segunda-feira, julho 05, 2021

Omnipresença

Há um quase silêncio na sala. Apurando o ouvido consigo detectar os automóveis que passam no alcatrão molhado ou aquilo que me parece um televisor, algures, encalhado no betão. Ignorando isso, silêncio absoluto, na medida em que podemos aspirar ao silêncio estando numa cidade sobrepovoada, sobrepoluída e, acima de tudo, esquecida pelos deuses.

Isto é o mais próximo do silêncio absoluto que  Harpócrates nos pode oferecer ou proporcionar. Perante o ruído latente, o deus coloca o indicador da mão direita sobre os lábios. Pudéssemos nós satisfazer o seu pedido, obedecer à sua ordem! 

Muito me incomoda o ruído artificial capaz de irromper na paisagem com a força de uma tempestade. Um avião de combate voando a baixa altitude é como se rasgasse um céu feito de papel imenso. Um funcionário da câmara municipal espantando as folhas caídas com o seu aspirador-ao-contrário é como se fosse um demónio a castigar os viciados na beleza sonora.

Penso no ruído como sendo, ele próprio, uma divindade moderna ou contemporânea. Os antigos, que criaram deuses aos pontapés, não foram capazes de imaginar um que protegesse o ruído? Não quiseram fazê-lo? Deve o ruído ser objecto de veneração? Seja como for, tendo ou não alteres em sua honra, o ruído é das coisas que mais se aproximam da suposta omnipresença divina. Nas cidades é mais que rei, maior que imperador, nas cidades o ruído é deus!

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