para os orientes, uma igreja cristã é alvo de violência mas sobre a perseguição a filósofos e destruição de bibliotecas no passado longínquo e os ataques e ameaças a bibliotecas públicas na actualidade... népias ou quase nada.

    O cristianismo, na sua génese, foi uma onda de obscurantismo fundamentalista que varreu a Europa, o Próximo Oriente e o Norte de África, levando na enxurrada séculos de Saber e Conhecimento. Tudo em nome de Deus, da Salvação e da verdadeira Fé.

    O monstro pretende renascer, já começamos a ver-lhe um dedinho de fora. 

segunda-feira, junho 30, 2025

Impotência

     Repugnância. Sinto repugnância.

     Repugna-me  a falta de honestidade intelectual do mesmo modo modo que me repugna um monte de merda com moscas a esvoaçar em volta.

     Repugnam-me os sonsos que usam dois pesos e duas medidas fingindo  que é tudo a mesma coisa ou que não reparam ou que é assim a vida.

     Repugna-me  o uso imoderado da força. Mais me repugna quando é usada sobre os fracos ou sobre quem não tem a mínima possibilidade de se defender.

    Repugna-me a exibição da estupidez mascarada de grandeza. Repugna-me.

    Repugna-me o genocídio na mesma medida em que me repugna a falta de coragem para o condenar. 

    O que fazer com toda esta repugnância se mais logo irei jantar comodamente, se o meu maior problema são as elevadas temperaturas que tento combater com a ajuda de minha fiel ventoinha? O que fazer com toda esta repugnância, meu Deus, o que fazer?

    Talvez não dê para fazer nada ou, pelo menos, disso tenho a certeza, não dê para fazer grande coisa.  

sábado, junho 21, 2025

2 comentários (a artigos no Público online)

    Com o sofrimento dos outros posso eu bem. A globalização foi criada para facilitar as trocas comerciais e não para aplanar o mundo em termos culturais e políticos. A esperança é que os interesses monetários arrefeçam a vontade de matar, violar e saquear, instintos muito humanos, como sabemos. Aqueles que têm o azar de nascer em países que se alimentam da carne e da alma dos cidadãos que se amanhem. A vida é como Deus a concebeu e quem ganha são sempre os mesmos, como na quinta de Orwell. 

    Deus, pátria, autoridade. O deus é Jeová recauchutado como Jesus Cristo; a pátria é uma mistificação beatífica de uma chusma de heróis sanguinários (o mundo não é um mar de rosas) que se foram safando à força da bordoada que é como se traçam as fronteiras que definem as nações; a autoridade é a perspectiva fascista da coisa: ódio, violência e repressão de tudo o que não vai conforme os ditames do chefe. Quem não vê isto é porque está a dormir e precisa de ser acordado. 

sexta-feira, junho 20, 2025

Comunicação

     Há poucos livros de Stanislaw Lem editados em Portugal. Sendo que um deles é um dos livros da minha vida: Solaris. Já devo ter escrito alguma coisa sobre essa obra-prima (a opinião está longe de ser minha) algures por aí, no 100 Cabeças. Escrever este post foi um impulso que senti após ter terminado a leitura do 2º conto de "A máscara e outros contos", editado em Maio deste ano pela Antígona. O título desse conto é "O rato do labirinto" e foi escrito em 1956.

    E senti o impulso de escrever estas frases por ter encontrado aqui uma situação narrativa que me fascinou em Solaris; as personagens vêem-se confrontadas com o surgimento inexplicável de duplos. Não vou estar para aqui a perorar sobre o alcance filosófico da coisa. Surgiu-me a ideia de que este "rato" possa ser a semente de Solaris. A ideia de que estabelecer contacto com algo que nos é absolutamente estranho possa gerar situações delirantes parece-me absolutamente lógica.

    Não sei se alguém, em algum laboratório bafiento, algures nas caves de um departamento científico esquecido nas estepes russas, tenta estabelecer contacto com um grupo de amibas. Partindo do princípio que tal experiência está a acontecer, sonho. 

sábado, junho 14, 2025

Exactamente aqui

     Este mundo deprime-me talvez até mais do que a perspectiva de vir um dia (mais cedo que tarde) a mudar a minha morada estabelecendo-me no outro. No outro mundo. Não, não estou a falar do continente chamado "amaricano", estou mesmo a falar do dito Além, para lá do Estige, não sei se estás a visualizar. Pronto, ok, simplificando: o mundo dos mortos... "I see dead people", esse tipo de coisas. Dizia que este mundo me deprime talvez mesmo mais que essoutro. 

    Não tendo cão sinto-me desabilitado a parafrasear aquele gajo (não me lembro bem a quem me refiro) que elogiava o canito ao mesmo tempo que cagava um pouco nos Homens, assim, com "H" grande querendo referir-se à Humanidade. Isto de tomar a Humanidade pelos Homens é uma cena bué machista ou patriarcal ou o caralho (nestas circunstâncias não fica mal abusar da virilidade lexical) e deixa o universo feminino à beira da contracção. E com razões para barafustar, sejamos justos.

    Enfim, perco-me, como é meu hábito, e tenho de meter travões, parar, reler e perceber onde pretendia chegar quando comecei a escrever este texto. Reflicto um pouco e concluo que pretendia chegar aqui. Exactamente aqui. 

quarta-feira, junho 04, 2025

Desengano

     Já não tenho a mínima dúvida, estamos a regredir a olhos vistos. Regredimos individual e colectivamente. Vejo muitos jovens penteadinhos, dos que raspam o trombil com lâminas de barbear para puxar a penugem, que começam a assemelhar-se a chimpanzés - regredimos.

    Fala-se em ideologias de extrema-direita mas duvido que o vocábulo seja adequado para descrever o amontoado de incongruências patéticas que por aí vão brotando, verdadeiras ervas-daninhas. Aquilo não são sistemas de ideias, aquilo não podem ser considerados valores, aquilo não orienta uma maneira de estar, antes pelo contrário, aquilo desorienta o mais pintado. 

    Quando o ódio é a nossa razão de existir, quando o que nos move é estar contra: contra o outro, contra o mundo, contra o bem e contra o mal, quando não somos capazes de encontrar dentro de nós uma semente de esperança, um vislumbre de felicidade por muito distante que seja, quando somos negativos do nascer ao pôr do sol, quando não somos capazes de ser a favor de nada, incapazes de imaginar construir, quando temos prazer na proibição, no encarceramento, no sofrimento alheio, então temos o caldo entornado.

    Muitas vezes pensei que a qualidade de uma sociedade se mede pela forma como trata as minorias. Esta sociedade é uma desilusão infinita.

    Muitas vezes pensei que a Humanidade vive em constante evolução; afinal somos amibas que se transformaram em macacos que aprenderam a falar. Também aqui me enganei redondamente. Não fui capaz de perceber o que muitos antes de mim escreveram e pensaram e voltaram a escrever. Estamos convencidos de que somos superiores aos nossos antepassados só porque temos telemóveis e computadores quânticos. Que tolice, pobres imbecis.

    Inventámos Deus na esperança de conseguirmos um modelo ideal que orientasse a nossa caminhada futuro adentro. O resultado? É a merda que se vê.

domingo, junho 01, 2025

Amor eterno

 


    Aqui há uns tempos uma onda de indignação varreu praias e montanhas, varreu vilas e cidades, a Nação Lusitana levantava a voz contra um designer que tivera o atrevimento de apagar as quinas (e outras minudências) do símbolo do Governo de Portugal que viria a ser adoptado e depois desadoptado devido à polémica barulheira. O dinheiro que se gastou naquilo tudo!
 
    Entretanto reparei no logotipo da Secretaria Geral da Administração Interna, Conferia gravitas e alguma beleza a um daqueles magníficos cartazes que apelavam ao voto nas recentes eleições legislativas (dinheiro bem aplicado). Senti uma inexplicável urgência em beber uma bujeca. Uma Sagres, logo eu que sou adepto mais ou menos ferrenho da Super Bock. 
     
    O que se passava comigo? Fiquei preocupado. Depois compreendi, era tudo uma questão de patriotismo e amor à Nossa História, a força das 5 Quinas a espetar-se-me no coração, a dilacerar-me a alma: Nação Valente e beberronice, Portugal é macho! Ainda assim matei a sede com uma Super Bock.

quinta-feira, maio 29, 2025

O pequeno monstro

     "Estes malucos deixam-me nervoso. Se não fosse o Artur corria esta porcaria toda ao pontapé daqui para fora." Entrara na sala de espera com cara de poucos amigos. Era um tipo absolutamente vulgar, sem nada que o distinguisse dos móveis, das paredes ou dos outros seres vivos. Não fosse a irritação estampada no rosto e ninguém se daria ao trabalho de sequer olhar para ele. "Artur!" Disse, de modo a que todos os presentes ouvissem bem o som da sua voz. O cão deu um pinote como se tivesse sentido uma descarga eléctrica e pulou para o outro lado da sala. "Sim?" respondeu Artur, descravando os dentes do tampo da mesa.

    "Não mordas a merda da mesa, caraças! Estou fartinho de te dizer que não faças isso, caramba!" O miúdo olhou-o vagamente e passou as costas da mão pelo nariz ranhoso. O cão foi encostar-se à parede numa estranha posição em que deixava as duas patas  do seu lado esquerdo suspensas no ar. Não ladrou, não ganiu, todo ele era silêncio. "Este cão também precisa de consultar o Doutor Cabeças." Pensou o homem enquanto limpava o nariz de Artur com um lenço que retirou do bolso do casaco. "Dá cá a mão." O miúdo obedeceu. "A outra". O miúdo estendeu a mão repleta de ranho na direcção do homem que a limpou com toda a paciência.

    Olhou por sobre o ombro. Aquele que estava ali em pé a contorcer-se como uma enguia era novo, nunca o tinha visto no consultório. A mulher-árvore era cliente assídua, pacífica, mas aquele gajo tinha qualquer coisa de inquietante. Instintivamente passou o braço esquerdo sobre os ombros de Artur. O rapaz sentiu-se confortado. 

    "Artur Reboredo!" a assistente do Doutor fez ecoar a sua voz de cana rachada. O homem levantou-se e, segurando Artur pela mão, avançou em passos decididos. Florbela, a assistente do Doutor Cabeças, deixou-os passar à sua frente. Segurava um bloco de notas comprido na mão direita e deu meia volta dramática, atirando a cabeça para trás num gesto muito caracterítico, seguindo de imediato o homem e o rapazola. "Sou poderosa" pensou, e fez soar com vigor os saltos altos dos sapatos no soalho flutuante marcando um ritmo marcial que conferiu alguma dignidade à banalidade desta cena.

    Artur transportava o monstrito de plástico bem apertado entre os dedos da sua mão esquerda.

quarta-feira, maio 28, 2025

Extraordinarice

     É assim mesmo que as coisas se passam. Temos de esgueirar-nos numa floresta de acontecimentos banais, sempre na esperança de que algo notável possa acontecer antes do final de cada dia. Convém sublinhar que muitos de nós são seres de uma fragilidade absoluta, seres construídos sobre personalidades de cristal, personalidades incapazes de suportar os tons mais agudos, sempre em risco de rachar, de quebrar, de voar em todas as direcções, estilhaçadas.

    Como perceber a excepcionalidade de um acontecimento? Sim, a questão é de suma importância apesar de nos parecer um bocado tola: então não se percebe logo quando um acontecimento é extraordinário!? Não. Nem sempre.

    Ainda hoje vi duas pombas, uma fêmea e uma macho, jogando o jogo da Primavera, e vi um senhora muito forte que se deslocava apoiada numa bengala com uma espécie de casaco comprido que esvoaçava batido pela brisa, uma figura notável, e vi um cão preto a ser amarrado à porta do supermercado e depois a latir timidamente, chamando a dona que havia ido às compras, enquanto olhava em volta a tentar perceber exactamente o que se passava. Vi todas estas coisas que me pareceram extraordinárias apesar de aparentemente ordinárias.

    Depois de escrever o parágrafo anterior fica a dançar-me na cabeça uma pergunta que poderá parecer uma pergunta de merda: haverá alguma coisa que não seja extraordinária?

terça-feira, maio 27, 2025

Monte de merda com dois olhos

     Ah, rai's parta esta merda, caralhos fodam este filho da puta! Como é possível haver ainda gente que assume um cargo público e que, uma vez na chefia, não respeita os compromissos assumidos pelo antecessor (ou antecessora)!? Como é possível haver verdadeiros sacos de merda convencidos de que são a coisa mais bela que por aí anda e, como tal, coisa merecedora de todos os miminhos e de todos os perdões que as suas falcatruas venham a necessitar para que não pareçam a bosta que são? Ah, eu sou eu e não tenho nada que respeitar compromissos assumidos por alguém que, ainda por cima, era uma grande pirosa! Agora o mundo é iluminado pela minha extraordinária perspicácia e indiscutível bom gosto.

    Olho para aquela porcaria e penso: "é bom que as coisas não se estraguem." Sim, porque se as coisas acabarem por se estragar, então estará tudo fodido. E estará tudo fodido com justa causa.

domingo, maio 25, 2025

Árvore Imunalógica (a coisa feita coisa)


Árvore Imunalógica, 

acrílico sobre papel de aguarela colado em cartão, 

280X180cm nos eixos maiores

sexta-feira, maio 23, 2025

O pinheiro solitário

     O miúdo deve ter algum problema. Não é normal, muito menos é natural, a forma com tem os dentes ferrados no tampo da mesa. Finjo não reparar e continuo fixa na parede. O Doutor Cabeças aconselha-me bem, finjo ser uma árvore. Sei que dou nas vistas. Não serei tão estranha como aquele puto (fogo, o gajo é mesmo esquisito!) mas dou muito nas vistas, assim, parada, a imaginar-me um pinheiro. Hoje sou um pinheiro.

    Ontem fui outra árvore mas, como as árvores têm muito fraca memória, não consigo recordar-me que árvore fui ontem. Recordar-me de ter sido uma árvore já não é nada mau. Faço progressos e quero informar o Doutor. Estou em pulgas, impaciente como um noivo no dia do casamento. Nunca mais me chamam. Que tortura!

    Aquele gajo que está ali, em pé, a olhar para tudo como se nunca tivesse visto nada na vida, a rodar o pescoço como se fosse uma galinha, aquele gajo é também uma personagem improvável. Veste-se como... não consigo situar a farpela, percebo que é uma coisa absolutamente anacrónica, já vi aquilo milhares de vezes mas não consigo lembrar-me... um poeta, um príncipe, um cavaleiro, um bandido, um assassino? Quem é que se vestia com uma gola daquelas? Caramba, tenho o nome aqui debaixo da língua mas não consigo dizê-lo. Desisto. Não consigo lembrar-me.

    Vá lá, tenho de acalmar-me. O cão está tão sossegado! Gostava de ter a postura deste cão. Mas hoje sou um pinheiro e um pinheiro não se preocupa com este tipo de coisas.

quinta-feira, maio 22, 2025

Artur

     A sala de espera tem um aspecto entre o austero e o histérico. Um sofá verde de napa com 4 lugares, dois maples a condizer, uma mesinha baixa com tampo de vidro onde se amontoa uma pequena pilha de revistas antigas que já ninguém lê. Algumas pequenas gravuras emolduradas tentam ornamentar as paredes sem grande sucesso: uma feira em plano americano tocando violino numa pose muitíssimo contra-reforma, com um halo e tudo, como se fosse iluminada por Deus ou por coisa que O valha; uma paisagem rural à maneira daquelas pinturas britânicas do século XVIII, com vacas; uma imitação de Vlaminck a berrar no meio de tudo aquilo, a dar o tal toque de histeria. 

    Imagino a aparência do médico; terá sido o Doutor Cabeças responsável pela decoração daquele espaço? Uma mulher despenteada e muito magra senta-se numa ponta do sofá; tem os olhos fixos num ponto indefinido situado algures entre a extremidade do seu longuíssimo nariz e a parede em frente. Um cão, aparentemente um rafeiro, descansa a seus pés com o focinho depositado na alcatifa vermelha que faz um belo contraste de complementares com o sofá e os maples. Os objectos já estão gastos, as cores um tanto esbatidas, mas têm a sua dignidade. A mulher não mexe um músculo que seja, nem sequer pestaneja.

    Sentado na alcatifa, com os dentes aferrados ao tampo da mesa, um miúdo dos seus três ou quatro anos parece hipnotizado por alguma fada invisível. Segura na mão um boneco de plástico, um pequeno monstro disforme, esquecido e sem graça. Um fio de baba escorre-lhe de um dos cantos da boca. O nariz rebrilha de ranho. Um homem entra na sala vindo de uma porta que agora se fecha e na qual eu ainda não tinha reparado. "Artur", diz ele e o cão levanta-se de um salto e o miúdo responde, absorto "sim?"

quarta-feira, maio 21, 2025

Um gajo nem as sonha

     Um gajo tende a florear o passado quando trata de ensiná-lo às criancinhas. A ideia é não traumatizar demasiado a petizada, manter as coisas dentro de fronteiras fofinhas e, se possível, traçadas a tinta cor-de-rosa. 

    Um gajo esquece-se que é adulto e que as imagens que cria e transmite a um puto não lhe caem no entendimento com contornos idênticos aos que está a esboçar na sua cabeça emissora. Então temos soldados anjinhos a disparar cravos vermelhos com as suas metralhadoras deixando a pairar um fumozinho que é, na verdade, uma réstea de amor. 

    É uma história um bocado imbecil onde, normalmente, os maus não são sequer nomeados, como se a luta da Liga da Justiça fosse feita contra o vazio. Ainda aparece por ali uma pomba branca que não se percebe muito bem qual é o seu papel. Talvez esteja com fominha e haja migalhas para ela debicar.

    Um gajo conta e reconta histórias deste calibre aos putos, ano após ano. Os putos vão crescendo mas a história mantém os traços infantilóides absolutamente inalterados e os soldados já não são anjinhos, são uma espécie de personagens da Marvel Comics que vomitam cravos vermelhos sempre que uma pomba surge entre os prédios a esvoaçar de forma ameaçadora sobre uma massa informe e sanguinolenta a que se dá o nome de povo.

    Os putos crescem e um dia irão votar.

terça-feira, maio 13, 2025

Palestrante

     O palestrante deambulava para a esquerda e para a direita numa linha vagamente recta. Aqui e ali uma paragem, acolá uma suspensão no discurso, tudo razoavelmente dramático. Esboçou uma narrativa carregada com traços terroríficos. O gesto, o tom, o estilo, tudo para convocar um sentimento piedoso entre nós, na plateia. E a coisa funcionou. Os espectadores pareceram irmanados pela compreensão do sofrimento alheio. Tudo muito piedoso, tudo muito solidário em retrospectiva. Bastaria olhar os rostos comprimidos dos que escutavam o professor para perceber que se tratava de boa gente, que era tudo boa gente.

    Algo me incomodou a ponto de retirar o meu bloco do bolso para registar o que se segue: "muito evocamos os tormentos e pouco falamos de alegrias." 

    Voltei a guardar o bloco no bolso do casaco e continuei a seguir o passeio do professor à minha frente; direita, esquerda, parado, em andamento. No fim todos batemos palmas.

sexta-feira, maio 09, 2025

O bicho

     Cambaleava com toda a convicção. A noite quente, a solidão mas, sobretudo, o álcool. Sentiu uma angústia tão completa que teve de a expulsar na forma de um terrível grito, um som aterrador que feriu a noite e ofendeu a lua. 

    Áúúúúúúú, áúúúúúúú!!! 

    Aquela coisa animalesca ecoou nas fachadas baixas dos prédios, percorreu as ruas todas perpendiculares umas às outras. Era um uivo a assombrar a cidade, monótona e previsível como um acampamento militar do tempo dos romanos. 

    Áúúúúúúú, áúúúúúúú!!!

    O mar batia na praia lá mais para diante. Passou o portão do cemitério, fechado àquela hora. Sentia-se triste mas tremendamente livre.

segunda-feira, maio 05, 2025

Árvore Imunalógica (3ª tentativa)

 

O sol, um rio, um chacal, um hipopótamo. Um homem de longa barba e farta cabeleira branca, uma floresta, uma montanha, uma tempestade, uma mulher, um pássaro, um fantasma, ouro, muito ouro, imenso ouro! Um espírito, o mar profundo, o azul do céu, um demónio, o fogo, a água, o ar, a terra, um nome, um nome proibido, um nome impossível de pronunciar; uma nota de banco, um olho desenhado no céu.

Outro homem, filho do primeiro: encarnação; um livro, um livro sagrado, “o” livro: encadernação.

Um som, um sopro, uma ausência. A lua. A tempestade.

Deus é um híbrido, resulta do cruzamento entre a carne humana e o espírito que a anima, o que faz Dele uma ideia.

Deus, seja Ele qual for, seja Ele o que for, Deus, sem nós, não existe. Quando o último Ser Humano perecer, de Deus não restará nem a memória!

sexta-feira, maio 02, 2025

Sem título

     A manhã mal começara mas o homem sabia bem que o dia haveria de ser passado à espera que chegasse ao fim. Cada minuto, cada hora, potenciais suplícios. Calçou as botas com a ajuda de uma calçadeira, apertou o cinto num furo mais adiante, a barriga a crescer-lhe como se pudesse estar grávido, a crescer-lhe todos os dias um pouco mais, um pouco mais, haveria limite para aquilo ou acabaria por rebentar espalhando sangue e tripas à sua volta? Esta imagem fê-lo sorrir. Agradavam-lhe ideias assim, ideias extremamente estúpidas. 

    Saiu arrastando os pés. Dirigiu-se ao supermercado. Cruzou-se com mais pessoas que pareciam arrastar-se como ele, pessoas aparentemente desanimadas, aparentemente pouco dadas a sonhar com um futuro para lá do meio-dia. Colocou uma embalagem de cogumelos laminados no cestinho com rodas. Juntou-lhe uma garrafa de vinho tinto e duas latas de atum em promoção. Dirigiu-se à caixas automáticas e escolheu uma, ao acaso. A máquina não colaborou logo à primeira tentativa mas depois da intervenção de uma senhora credenciada pela empresa detentora do capital da loja, lá se decidiu a cumprir o seu papel nesta cadeia fastidiosa de acontecimentos banais. O homem pagou com um cartão de débito e saiu do supermercado.

    Chuviscava. Atravessou a rua na passadeira. Um carro vermelho teve de parar para que ele atravessasse. Regressou a casa e sentou-se no sofá sem grande entusiasmo. Pegou no livro que deixara sobre a mesinha: "Este país não é para velhos" de Cormac McCarthy. Sorriu. Talvez devesse emigrar.

sábado, abril 26, 2025

Ele

    Acontecem tantas coisas ao longo de um único dia que ele não consegue imaginar a possibilidade de imaginar "eternidade". É algo que, para ele, nunca poderá fazer o mínimo sentido. "Eternidade" está, na cabeça deste gajo, ao mesmo nível que "infinito". Não dá para sequer tentar o esboço de uma ideia. 

    Ele pensa que eternidade e infinito são coisas próprias de deuses, pelo menos. Talvez nem mesmo certos deuses tenham capacidade para conceber tais absolutos, que há deuses muito parvos, estúpidos e até mesquinhos. Bem vistas as coisas, ser um deus não é assim tão especial como nos querem fazer crer. Depende muito dos poderes que forem postos à sua disposição e as funções que possam exercer.

    Não sabe se há um deus para a merda mas admite que sim, que existe uma divindade cuja principal função é a de lidar com assuntos relacionados com a actividade intestinal. À primeira vista ele não inveja a ocupação dessa divindade mesmo que a execução da função lhe traga certos benefícios como, por exemplo, a imortalidade. Não sabe porquê mas passar a eternidade a lidar com merda a toda a hora e momento é coisa que não o seduz. Isto apesar de, como é sabido, ele não ser capaz de compreender o que possa significar "eternidade".

segunda-feira, abril 21, 2025

Santo morto, santo posto

     Hoje morreu o Papa Francisco. Paz à sua alma.

domingo, abril 20, 2025

Páscoa

     Acredita quem quer e acredita quem pode, quem consegue acreditar. Ele bem que se empenha mas não vai lá! Esforça-se muito, tenta anular o raciocínio, dar primazia ao coração. Bate e rebate cada canto do seu ser em busca de um vestígio, uma pista que o conduza à presença de uma alma que não acredita possuir. E o resultado é igual a nada, absolutamente nada e mais silêncio, foi tudo o que conseguiu até agora. Fé? Nem vê-la! Quanto mais senti-la.

    Exasperado pensa que Deus não se está a esforçar por conduzi-lo na direcção do redil que tanto anseia encontrar e habitar. Logo a seguir pensa que Deus terá decerto muito mais que fazer do que prestar atenção a um ser insignificante, que é aquilo que ele é. Olha pela janela. A noite não tem estrelas.

quinta-feira, abril 17, 2025

Ei-los que chegam

    Chegavam vindos de toda a parte. Era como se o país estivesse inclinado para o lado do mar. Vinham à procura de trabalho e de um buraco para viver. Pobres diabos lançados às feras deste mundo, sem futuro nem o mínimo vestígio de riqueza. Sujos e esfarrapados olhavam em volta com aqueles olhos de quem aceita o que quer que lhe seja oferecido. Os mais perdidos aceitariam de bom grado a própria morte.

segunda-feira, abril 14, 2025

Ossos do futuro

     Sentia-se preso. Preso a um lugar, preso a uma certa maneira de assistir à passagem do tempo, sentia-se preso ao corpo que sempre lhe servira de morada. Aquela sensação começava a deixá-lo desconfortável consigo próprio, coisa que havia muito tempo o não apoquentava. Talvez uma viagem pudesse atenuar tão incómoda sensação. Mas também não lhe parecia que isso pudesse resolver o problema (se é que tudo aquilo poderia ser considerado um problema).

     O que fazer, então? Inventar trabalhos estranhos, tarefas impossíveis que pudessem ocupar-lhe os pensamentos? Deitar-se no chão de barriga para cima a olhar o tecto? Ler todos os livros na prateleira que ainda não lera? Pensando bem podia engendrar diversas actividades capazes de atenuar aquela dor que continuava a não conseguir localizar. Mas aquelas ideias pareciam vir também engaioladas. Duvidou que pudesse escapar por essas vias.

    Foi então que sentiu aquela friagem subir-lhe corpo acima até se lhe gelar por completo o interior do crânio, como se chegasse um inverno desconhecido a instalar-se dentro dele. Gelo, neve e uma tristeza infinita.

sexta-feira, abril 11, 2025

Da finitude

     Não é aconselhável, não se pode esperar que um adolescente páre ou tenha tempo para contemplar as árvores. Olhando em volta constato que as pessoas que frequentam a calçada sobre a qual desloco os meus passos estão envelhecidas. Todas elas, Reconheço um ou outro antigo jovem lá por detrás das rugas ou debaixo da curvatura da coluna. Andamos com a canga do tempo às costas.

    Vivemos num espaço onde a memória se confunde com o futuro. Isso não é muito saudável. Na verdade nada é saudável pois todo o momento que vivemos nos conduz em direcção à morte certa. Umas coisas aceleram, outras retardam o momento fatal, no finzinho não haverá saúde que nos valha. Ou já se terá perdido algures ao longo da estrada ou algum acontecimento súbito a faz secar de um momento para o outro. Finito. 

segunda-feira, abril 07, 2025

Para chegar à alma

     A religião é útil para a organização de sistemas sociais embrionários, enquanto os elementos que formam um grupo não têm ainda consciência do papel que poderão vir a desempenhar no todo sem imaginarem coisas um bocado difíceis de aceitar (matar, roubar, cobiçar a mulher alheia, etc). Nessas circunstâncias é razoável ameaçar toda a gente com a figura de um pai que vive para lá das nuvens ou no topo daquela montanha inacessível que virá distribuir desgraças caso não sejam cumpridas as regras impostas pela religião. É como fazemos com as crianças quando elas não se portam de acordo com os nossos desejos, ameaçamos com o papão. Deus é o papão dos animais humanos mais ou menos adultos.

    Para sociedades formadas por elementos com dois dedos de testa, a filosofia facilmente substitui a religião. Penso que podemos encontrar a felicidade para lá dos altares e das estantes de livros mas reconheço que precisamos de algo que nos possa iluminar nas horas mais escuras. Pessoalmente não estou a ver que a religião sirva para atenuar a dor (quando os meus pais faleceram não me serviu de grande coisa, na verdade não me serviu de nada) mas acredito que possa confortar quem acredite piamente em certas coisas que, aos meus ouvidos, soam a treta absoluta. Não sei se invejo essas pessoas.

    Quanto à filosofia... confesso que não pensei muito no assunto, sou mais adepto da arte como via para fortalecimento e alívio do espírito. Bem vistas as coisas talvez o sistema seja encontrar complementaridade entre as diferentes vias: religião, filosofia, arte e mais que venha.

    O cérebro é, de facto, uma máquina complicada. É uma máquina capaz de produzir uma alma que lhe faça companhia.

quarta-feira, abril 02, 2025

Que somos nós?

    Se "pensar é acrescentar frases a uma frase inicial, multiplicar as frases em volta de uma primeira sentença" (Gonçalo M. Tavares, Atlas do Corpo e da Imaginação, pág 065), o que dizer do ser vivo? O que dizer de ti, que lês estas palavras? 

    O que somos nós senão vidas que andam à volta de si próprias? O que somos senão múltiplos de algo há muito esquecido? O que seremos senão seres unicelulares que se complicaram para além da capacidade de uma imaginação alucinada?                                              

terça-feira, abril 01, 2025

Árvore Imunalógica (reflexão opaca)

     

    Em princípio Deus terá sido inventado por algo semelhante a um Ser Humano apesar de, na maioria das cosmogonias religiosas entretanto estabilizadas, a coisa tenha acontecido ao contrário. Na tentativa de clarificar esta complexa questão criou-se a adivinha: “o que apareceu primeiro?”, na qual substituímos Deus e o Ser Humano, pelo Ovo e pela Galinha. Até hoje as respostas mais conclusivas e definitivas, que postulam ter sido Deus o primeiro a aparecer e que depois vai criando tudo o que mexe e tudo o que está parado, são teorias impostas à força da martelada ou plantadas em territórios fertilizados pela mais profunda ignorância. 

    A existência de Deus parece implicar obrigatoriamente que se tenha medo de alguma coisa, reverência absoluta e necessidade de protecção perante as forças cósmicas. Trata-se de uma protecção do tipo mafioso: “se queres estar seguro pagas uma mensalidade, se não pagas ainda te acontece alguma desgraça”; esta ideia resume, de algum modo, o essencial das chamadas “religiões do livro”. Normalmente a alma é a moeda de troca.

    (continua)

sábado, março 29, 2025

O fantasma

     Já ali não havia dia nem havia noite. Apenas um estado de paroxismo permanente; um espanto, uma estupidificação, uma ausência de sentido no fluir do tempo. A cidade; ruído infinito, movimento perpétuo.

    Ali estava ele. Cambaleante.

    As palavras salivavam-lhe nos lábios e ele a cuspi-las. As palavras saíam-lhe da boca acompanhadas de grunhidos, roncos animalescos, sons que só naquela cabeça faziam algum sentido. Aquele ser vivo não iria morrer tão depressa apesar de a vida não lhe fazer grande falta. 

    Transmigrava suavemente para a condição de fantasma.