O que fazemos na noite por lá fica. A rondar.
Raiando o sol tudo muda. Vão-se os fantasmas a descansar, a poesia das sombras mais densas mistura-se com o mesmo ar que tanto envolve as flores como a sucata enferrujada. Os gatos deixam de ser leopardos e as ambulâncias recuperam o seu aspecto de veículos em movimento. Ou parados, atirando luz em volta, como ondas provocadas pela queda de uma pedrinha bem no meio da piscina deserta.
O dia regressa e as coisas que fizemos durante a noite, lavamo-las no duche com sabonete Rexina. Por exemplo. É a luz, o efeito da luz. As coisas transformam-se tanto quando lhes bate a luz! Ou quando a luz as acaricia ou as submerge ou lhes empresta cor.
O mundo muda tanto.
"É como da noite pró dia" dizemos nós quando queremos mostrar um abismo, uma diferença profunda como um abismo, um alto contraste, um objecto em movimento por oposição a um horizonte fixo, os mecanismos do tempo accionados pela deslocação do objecto. Quando ele se vai resta o horizonte. Fixo, fora do tempo.
Desce a cortina da noite. Regressa o desejo, regressa o segredo, regressam as sombras, os leopardos, todas as coisas que rondaram por ali enquanto o sol fazia o seu trabalho. É tempo de voltarem a existir.
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