sábado, junho 14, 2025

Exactamente aqui

     Este mundo deprime-me talvez até mais do que a perspectiva de vir um dia (mais cedo que tarde) a mudar a minha morada estabelecendo-me no outro. No outro mundo. Não, não estou a falar do continente chamado "amaricano", estou mesmo a falar do dito Além, para lá do Estige, não sei se estás a visualizar. Pronto, ok, simplificando: o mundo dos mortos... "I see dead people", esse tipo de coisas. Dizia que este mundo me deprime talvez mesmo mais que essoutro. 

    Não tendo cão sinto-me desabilitado a parafrasear aquele gajo (não me lembro bem a quem me refiro) que elogiava o canito ao mesmo tempo que cagava um pouco nos Homens, assim, com "H" grande querendo referir-se à Humanidade. Isto de tomar a Humanidade pelos Homens é uma cena bué machista ou patriarcal ou o caralho (nestas circunstâncias não fica mal abusar da virilidade lexical) e deixa o universo feminino à beira da contracção. E com razões para barafustar, sejamos justos.

    Enfim, perco-me, como é meu hábito, e tenho de meter travões, parar, reler e perceber onde pretendia chegar quando comecei a escrever este texto. Reflicto um pouco e concluo que pretendia chegar aqui. Exactamente aqui. 

quarta-feira, junho 04, 2025

Desengano

     Já não tenho a mínima dúvida, estamos a regredir a olhos vistos. Regredimos individual e colectivamente. Vejo muitos jovens penteadinhos, dos que raspam o trombil com lâminas de barbear para puxar a penugem, que começam a assemelhar-se a chimpanzés - regredimos.

    Fala-se em ideologias de extrema-direita mas duvido que o vocábulo seja adequado para descrever o amontoado de incongruências patéticas que por aí vão brotando, verdadeiras ervas-daninhas. Aquilo não são sistemas de ideias, aquilo não podem ser considerados valores, aquilo não orienta uma maneira de estar, antes pelo contrário, aquilo desorienta o mais pintado. 

    Quando o ódio é a nossa razão de existir, quando o que nos move é estar contra: contra o outro, contra o mundo, contra o bem e contra o mal, quando não somos capazes de encontrar dentro de nós uma semente de esperança, um vislumbre de felicidade por muito distante que seja, quando somos negativos do nascer ao pôr do sol, quando não somos capazes de ser a favor de nada, incapazes de imaginar construir, quando temos prazer na proibição, no encarceramento, no sofrimento alheio, então temos o caldo entornado.

    Muitas vezes pensei que a qualidade de uma sociedade se mede pela forma como trata as minorias. Esta sociedade é uma desilusão infinita.

    Muitas vezes pensei que a Humanidade vive em constante evolução; afinal somos amibas que se transformaram em macacos que aprenderam a falar. Também aqui me enganei redondamente. Não fui capaz de perceber o que muitos antes de mim escreveram e pensaram e voltaram a escrever. Estamos convencidos de que somos superiores aos nossos antepassados só porque temos telemóveis e computadores quânticos. Que tolice, pobres imbecis.

    Inventámos Deus na esperança de conseguirmos um modelo ideal que orientasse a nossa caminhada futuro adentro. O resultado? É a merda que se vê.

domingo, junho 01, 2025

Amor eterno

 


    Aqui há uns tempos uma onda de indignação varreu praias e montanhas, varreu vilas e cidades, a Nação Lusitana levantava a voz contra um designer que tivera o atrevimento de apagar as quinas (e outras minudências) do símbolo do Governo de Portugal que viria a ser adoptado e depois desadoptado devido à polémica barulheira. O dinheiro que se gastou naquilo tudo!
 
    Entretanto reparei no logotipo da Secretaria Geral da Administração Interna, Conferia gravitas e alguma beleza a um daqueles magníficos cartazes que apelavam ao voto nas recentes eleições legislativas (dinheiro bem aplicado). Senti uma inexplicável urgência em beber uma bujeca. Uma Sagres, logo eu que sou adepto mais ou menos ferrenho da Super Bock. 
     
    O que se passava comigo? Fiquei preocupado. Depois compreendi, era tudo uma questão de patriotismo e amor à Nossa História, a força das 5 Quinas a espetar-se-me no coração, a dilacerar-me a alma: Nação Valente e beberronice, Portugal é macho! Ainda assim matei a sede com uma Super Bock.

quinta-feira, maio 29, 2025

O pequeno monstro

     "Estes malucos deixam-me nervoso. Se não fosse o Artur corria esta porcaria toda ao pontapé daqui para fora." Entrara na sala de espera com cara de poucos amigos. Era um tipo absolutamente vulgar, sem nada que o distinguisse dos móveis, das paredes ou dos outros seres vivos. Não fosse a irritação estampada no rosto e ninguém se daria ao trabalho de sequer olhar para ele. "Artur!" Disse, de modo a que todos os presentes ouvissem bem o som da sua voz. O cão deu um pinote como se tivesse sentido uma descarga eléctrica e pulou para o outro lado da sala. "Sim?" respondeu Artur, descravando os dentes do tampo da mesa.

    "Não mordas a merda da mesa, caraças! Estou fartinho de te dizer que não faças isso, caramba!" O miúdo olhou-o vagamente e passou as costas da mão pelo nariz ranhoso. O cão foi encostar-se à parede numa estranha posição em que deixava as duas patas  do seu lado esquerdo suspensas no ar. Não ladrou, não ganiu, todo ele era silêncio. "Este cão também precisa de consultar o Doutor Cabeças." Pensou o homem enquanto limpava o nariz de Artur com um lenço que retirou do bolso do casaco. "Dá cá a mão." O miúdo obedeceu. "A outra". O miúdo estendeu a mão repleta de ranho na direcção do homem que a limpou com toda a paciência.

    Olhou por sobre o ombro. Aquele que estava ali em pé a contorcer-se como uma enguia era novo, nunca o tinha visto no consultório. A mulher-árvore era cliente assídua, pacífica, mas aquele gajo tinha qualquer coisa de inquietante. Instintivamente passou o braço esquerdo sobre os ombros de Artur. O rapaz sentiu-se confortado. 

    "Artur Reboredo!" a assistente do Doutor fez ecoar a sua voz de cana rachada. O homem levantou-se e, segurando Artur pela mão, avançou em passos decididos. Florbela, a assistente do Doutor Cabeças, deixou-os passar à sua frente. Segurava um bloco de notas comprido na mão direita e deu meia volta dramática, atirando a cabeça para trás num gesto muito caracterítico, seguindo de imediato o homem e o rapazola. "Sou poderosa" pensou, e fez soar com vigor os saltos altos dos sapatos no soalho flutuante marcando um ritmo marcial que conferiu alguma dignidade à banalidade desta cena.

    Artur transportava o monstrito de plástico bem apertado entre os dedos da sua mão esquerda.

quarta-feira, maio 28, 2025

Extraordinarice

     É assim mesmo que as coisas se passam. Temos de esgueirar-nos numa floresta de acontecimentos banais, sempre na esperança de que algo notável possa acontecer antes do final de cada dia. Convém sublinhar que muitos de nós são seres de uma fragilidade absoluta, seres construídos sobre personalidades de cristal, personalidades incapazes de suportar os tons mais agudos, sempre em risco de rachar, de quebrar, de voar em todas as direcções, estilhaçadas.

    Como perceber a excepcionalidade de um acontecimento? Sim, a questão é de suma importância apesar de nos parecer um bocado tola: então não se percebe logo quando um acontecimento é extraordinário!? Não. Nem sempre.

    Ainda hoje vi duas pombas, uma fêmea e uma macho, jogando o jogo da Primavera, e vi um senhora muito forte que se deslocava apoiada numa bengala com uma espécie de casaco comprido que esvoaçava batido pela brisa, uma figura notável, e vi um cão preto a ser amarrado à porta do supermercado e depois a latir timidamente, chamando a dona que havia ido às compras, enquanto olhava em volta a tentar perceber exactamente o que se passava. Vi todas estas coisas que me pareceram extraordinárias apesar de aparentemente ordinárias.

    Depois de escrever o parágrafo anterior fica a dançar-me na cabeça uma pergunta que poderá parecer uma pergunta de merda: haverá alguma coisa que não seja extraordinária?

terça-feira, maio 27, 2025

Monte de merda com dois olhos

     Ah, rai's parta esta merda, caralhos fodam este filho da puta! Como é possível haver ainda gente que assume um cargo público e que, uma vez na chefia, não respeita os compromissos assumidos pelo antecessor (ou antecessora)!? Como é possível haver verdadeiros sacos de merda convencidos de que são a coisa mais bela que por aí anda e, como tal, coisa merecedora de todos os miminhos e de todos os perdões que as suas falcatruas venham a necessitar para que não pareçam a bosta que são? Ah, eu sou eu e não tenho nada que respeitar compromissos assumidos por alguém que, ainda por cima, era uma grande pirosa! Agora o mundo é iluminado pela minha extraordinária perspicácia e indiscutível bom gosto.

    Olho para aquela porcaria e penso: "é bom que as coisas não se estraguem." Sim, porque se as coisas acabarem por se estragar, então estará tudo fodido. E estará tudo fodido com justa causa.

domingo, maio 25, 2025

Árvore Imunalógica (a coisa feita coisa)


Árvore Imunalógica, 

acrílico sobre papel de aguarela colado em cartão, 

280X180cm nos eixos maiores

sexta-feira, maio 23, 2025

O pinheiro solitário

     O miúdo deve ter algum problema. Não é normal, muito menos é natural, a forma com tem os dentes ferrados no tampo da mesa. Finjo não reparar e continuo fixa na parede. O Doutor Cabeças aconselha-me bem, finjo ser uma árvore. Sei que dou nas vistas. Não serei tão estranha como aquele puto (fogo, o gajo é mesmo esquisito!) mas dou muito nas vistas, assim, parada, a imaginar-me um pinheiro. Hoje sou um pinheiro.

    Ontem fui outra árvore mas, como as árvores têm muito fraca memória, não consigo recordar-me que árvore fui ontem. Recordar-me de ter sido uma árvore já não é nada mau. Faço progressos e quero informar o Doutor. Estou em pulgas, impaciente como um noivo no dia do casamento. Nunca mais me chamam. Que tortura!

    Aquele gajo que está ali, em pé, a olhar para tudo como se nunca tivesse visto nada na vida, a rodar o pescoço como se fosse uma galinha, aquele gajo é também uma personagem improvável. Veste-se como... não consigo situar a farpela, percebo que é uma coisa absolutamente anacrónica, já vi aquilo milhares de vezes mas não consigo lembrar-me... um poeta, um príncipe, um cavaleiro, um bandido, um assassino? Quem é que se vestia com uma gola daquelas? Caramba, tenho o nome aqui debaixo da língua mas não consigo dizê-lo. Desisto. Não consigo lembrar-me.

    Vá lá, tenho de acalmar-me. O cão está tão sossegado! Gostava de ter a postura deste cão. Mas hoje sou um pinheiro e um pinheiro não se preocupa com este tipo de coisas.

quinta-feira, maio 22, 2025

Artur

     A sala de espera tem um aspecto entre o austero e o histérico. Um sofá verde de napa com 4 lugares, dois maples a condizer, uma mesinha baixa com tampo de vidro onde se amontoa uma pequena pilha de revistas antigas que já ninguém lê. Algumas pequenas gravuras emolduradas tentam ornamentar as paredes sem grande sucesso: uma feira em plano americano tocando violino numa pose muitíssimo contra-reforma, com um halo e tudo, como se fosse iluminada por Deus ou por coisa que O valha; uma paisagem rural à maneira daquelas pinturas britânicas do século XVIII, com vacas; uma imitação de Vlaminck a berrar no meio de tudo aquilo, a dar o tal toque de histeria. 

    Imagino a aparência do médico; terá sido o Doutor Cabeças responsável pela decoração daquele espaço? Uma mulher despenteada e muito magra senta-se numa ponta do sofá; tem os olhos fixos num ponto indefinido situado algures entre a extremidade do seu longuíssimo nariz e a parede em frente. Um cão, aparentemente um rafeiro, descansa a seus pés com o focinho depositado na alcatifa vermelha que faz um belo contraste de complementares com o sofá e os maples. Os objectos já estão gastos, as cores um tanto esbatidas, mas têm a sua dignidade. A mulher não mexe um músculo que seja, nem sequer pestaneja.

    Sentado na alcatifa, com os dentes aferrados ao tampo da mesa, um miúdo dos seus três ou quatro anos parece hipnotizado por alguma fada invisível. Segura na mão um boneco de plástico, um pequeno monstro disforme, esquecido e sem graça. Um fio de baba escorre-lhe de um dos cantos da boca. O nariz rebrilha de ranho. Um homem entra na sala vindo de uma porta que agora se fecha e na qual eu ainda não tinha reparado. "Artur", diz ele e o cão levanta-se de um salto e o miúdo responde, absorto "sim?"

quarta-feira, maio 21, 2025

Um gajo nem as sonha

     Um gajo tende a florear o passado quando trata de ensiná-lo às criancinhas. A ideia é não traumatizar demasiado a petizada, manter as coisas dentro de fronteiras fofinhas e, se possível, traçadas a tinta cor-de-rosa. 

    Um gajo esquece-se que é adulto e que as imagens que cria e transmite a um puto não lhe caem no entendimento com contornos idênticos aos que está a esboçar na sua cabeça emissora. Então temos soldados anjinhos a disparar cravos vermelhos com as suas metralhadoras deixando a pairar um fumozinho que é, na verdade, uma réstea de amor. 

    É uma história um bocado imbecil onde, normalmente, os maus não são sequer nomeados, como se a luta da Liga da Justiça fosse feita contra o vazio. Ainda aparece por ali uma pomba branca que não se percebe muito bem qual é o seu papel. Talvez esteja com fominha e haja migalhas para ela debicar.

    Um gajo conta e reconta histórias deste calibre aos putos, ano após ano. Os putos vão crescendo mas a história mantém os traços infantilóides absolutamente inalterados e os soldados já não são anjinhos, são uma espécie de personagens da Marvel Comics que vomitam cravos vermelhos sempre que uma pomba surge entre os prédios a esvoaçar de forma ameaçadora sobre uma massa informe e sanguinolenta a que se dá o nome de povo.

    Os putos crescem e um dia irão votar.

terça-feira, maio 13, 2025

Palestrante

     O palestrante deambulava para a esquerda e para a direita numa linha vagamente recta. Aqui e ali uma paragem, acolá uma suspensão no discurso, tudo razoavelmente dramático. Esboçou uma narrativa carregada com traços terroríficos. O gesto, o tom, o estilo, tudo para convocar um sentimento piedoso entre nós, na plateia. E a coisa funcionou. Os espectadores pareceram irmanados pela compreensão do sofrimento alheio. Tudo muito piedoso, tudo muito solidário em retrospectiva. Bastaria olhar os rostos comprimidos dos que escutavam o professor para perceber que se tratava de boa gente, que era tudo boa gente.

    Algo me incomodou a ponto de retirar o meu bloco do bolso para registar o que se segue: "muito evocamos os tormentos e pouco falamos de alegrias." 

    Voltei a guardar o bloco no bolso do casaco e continuei a seguir o passeio do professor à minha frente; direita, esquerda, parado, em andamento. No fim todos batemos palmas.

sexta-feira, maio 09, 2025

O bicho

     Cambaleava com toda a convicção. A noite quente, a solidão mas, sobretudo, o álcool. Sentiu uma angústia tão completa que teve de a expulsar na forma de um terrível grito, um som aterrador que feriu a noite e ofendeu a lua. 

    Áúúúúúúú, áúúúúúúú!!! 

    Aquela coisa animalesca ecoou nas fachadas baixas dos prédios, percorreu as ruas todas perpendiculares umas às outras. Era um uivo a assombrar a cidade, monótona e previsível como um acampamento militar do tempo dos romanos. 

    Áúúúúúúú, áúúúúúúú!!!

    O mar batia na praia lá mais para diante. Passou o portão do cemitério, fechado àquela hora. Sentia-se triste mas tremendamente livre.

segunda-feira, maio 05, 2025

Árvore Imunalógica (3ª tentativa)

 

O sol, um rio, um chacal, um hipopótamo. Um homem de longa barba e farta cabeleira branca, uma floresta, uma montanha, uma tempestade, uma mulher, um pássaro, um fantasma, ouro, muito ouro, imenso ouro! Um espírito, o mar profundo, o azul do céu, um demónio, o fogo, a água, o ar, a terra, um nome, um nome proibido, um nome impossível de pronunciar; uma nota de banco, um olho desenhado no céu.

Outro homem, filho do primeiro: encarnação; um livro, um livro sagrado, “o” livro: encadernação.

Um som, um sopro, uma ausência. A lua. A tempestade.

Deus é um híbrido, resulta do cruzamento entre a carne humana e o espírito que a anima, o que faz Dele uma ideia.

Deus, seja Ele qual for, seja Ele o que for, Deus, sem nós, não existe. Quando o último Ser Humano perecer, de Deus não restará nem a memória!

sexta-feira, maio 02, 2025

Sem título

     A manhã mal começara mas o homem sabia bem que o dia haveria de ser passado à espera que chegasse ao fim. Cada minuto, cada hora, potenciais suplícios. Calçou as botas com a ajuda de uma calçadeira, apertou o cinto num furo mais adiante, a barriga a crescer-lhe como se pudesse estar grávido, a crescer-lhe todos os dias um pouco mais, um pouco mais, haveria limite para aquilo ou acabaria por rebentar espalhando sangue e tripas à sua volta? Esta imagem fê-lo sorrir. Agradavam-lhe ideias assim, ideias extremamente estúpidas. 

    Saiu arrastando os pés. Dirigiu-se ao supermercado. Cruzou-se com mais pessoas que pareciam arrastar-se como ele, pessoas aparentemente desanimadas, aparentemente pouco dadas a sonhar com um futuro para lá do meio-dia. Colocou uma embalagem de cogumelos laminados no cestinho com rodas. Juntou-lhe uma garrafa de vinho tinto e duas latas de atum em promoção. Dirigiu-se à caixas automáticas e escolheu uma, ao acaso. A máquina não colaborou logo à primeira tentativa mas depois da intervenção de uma senhora credenciada pela empresa detentora do capital da loja, lá se decidiu a cumprir o seu papel nesta cadeia fastidiosa de acontecimentos banais. O homem pagou com um cartão de débito e saiu do supermercado.

    Chuviscava. Atravessou a rua na passadeira. Um carro vermelho teve de parar para que ele atravessasse. Regressou a casa e sentou-se no sofá sem grande entusiasmo. Pegou no livro que deixara sobre a mesinha: "Este país não é para velhos" de Cormac McCarthy. Sorriu. Talvez devesse emigrar.

sábado, abril 26, 2025

Ele

    Acontecem tantas coisas ao longo de um único dia que ele não consegue imaginar a possibilidade de imaginar "eternidade". É algo que, para ele, nunca poderá fazer o mínimo sentido. "Eternidade" está, na cabeça deste gajo, ao mesmo nível que "infinito". Não dá para sequer tentar o esboço de uma ideia. 

    Ele pensa que eternidade e infinito são coisas próprias de deuses, pelo menos. Talvez nem mesmo certos deuses tenham capacidade para conceber tais absolutos, que há deuses muito parvos, estúpidos e até mesquinhos. Bem vistas as coisas, ser um deus não é assim tão especial como nos querem fazer crer. Depende muito dos poderes que forem postos à sua disposição e as funções que possam exercer.

    Não sabe se há um deus para a merda mas admite que sim, que existe uma divindade cuja principal função é a de lidar com assuntos relacionados com a actividade intestinal. À primeira vista ele não inveja a ocupação dessa divindade mesmo que a execução da função lhe traga certos benefícios como, por exemplo, a imortalidade. Não sabe porquê mas passar a eternidade a lidar com merda a toda a hora e momento é coisa que não o seduz. Isto apesar de, como é sabido, ele não ser capaz de compreender o que possa significar "eternidade".

segunda-feira, abril 21, 2025

Santo morto, santo posto

     Hoje morreu o Papa Francisco. Paz à sua alma.

domingo, abril 20, 2025

Páscoa

     Acredita quem quer e acredita quem pode, quem consegue acreditar. Ele bem que se empenha mas não vai lá! Esforça-se muito, tenta anular o raciocínio, dar primazia ao coração. Bate e rebate cada canto do seu ser em busca de um vestígio, uma pista que o conduza à presença de uma alma que não acredita possuir. E o resultado é igual a nada, absolutamente nada e mais silêncio, foi tudo o que conseguiu até agora. Fé? Nem vê-la! Quanto mais senti-la.

    Exasperado pensa que Deus não se está a esforçar por conduzi-lo na direcção do redil que tanto anseia encontrar e habitar. Logo a seguir pensa que Deus terá decerto muito mais que fazer do que prestar atenção a um ser insignificante, que é aquilo que ele é. Olha pela janela. A noite não tem estrelas.

quinta-feira, abril 17, 2025

Ei-los que chegam

    Chegavam vindos de toda a parte. Era como se o país estivesse inclinado para o lado do mar. Vinham à procura de trabalho e de um buraco para viver. Pobres diabos lançados às feras deste mundo, sem futuro nem o mínimo vestígio de riqueza. Sujos e esfarrapados olhavam em volta com aqueles olhos de quem aceita o que quer que lhe seja oferecido. Os mais perdidos aceitariam de bom grado a própria morte.

segunda-feira, abril 14, 2025

Ossos do futuro

     Sentia-se preso. Preso a um lugar, preso a uma certa maneira de assistir à passagem do tempo, sentia-se preso ao corpo que sempre lhe servira de morada. Aquela sensação começava a deixá-lo desconfortável consigo próprio, coisa que havia muito tempo o não apoquentava. Talvez uma viagem pudesse atenuar tão incómoda sensação. Mas também não lhe parecia que isso pudesse resolver o problema (se é que tudo aquilo poderia ser considerado um problema).

     O que fazer, então? Inventar trabalhos estranhos, tarefas impossíveis que pudessem ocupar-lhe os pensamentos? Deitar-se no chão de barriga para cima a olhar o tecto? Ler todos os livros na prateleira que ainda não lera? Pensando bem podia engendrar diversas actividades capazes de atenuar aquela dor que continuava a não conseguir localizar. Mas aquelas ideias pareciam vir também engaioladas. Duvidou que pudesse escapar por essas vias.

    Foi então que sentiu aquela friagem subir-lhe corpo acima até se lhe gelar por completo o interior do crânio, como se chegasse um inverno desconhecido a instalar-se dentro dele. Gelo, neve e uma tristeza infinita.

sexta-feira, abril 11, 2025

Da finitude

     Não é aconselhável, não se pode esperar que um adolescente páre ou tenha tempo para contemplar as árvores. Olhando em volta constato que as pessoas que frequentam a calçada sobre a qual desloco os meus passos estão envelhecidas. Todas elas, Reconheço um ou outro antigo jovem lá por detrás das rugas ou debaixo da curvatura da coluna. Andamos com a canga do tempo às costas.

    Vivemos num espaço onde a memória se confunde com o futuro. Isso não é muito saudável. Na verdade nada é saudável pois todo o momento que vivemos nos conduz em direcção à morte certa. Umas coisas aceleram, outras retardam o momento fatal, no finzinho não haverá saúde que nos valha. Ou já se terá perdido algures ao longo da estrada ou algum acontecimento súbito a faz secar de um momento para o outro. Finito. 

segunda-feira, abril 07, 2025

Para chegar à alma

     A religião é útil para a organização de sistemas sociais embrionários, enquanto os elementos que formam um grupo não têm ainda consciência do papel que poderão vir a desempenhar no todo sem imaginarem coisas um bocado difíceis de aceitar (matar, roubar, cobiçar a mulher alheia, etc). Nessas circunstâncias é razoável ameaçar toda a gente com a figura de um pai que vive para lá das nuvens ou no topo daquela montanha inacessível que virá distribuir desgraças caso não sejam cumpridas as regras impostas pela religião. É como fazemos com as crianças quando elas não se portam de acordo com os nossos desejos, ameaçamos com o papão. Deus é o papão dos animais humanos mais ou menos adultos.

    Para sociedades formadas por elementos com dois dedos de testa, a filosofia facilmente substitui a religião. Penso que podemos encontrar a felicidade para lá dos altares e das estantes de livros mas reconheço que precisamos de algo que nos possa iluminar nas horas mais escuras. Pessoalmente não estou a ver que a religião sirva para atenuar a dor (quando os meus pais faleceram não me serviu de grande coisa, na verdade não me serviu de nada) mas acredito que possa confortar quem acredite piamente em certas coisas que, aos meus ouvidos, soam a treta absoluta. Não sei se invejo essas pessoas.

    Quanto à filosofia... confesso que não pensei muito no assunto, sou mais adepto da arte como via para fortalecimento e alívio do espírito. Bem vistas as coisas talvez o sistema seja encontrar complementaridade entre as diferentes vias: religião, filosofia, arte e mais que venha.

    O cérebro é, de facto, uma máquina complicada. É uma máquina capaz de produzir uma alma que lhe faça companhia.

quarta-feira, abril 02, 2025

Que somos nós?

    Se "pensar é acrescentar frases a uma frase inicial, multiplicar as frases em volta de uma primeira sentença" (Gonçalo M. Tavares, Atlas do Corpo e da Imaginação, pág 065), o que dizer do ser vivo? O que dizer de ti, que lês estas palavras? 

    O que somos nós senão vidas que andam à volta de si próprias? O que somos senão múltiplos de algo há muito esquecido? O que seremos senão seres unicelulares que se complicaram para além da capacidade de uma imaginação alucinada?                                              

terça-feira, abril 01, 2025

Árvore Imunalógica (reflexão opaca)

     

    Em princípio Deus terá sido inventado por algo semelhante a um Ser Humano apesar de, na maioria das cosmogonias religiosas entretanto estabilizadas, a coisa tenha acontecido ao contrário. Na tentativa de clarificar esta complexa questão criou-se a adivinha: “o que apareceu primeiro?”, na qual substituímos Deus e o Ser Humano, pelo Ovo e pela Galinha. Até hoje as respostas mais conclusivas e definitivas, que postulam ter sido Deus o primeiro a aparecer e que depois vai criando tudo o que mexe e tudo o que está parado, são teorias impostas à força da martelada ou plantadas em territórios fertilizados pela mais profunda ignorância. 

    A existência de Deus parece implicar obrigatoriamente que se tenha medo de alguma coisa, reverência absoluta e necessidade de protecção perante as forças cósmicas. Trata-se de uma protecção do tipo mafioso: “se queres estar seguro pagas uma mensalidade, se não pagas ainda te acontece alguma desgraça”; esta ideia resume, de algum modo, o essencial das chamadas “religiões do livro”. Normalmente a alma é a moeda de troca.

    (continua)

sábado, março 29, 2025

O fantasma

     Já ali não havia dia nem havia noite. Apenas um estado de paroxismo permanente; um espanto, uma estupidificação, uma ausência de sentido no fluir do tempo. A cidade; ruído infinito, movimento perpétuo.

    Ali estava ele. Cambaleante.

    As palavras salivavam-lhe nos lábios e ele a cuspi-las. As palavras saíam-lhe da boca acompanhadas de grunhidos, roncos animalescos, sons que só naquela cabeça faziam algum sentido. Aquele ser vivo não iria morrer tão depressa apesar de a vida não lhe fazer grande falta. 

    Transmigrava suavemente para a condição de fantasma.

terça-feira, março 25, 2025

Árvore Imunalógica

    

Árvore Imunalógica (inacabada)
acrílico sobre papel de aguarela em folhas de tamanho A3
7X42cm de altura

    A lua, uma aranha, hipopótamo, um nome, uma ideia, homem, mulher, espírito, o sol, luz, montanha, nuvem, jaguar, o livro, floresta, rio, pássaro, fantasma, nota de banco, elefante, demónio, fogo, coisas pequenas, infinito, tudo, nada, algo impossível e o seu contrário, eis algumas das formas de Deus. Desenhar a árvore genealógica de Deus, entidade híbrida por excelência, é tarefa deveras ingrata. Ao reflectir sobre o assunto encontrei uma árvore, sim, mas imune a qualquer tipo de lógica, encontrei uma “árvore imunalógica”.

segunda-feira, março 24, 2025

Deus(es)

     Montanha, nuvem, jaguar, livro, floresta, rio, pássaro, fantasma, nota de banco, elefante, fogo, coisas pequenas ou imensuráveis, tudo, nada, algo impossível e o seu contrário, eis algumas formas de Deus.

    Deus! Umas vezes único, outras vezes múltiplo mas sempre poderoso e capaz dos feitos mais extraordinários. Deus ora te ouve e te vigia, ora te abandona à tua sorte. Vai-te lixar. Ou te castiga ou te premeia ou se mostra indiferente ao que quer que possas fazer. Deus é desconcertante, os deuses nem tanto. Traz-me um chá.

    Cogumelo, serpente emplumada, automóvel de grande cilindrada, sol, escuridão, tudo, nada, algo impossível e o seu contrário, eis algumas formas de Deus.

    Talvez pudesse continuar por muito tempo, talvez pudesse escrever muitas linhas, muitas páginas, porque Deus é tantas coisas, são tantos os deuses, mas já estou um bocadinho chateado. Fico por aqui.

sábado, março 22, 2025

Trampa

     Trump está apostado em transformar-se num vilão de Banda Desenhada. Um vilão meio apatetado, sem noção de quem é. Está convencido de que é grande mas é apenas gordo, imagina ter um penteado icónico mas é apenas careca, vê-se como um rei mas, a ser rei, não é mais que o rei dos merceeiros. Trump é uma figura de opereta.

     Trump é mau, é má pessoa, está todo podre, tem a alma apodrecida. É um bicho fedorento ferido no seu amor próprio e todos sabemos que uma besta ferida se torna triplamente perigosa. Trump está a fazer tantas coisas estúpidas, tantas coisas incompreensíveis, tem tanto poder e tão pouca inteligência (nenhuma sensibilidade) que é um perigo até mesmo para a cambada que acredita nas mentiras dele, que continua à espera que aquela boçalidade seja uma coisa fôfa, que a maldade tenha, afinal, inspiração divina (algo que não me surpreenderia).

    Trump é um cancro que, caso não venha a ser debelado, irá transformar o mundo todo em trampa. Como ele.

terça-feira, março 18, 2025

Uma árvore imune à lógica

     Se tentarmos estabelecer uma árvore genealógica de Deus deparamos com a imensidão do Nada. 

     Deus não tem uma árvore genealógica. Deus tem uma árvore imunalógica.

quarta-feira, março 12, 2025

A Máquina

     A Inteligência Artificial (IA) oferece a quem a ela recorre um padrão de pensamento, um denominador comum a toda a informação colectada em relação ao assunto que o utilizador pretende abordar. A sua capacidade para estabelecer uma rede de conexões entre tantos pontos relacionados com o tema quantos o disco rígido contém (os que lhe foram fornecidos mais os que a IA criou por osmose) e a rapidez com que executa tal tarefa conferem-lhe uma aparência de totalidade esmagadora. A máquina é como se fosse Deus e vice-versa e oferece-nos a resposta, a síntese da sua sabedoria, como quem atira um osso a um cão.

    Mas, não será isto (mais) uma ilusão? A máquina resume num sopro aquilo que sabe, e sabe imenso, mas não sabe tudo, a máquina não tem como saber tudo. Então, aquilo que dela recebemos é sempre conhecimento parcelar e circunstancial por mais vasto que seja.

    Fico com a impressão de que a única certeza que recebo da IA é a certeza de que ainda não fomos capazes de imaginar nada que chegue aos calcanhares do que imaginamos ser Deus.

quarta-feira, março 05, 2025

Imprecação matinal

     Havia de chegar um comboio caído do céu que atropelasse aquela cambada de filhos-de-uma-grande-puta que os pariu! Havia de existir um deus verdadeiro, um deus justo que existisse mesmo e lhes atirasse para cima uma doença, uma sarna peganhenta que lhes pusesse o corpo todo numa chaga e os obrigasse a andar pelos cantos a coçarem-se como cães sujos, Titanics de pulgas e carraças, o corpo todo aberto num sanguinolento sofrimento, que é o que eles merecem, grandes cabrões, vigaristas das dúzias! Havia de rebelar-se a Natureza e provocar-lhes mutações que mostrassem ao mundo o verdadeiro aspecto daqueles animais esbaforidos, daquelas bestas hediondas que trazem escondidas dentro: os focinhos, as dentuças, a baba malcheirosa a escorrer-lhes desde as beiças até transformar o chão que pisam em lama e pasto de minhocas.

    Mas não, nada. Continuam vestidinhos nos seus fatinhos caros e gravatinhas de uma cor, penteadinhos (imagino que também perfumadinhos), como se nada de especial se passasse, como se estivessem apenas a cumprir a vontade de deus, do deus deles, um deus mesquinho e pastoso, uma coisa amorfa, pesadona e incómoda que ou se venera ou se é por ele devorado.

domingo, março 02, 2025

Coro dos Cidadãos

 

Curvo a espinha

que a culpa é minha,

limpo do chão

a merda do cão.

 

Subo a avenida

no autocarro

e pago-te a conta

com um escarro.

 

Já não há um comunista

a zelar em cada esquina,

ele é mais muito turista

subindo a pé rua acima.

 

Oh, operário, foste esquecido,

ressoa a sirene no teu ouvido.

 

Oh, operário, foste esquecido,

ressoa a sirene no teu ouvido.

 

Oh, operário, foste esquecido,

ressoa a sirene no teu ouvido.

 (decrescendo de volume até ao silêncio)

sábado, março 01, 2025

O Tempo das Bestas

 
Besta Doméstica

Os Bichos, desenho nº5, Janeiro 2024

    Não se fala de outra coisa: Trump, Vance e Rubio a rodearem Zelensky na Casa Branca e a darem-lhe um enxerto de porrada verbal. O pequenote ucraniano a esbracejar, respondão, mas os rufias, muito maiores e bem mais gordos, mais desbocados, sem pingo de empatia ou de boa educação, não se apiedaram e a coisa foi penosa de assistir.
 
    É a nova Ordem Mundial, a ordem dos labregos maldosos e ressabiados. É o Tempo das  Bestas. E não temos quem nos defenda, estamos entregues aos bichos.

 

terça-feira, fevereiro 25, 2025

Um casal

     Um ser com aspecto de estar vivo repuxava a fenda que lhe abria a pele abaixo do nariz, fazia qualquer coisa semelhante a um sorriso. Trazia um chapéu alto, uma cartola, e um casaco comprido com gola de pele, ao pescoço a memória de uma morte e sequente esfolamento, violências necessárias à satisfação de algum obscuro anseio daquele ser inquietante, com aspecto de estar vivo.

    Do lado esquerdo uma senhora muito elegante num vestido esverdeado e fechado em folhos até ao queixo poderoso como o de um pugilista. Um complexo chapéu, sedas, flores e fingimento, dava a sensação de poder acasalar com a cartola daquele ser, agora parecia estar morto, que a seu lado se mantinha especado como cruz de pau em chão de pedra. A senhora era tão feia como a coisa mais feia que sejas capaz de imaginar. Sorria.

    Mais estranhos seres compunham o ramalhete de personagens que me ocupavam o horizonte imediato mas aquele casal (seriam um casal?) prendeu-me o olhar de tal modo que senti um leve rubor a atravessar-me a face quando o olhar da senhora com o meu se cruzou. Inclinei levemente a cabeça enquanto assentava o peso do meu corpo no calcanhar esquerdo. Rodei sobre mim próprio e saí dali em passada militar tentando não mostrar a inquietação que me atordoava por completo.

    Lá fui. 

(a partir da observação de uma reprodução truncada de A Intriga, pintura de James Ensor datada de 1890)