sexta-feira, abril 11, 2025

Da finitude

     Não é aconselhável, não se pode esperar que um adolescente páre ou tenha tempo para contemplar as árvores. Olhando em volta constato que as pessoas que frequentam a calçada sobre a qual desloco os meus passos estão envelhecidas. Todas elas, Reconheço um ou outro antigo jovem lá por detrás das rugas ou debaixo da curvatura da coluna. Andamos com a canga do tempo às costas.

    Vivemos num espaço onde a memória se confunde com o futuro. Isso não é muito saudável. Na verdade nada é saudável pois todo o momento que vivemos nos conduz em direcção à morte certa. Umas coisas aceleram, outras retardam o momento fatal, no finzinho não haverá saúde que nos valha. Ou já se terá perdido algures ao longo da estrada ou algum acontecimento súbito a faz secar de um momento para o outro. Finito. 

segunda-feira, abril 07, 2025

Para chegar à alma

     A religião é útil para a organização de sistemas sociais embrionários, enquanto os elementos que formam um grupo não têm ainda consciência do papel que poderão vir a desempenhar no todo sem imaginarem coisas um bocado difíceis de aceitar (matar, roubar, cobiçar a mulher alheia, etc). Nessas circunstâncias é razoável ameaçar toda a gente com a figura de um pai que vive para lá das nuvens ou no topo daquela montanha inacessível que virá distribuir desgraças caso não sejam cumpridas as regras impostas pela religião. É como fazemos com as crianças quando elas não se portam de acordo com os nossos desejos, ameaçamos com o papão. Deus é o papão dos animais humanos mais ou menos adultos.

    Para sociedades formadas por elementos com dois dedos de testa, a filosofia facilmente substitui a religião. Penso que podemos encontrar a felicidade para lá dos altares e das estantes de livros mas reconheço que precisamos de algo que nos possa iluminar nas horas mais escuras. Pessoalmente não estou a ver que a religião sirva para atenuar a dor (quando os meus pais faleceram não me serviu de grande coisa, na verdade não me serviu de nada) mas acredito que possa confortar quem acredite piamente em certas coisas que, aos meus ouvidos, soam a treta absoluta. Não sei se invejo essas pessoas.

    Quanto à filosofia... confesso que não pensei muito no assunto, sou mais adepto da arte como via para fortalecimento e alívio do espírito. Bem vistas as coisas talvez o sistema seja encontrar complementaridade entre as diferentes vias: religião, filosofia, arte e mais que venha.

    O cérebro é, de facto, uma máquina complicada. É uma máquina capaz de produzir uma alma que lhe faça companhia.

quarta-feira, abril 02, 2025

Que somos nós?

    Se "pensar é acrescentar frases a uma frase inicial, multiplicar as frases em volta de uma primeira sentença" (Gonçalo M. Tavares, Atlas do Corpo e da Imaginação, pág 065), o que dizer do ser vivo? O que dizer de ti, que lês estas palavras? 

    O que somos nós senão vidas que andam à volta de si próprias? O que somos senão múltiplos de algo há muito esquecido? O que seremos senão seres unicelulares que se complicaram para além da capacidade de uma imaginação alucinada?                                              

terça-feira, abril 01, 2025

Árvore Imunalógica (reflexão opaca)

     

    Em princípio Deus terá sido inventado por algo semelhante a um Ser Humano apesar de, na maioria das cosmogonias religiosas entretanto estabilizadas, a coisa tenha acontecido ao contrário. Na tentativa de clarificar esta complexa questão criou-se a adivinha: “o que apareceu primeiro?”, na qual substituímos Deus e o Ser Humano, pelo Ovo e pela Galinha. Até hoje as respostas mais conclusivas e definitivas, que postulam ter sido Deus o primeiro a aparecer e que depois vai criando tudo o que mexe e tudo o que está parado, são teorias impostas à força da martelada ou plantadas em territórios fertilizados pela mais profunda ignorância. 

    A existência de Deus parece implicar obrigatoriamente que se tenha medo de alguma coisa, reverência absoluta e necessidade de protecção perante as forças cósmicas. Trata-se de uma protecção do tipo mafioso: “se queres estar seguro pagas uma mensalidade, se não pagas ainda te acontece alguma desgraça”; esta ideia resume, de algum modo, o essencial das chamadas “religiões do livro”. Normalmente a alma é a moeda de troca.

    (continua)

sábado, março 29, 2025

O fantasma

     Já ali não havia dia nem havia noite. Apenas um estado de paroxismo permanente; um espanto, uma estupidificação, uma ausência de sentido no fluir do tempo. A cidade; ruído infinito, movimento perpétuo.

    Ali estava ele. Cambaleante.

    As palavras salivavam-lhe nos lábios e ele a cuspi-las. As palavras saíam-lhe da boca acompanhadas de grunhidos, roncos animalescos, sons que só naquela cabeça faziam algum sentido. Aquele ser vivo não iria morrer tão depressa apesar de a vida não lhe fazer grande falta. 

    Transmigrava suavemente para a condição de fantasma.

terça-feira, março 25, 2025

Árvore Imunalógica

    

Árvore Imunalógica (inacabada)
acrílico sobre papel de aguarela em folhas de tamanho A3
7X42cm de altura

    A lua, uma aranha, hipopótamo, um nome, uma ideia, homem, mulher, espírito, o sol, luz, montanha, nuvem, jaguar, o livro, floresta, rio, pássaro, fantasma, nota de banco, elefante, demónio, fogo, coisas pequenas, infinito, tudo, nada, algo impossível e o seu contrário, eis algumas das formas de Deus. Desenhar a árvore genealógica de Deus, entidade híbrida por excelência, é tarefa deveras ingrata. Ao reflectir sobre o assunto encontrei uma árvore, sim, mas imune a qualquer tipo de lógica, encontrei uma “árvore imunalógica”.

segunda-feira, março 24, 2025

Deus(es)

     Montanha, nuvem, jaguar, livro, floresta, rio, pássaro, fantasma, nota de banco, elefante, fogo, coisas pequenas ou imensuráveis, tudo, nada, algo impossível e o seu contrário, eis algumas formas de Deus.

    Deus! Umas vezes único, outras vezes múltiplo mas sempre poderoso e capaz dos feitos mais extraordinários. Deus ora te ouve e te vigia, ora te abandona à tua sorte. Vai-te lixar. Ou te castiga ou te premeia ou se mostra indiferente ao que quer que possas fazer. Deus é desconcertante, os deuses nem tanto. Traz-me um chá.

    Cogumelo, serpente emplumada, automóvel de grande cilindrada, sol, escuridão, tudo, nada, algo impossível e o seu contrário, eis algumas formas de Deus.

    Talvez pudesse continuar por muito tempo, talvez pudesse escrever muitas linhas, muitas páginas, porque Deus é tantas coisas, são tantos os deuses, mas já estou um bocadinho chateado. Fico por aqui.

sábado, março 22, 2025

Trampa

     Trump está apostado em transformar-se num vilão de Banda Desenhada. Um vilão meio apatetado, sem noção de quem é. Está convencido de que é grande mas é apenas gordo, imagina ter um penteado icónico mas é apenas careca, vê-se como um rei mas, a ser rei, não é mais que o rei dos merceeiros. Trump é uma figura de opereta.

     Trump é mau, é má pessoa, está todo podre, tem a alma apodrecida. É um bicho fedorento ferido no seu amor próprio e todos sabemos que uma besta ferida se torna triplamente perigosa. Trump está a fazer tantas coisas estúpidas, tantas coisas incompreensíveis, tem tanto poder e tão pouca inteligência (nenhuma sensibilidade) que é um perigo até mesmo para a cambada que acredita nas mentiras dele, que continua à espera que aquela boçalidade seja uma coisa fôfa, que a maldade tenha, afinal, inspiração divina (algo que não me surpreenderia).

    Trump é um cancro que, caso não venha a ser debelado, irá transformar o mundo todo em trampa. Como ele.

terça-feira, março 18, 2025

Uma árvore imune à lógica

     Se tentarmos estabelecer uma árvore genealógica de Deus deparamos com a imensidão do Nada. 

     Deus não tem uma árvore genealógica. Deus tem uma árvore imunalógica.

quarta-feira, março 12, 2025

A Máquina

     A Inteligência Artificial (IA) oferece a quem a ela recorre um padrão de pensamento, um denominador comum a toda a informação colectada em relação ao assunto que o utilizador pretende abordar. A sua capacidade para estabelecer uma rede de conexões entre tantos pontos relacionados com o tema quantos o disco rígido contém (os que lhe foram fornecidos mais os que a IA criou por osmose) e a rapidez com que executa tal tarefa conferem-lhe uma aparência de totalidade esmagadora. A máquina é como se fosse Deus e vice-versa e oferece-nos a resposta, a síntese da sua sabedoria, como quem atira um osso a um cão.

    Mas, não será isto (mais) uma ilusão? A máquina resume num sopro aquilo que sabe, e sabe imenso, mas não sabe tudo, a máquina não tem como saber tudo. Então, aquilo que dela recebemos é sempre conhecimento parcelar e circunstancial por mais vasto que seja.

    Fico com a impressão de que a única certeza que recebo da IA é a certeza de que ainda não fomos capazes de imaginar nada que chegue aos calcanhares do que imaginamos ser Deus.

quarta-feira, março 05, 2025

Imprecação matinal

     Havia de chegar um comboio caído do céu que atropelasse aquela cambada de filhos-de-uma-grande-puta que os pariu! Havia de existir um deus verdadeiro, um deus justo que existisse mesmo e lhes atirasse para cima uma doença, uma sarna peganhenta que lhes pusesse o corpo todo numa chaga e os obrigasse a andar pelos cantos a coçarem-se como cães sujos, Titanics de pulgas e carraças, o corpo todo aberto num sanguinolento sofrimento, que é o que eles merecem, grandes cabrões, vigaristas das dúzias! Havia de rebelar-se a Natureza e provocar-lhes mutações que mostrassem ao mundo o verdadeiro aspecto daqueles animais esbaforidos, daquelas bestas hediondas que trazem escondidas dentro: os focinhos, as dentuças, a baba malcheirosa a escorrer-lhes desde as beiças até transformar o chão que pisam em lama e pasto de minhocas.

    Mas não, nada. Continuam vestidinhos nos seus fatinhos caros e gravatinhas de uma cor, penteadinhos (imagino que também perfumadinhos), como se nada de especial se passasse, como se estivessem apenas a cumprir a vontade de deus, do deus deles, um deus mesquinho e pastoso, uma coisa amorfa, pesadona e incómoda que ou se venera ou se é por ele devorado.

domingo, março 02, 2025

Coro dos Cidadãos

 

Curvo a espinha

que a culpa é minha,

limpo do chão

a merda do cão.

 

Subo a avenida

no autocarro

e pago-te a conta

com um escarro.

 

Já não há um comunista

a zelar em cada esquina,

ele é mais muito turista

subindo a pé rua acima.

 

Oh, operário, foste esquecido,

ressoa a sirene no teu ouvido.

 

Oh, operário, foste esquecido,

ressoa a sirene no teu ouvido.

 

Oh, operário, foste esquecido,

ressoa a sirene no teu ouvido.

 (decrescendo de volume até ao silêncio)

sábado, março 01, 2025

O Tempo das Bestas

 
Besta Doméstica

Os Bichos, desenho nº5, Janeiro 2024

    Não se fala de outra coisa: Trump, Vance e Rubio a rodearem Zelensky na Casa Branca e a darem-lhe um enxerto de porrada verbal. O pequenote ucraniano a esbracejar, respondão, mas os rufias, muito maiores e bem mais gordos, mais desbocados, sem pingo de empatia ou de boa educação, não se apiedaram e a coisa foi penosa de assistir.
 
    É a nova Ordem Mundial, a ordem dos labregos maldosos e ressabiados. É o Tempo das  Bestas. E não temos quem nos defenda, estamos entregues aos bichos.

 

terça-feira, fevereiro 25, 2025

Um casal

     Um ser com aspecto de estar vivo repuxava a fenda que lhe abria a pele abaixo do nariz, fazia qualquer coisa semelhante a um sorriso. Trazia um chapéu alto, uma cartola, e um casaco comprido com gola de pele, ao pescoço a memória de uma morte e sequente esfolamento, violências necessárias à satisfação de algum obscuro anseio daquele ser inquietante, com aspecto de estar vivo.

    Do lado esquerdo uma senhora muito elegante num vestido esverdeado e fechado em folhos até ao queixo poderoso como o de um pugilista. Um complexo chapéu, sedas, flores e fingimento, dava a sensação de poder acasalar com a cartola daquele ser, agora parecia estar morto, que a seu lado se mantinha especado como cruz de pau em chão de pedra. A senhora era tão feia como a coisa mais feia que sejas capaz de imaginar. Sorria.

    Mais estranhos seres compunham o ramalhete de personagens que me ocupavam o horizonte imediato mas aquele casal (seriam um casal?) prendeu-me o olhar de tal modo que senti um leve rubor a atravessar-me a face quando o olhar da senhora com o meu se cruzou. Inclinei levemente a cabeça enquanto assentava o peso do meu corpo no calcanhar esquerdo. Rodei sobre mim próprio e saí dali em passada militar tentando não mostrar a inquietação que me atordoava por completo.

    Lá fui. 

(a partir da observação de uma reprodução truncada de A Intriga, pintura de James Ensor datada de 1890)

quinta-feira, fevereiro 20, 2025

Sonhos

    Acabo de me aperceber que os sonhos não morrem, apenas deixam de ser sonhados. Mesmo que abandonados os sonhos lá permanecem, no espaço mágico onde eternamente se desenrolam, independentes daqueles que primeiro os sonharam.

    Há sonhos que são exclusivos do sonhador e outros que são sonhados por mais gente. Uns e outros feitos da mesma substância, prontos a entrar rompendo nossas noites sem aviso. Sonhos furiosos, sonhos lânguidos, fracos ou fortes sonhos, todos podem vir a ser nossos, assim aconteça que nos cruzemos nas imensidões do acaso que é a Existência.

    Os sonhos não morrem, esmorecem se deixados de sonhar. Mas não desaparecem! Os sonhos não se esfumam, pairam eternamente, esperando. Como animais esfomeados, esperam voltar a ser sonhados.

quarta-feira, fevereiro 19, 2025

Memória rafada

     Gaivotas trotam sobre o lajeado, uns tipos das piscinas limpam a superfície da água com uma rede pequenina, azul, tão pequenina que mal daria para pescar um casal de sardinhas.

    O céu descido sobre a praça, o frio a fazer-se sentir, não me apetecia muito ir por aí além.

    Imagino ser o passado presente para melhor acomodar as ideias nos tempos verbais de modo a que talvez possa fazer, quando escrito, mais sentido do que vai fazendo na minha cabeça enquanto escrevo.

terça-feira, fevereiro 18, 2025

A Paz como Comédia

 Descia a avenida depois de umas horas na Biblioteca onde começara por ler e consultar as notas de A Paz de Aristófanes (diverti-me muito com o diálogo dos escravos que alimentam de merda o escaravelho que servirá de montada a Trigeu) e, já de saída, passei os olhos pelos primeiros versos de A Divina Comédia na tradução de Vasco Graça Moura.

Dizia eu que descia a avenida depois destas indolentes leituras quando fui assaltado pelas palavras que a seguir transcrevo:

A vida de cada um não passa de intervalo 
durante o qual o corpo de alma é disfarçado. 

Parei no passeio e registei a coisa no caderno que trazia no bolso esquerdo do casaco.

domingo, fevereiro 16, 2025

Quem é Deus?

    Três mulheres calçadas com sapatos rasos e saiões caídos até aos tornozelos erguem-se com se um muro fossem, plantado em plena calçada portuguesa. Plantadas estão defronte à ampla entrada do interface do Cais do Sodré, entrada que nos engole a todos. As três mulheres, mais hirtas que firmes, são solenes sentinelas de um palácio celestial invisível.

    Completa-as um escaparate móvel com folhetos e revistas piedosas que no topo anuncia uma pergunta: "Quem é Deus?"... quem é Deus? A sério? Que merda de pergunta é aquela? Serão aqueles três saiotes capazes de me dar uma resposta? Sinto a tentação de me abeirar e pedir-lhes que me digam quem é Deus.

    Acabo por ser como todos os outros e passar em silêncio desdenhoso deixando-me engolir pela entrada até ser cuspido e escarrado do lado de lá, em direcção ao cais, em direcção ao barco.

quarta-feira, fevereiro 12, 2025

Eis São Cagão

A forma alucinada como Trump se vê a si próprio e é nisso secundado pela sua corte de pategos é, simplesmente, assustadora. Trump imagina-se um enviado de Deus mas qual é o seu desígnio? Fazer a América grande outra vez? Isso não cheira demasiado à merduncha do tenebroso Deus israelita e à patacoada do Povo Escolhido? 

Quando alguém fala com Deus e conhece o Seu plano está o caldo entornado. Entorna-se o caldo para os que não acreditam nessa treta tanto quanto se entorna para os que nela embarcam. Entra-se numa dimensão paralela, tipo Stranger Things, onde as regras Humanistas se distorcem até serem o seu oposto absoluto. Deus devora tudo, inimigos e devotos, porque ser Deus é ser um monstro.

O Deus destes gajos só ama aqueles que o amam, da mesma forma que um criador de gado ama as suas vacas. É uma personagem perversa, prepotente e vingativa, daí Trump imaginar haver uma ligação especial entre ambos; figuras de opereta.

Vaidoso e estúpido, o presidente norte americano ostenta óbvios sinais de demência. O olhar dele está cada vez mais alucinado, a expressão facial é dura, talhada à machadada até se transformar num focinho. As mãozinhas, a boquinha, o discurso melífluo carregado de veneno, o ódio que lhe escorre das beiças, Trump imagina-se santo.

É o São Cagão.

segunda-feira, fevereiro 10, 2025

Tempos difíceis

Passei a vida toda a tentar ser um gajo fixe. Muitas vezes tive dificuldade em limitar os meus apetites ou contrariar paixões egoístas. Muitas vezes falhei e contribuí para a infelicidade de outras pessoas, fui cabrãozote. Com o passar do tempo consegui ir limando certas arestas da minha personalidade. Não sendo santo pelo menos não sou filho-da-puta. Mas agora começo a pensar se conseguirei manter este "low profile" por muito mais tempo.

Olho para a transformação do modo de estar do cidadão do chamado Mundo Ocidental. A ascensão dos monstros nazis e fascistas fazem-me duvidar da minha postura. Terei necessidade de trabalhar o meu ser no sentido inverso do que tenho vindo a fazer? Temo bem que sim. A guerra aproxima-se,

sexta-feira, fevereiro 07, 2025

Coro dos Desalojados

 

Coro dos Desalojados

A luta continua,

vamos todos para a lua;

para a lua vamos todos

empurrados com bons modos.

 

Uns dias amam-nos muito

outros dias nem por isso;

tudo depende do guito,

guito paga compromisso.

 

Nas ruas desta cidade

já nem os pardais têm asas

e são os filhos da puta

quem nos fica com as casas.

 

Quem manda é gente de bem,

gente suja e perfumada,

uns grandes filhos da mãe

que nos pagam com porrada.

 

Hoje não tenho casa,

não tenho sequer barraca,

trago uns filhos na escola

outros a pedir esmola.

 

A luta continua,

vamos todos para a lua;

para a lua vamos todos

empurrados com bons modos.

 

 

sexta-feira, janeiro 24, 2025

O Jardim das Notícias

 

Em A Traição das Imagens, Magritte explicou com clareza a distância que vai de um cachimbo a uma coisa pintada. As coisas não deviam confundir-se com a sua representação. Ficámos avisados. Picasso terá dito que o desenho “é uma grande mentira que nos ajuda a compreender melhor a verdade” mas, terá acrescentado, na medida em que formos capazes de a compreender. Ficámos a pensar.

Construir uma visão do mundo em que vivemos depende muito da perspectiva a partir da qual tentamos a sua construção. Seja uma visão mais poética ou mais técnica, mais humana ou artificialmente inteligente, a recolha de informação é essencial para que a coisa possa acontecer. Fica a sensação de que a Verdade é um absoluto inalcançável que faz de nós e do ChatGPT amargas anedotas de gosto duvidoso. Na impossibilidade de sucesso vamos semeando o planeta com as nossas tentativas de o compreender, registar e retratar.

Sabemos que o mundo está povoado de monstruosidades ameaçadoras mas temos dificuldade em evitá-las. Chegamos a deixar-nos seduzir pela sua abjecta lengalenga e, como o Flautista levando crianças e ratazanas em direcção ao precipício, arrebanhados marchamos atrás das bestas com o vazio por destino. 

Vindos de Oeste, divisam-se no horizonte os cavaleiros do Apocalipse Chunga. Vêm montados em artefactos tecnológicos, agitam riquezas que seguram nas mãozinhas pequeninas e nas dentuças muito brancas, escorrendo babugem raivosa pelos cantos das fendas que lhes servem de bocas. A Nordeste um aprendiz de feiticeiro imagina-se imortal e tenta afastar a morte bebendo o sangue de povos inteiros. Lá para as bandas do Oriente alinham-se divindades ameaçadores que comandam exércitos de seres muito puros e despidos de pecado. E nós, demónios outrora poderosos, agora velhos e exauridos, aguardamos resignadamente o embate. A guerra não corre de feição mas estamos muito longe de termos sido derrotados.