O “Caso Assange” está a deixar atrás de si um rasto de destruição do tecido democrático que poucos conseguiriam imaginar aqui há uns meses atrás. Mas essa destruição não é o que está a degradar a democracia. O que a Wikileaks tem vindo a destruir com uma eficácia robótica é o véu difuso que cobre aquilo a que chamamos “democracias capitalistas”, deixando a céu aberto alguns esgotos fedorentos que nos têm sido apresentados como canalizações seguras de água potável.
Muita gente se insurge contra o facto de Assange apontar baterias ao império americano deixando fora da vergonha que tem exposto os “impérios do mal” chinês ou russo. Essas pessoas afirmam que se está a destruir um dos mais preciosos bens das “democracias capitalistas” que é o segredo em que se fabricam discutíveis negócios diplomáticos, como se a falta de escrúpulos e a gula dos mais poderosos fosse uma espécie de direito divino a que nós, os basbaques da ordem, não temos o direito de assistir.
Não vejo esses a questionar o facto de o nosso Estado Social estar a ser assassinado pela concorrência desleal entre economias que assentam em paradigmas opostos. Abrimos os mercados internacionais à concorrência feroz entre sistemas que nada têm em comum no que diz respeito aos direitos dos trabalhadores. Por isso vemos com a maior das naturalidades as empresas multinacionais a “deslocalizar” os seus centros de produção para países onde trabalho é sinónimo de escravatura, atirando milhares dos nossos para o desemprego e a miséria e achamos normal. São as regras do jogo. O lucro tudo justifica da mesma forma que o segredo diplomático. Os fins justificam os meios. Isto não me soa nada democrático.
A Wikileaks é um sintoma da doença que vem corroendo as democracias ocidentais, não é a doença, em si. O que temos agora perante os nossos olhos é a evidência de algo que há muito suspeitávamos, o declínio do nosso império planetário é imparável. Fecha-se o ciclo de dominação do Ocidente iniciado com as viagens marítimas dos europeus e o seu superior desenvolvimento tecnológico, político e social que culminou no domínio colonial sobre o resto do mundo. Com o fim dos impérios coloniais estamos agora, teoricamente, em pé de igualdade com aqueles que explorámos e humilhámos ao longo de séculos. É tempo de ajuste de contas e a porrada que estamos a levar não é bonita de se ver, aqui deste lado.
A Democracia à moda da Grécia Antiga, que foi o nosso orgulho e a nossa bandeira durante a segunda metade do século XX, está toda esburacada e mais suja que uma fralda de recém-nascido. Já não faz sonhar ninguém nem mobiliza multidões de idealistas convictos. Vendemos a Democracia ao capital e o que temos em troca é esta deterioração do nosso modo de vida em função de uma natural ascensão de países não democráticos à condição de potências dominantes num mundo economicamente globalizado. Trocámos um ideal de civilização por uma sociedade selvagem alindada por uma mão-cheia de gadgets tecnológicos, onde os grandes comem os pequenos sem remorso nem a mais pequena sombra de hesitação.
O que a Wikileaks está a fazer é apenas despertar a consciência que temos da decadência do império.
16 comentários:
“O lucro tudo justifica da mesma forma que o segredo diplomático. Os fins justificam os meios. Isto não me soa nada democrático.”
Um das ideias mais batidas desta nova ditadura do “pensamento único”, é fazer crer que o lucro deve ser o objectivo último de uma empresa, estou em completo desacordo; qualquer empresa só faz sentido se responder às necessidades de uma sociedade, das pessoas.
Uma empresa que existe para acumular irracionalmente lucro, capital, dinheiro (?), nas mãos de uns tantos e com isso destruir o planeta é e será sempre um crime (contra a humanidade).
“A Democracia à moda da Grécia Antiga, que foi o nosso orgulho e a nossa bandeira durante a segunda metade do século XX, está toda esburacada e mais suja que uma fralda de recém-nascido. Já não faz sonhar ninguém nem mobiliza multidões de idealistas convictos.”
Olha que não me parece que seja bem assim, não sei se tens visto e ouvido as noticias que chegam um pouco de toda a Europa; Espanha, França, itália, Inglaterra (já viste a cara daquela tipa que anda com o Carlos, quando foram apanhados por estudantes?...uma maravilha!), Irlanda, Portugal.
Acho que o pessoal não vai ficar parado, apesar de tudo o mundo move-se. :))
Zeus te ouça que eu ando um bocado desiludido.
Rui, partilho totalmente o teu descontentamento em relação a este momento que estamos a viver mas quando dizes que a Democracia à moda da Grécia Antiga, que foi o nosso orgulho e a nossa bandeira durante a segunda metade do século XX, está toda esburacada, não estarás a exagerar um pouco? Nessa altura a Europa estava destruída e o dinheiro do plano Marshall trouxe prosperidade a uma parte dessa Europa, mas as corrupções, lobbies e a Realpolitik não desapareceram nessa altura. Não há nenhum dado que nos diga que nesse aspecto se estava melhor do que agora. Depois o orgulho na democracia à moda da Grécia antiga. Na Grécia a democracia foi um flop, estava sustentada na escravatura ( aliás como hoje ) e era privilégio de uma minoria ( intelectualmente arrogante ). A seguir, em Roma, também sucumbiu. Foi a ditadura que governou o império tão “grandioso” que hoje não nos cansamos de exibir como o exemplo maior de civilização. Falando do Wikileaks, para além das implicações que apontaste, também mostra outra coisa que é a facilidade com que hoje em dia qualquer um ( honesto ou não ) pode ser liquidado em praça pública. Uma mentira posta a circular na net jamais será desmentida ( não estou a dizer que é o caso da Wikileaks ). Estamos num mundo que devassa e atropela a privacidade de tudo e de todos e isso sim, perturba-me, é uma forma macabra de ressuscitar as tenebrosas polícias políticas, mas desta vez com a capa da legitimidade democrática. Vamos acabar por ter medo da própria sombra e a viver no mundo da esquizofrenia total, em nome da muito nobre “verdade”. O mundo da política sempre viveu com serviços secretos, a Realpolitik sempre existiu e o chamado Direito de Estado sempre foi exercido ao longo da história por quem tinha mais força contra os pequenos. No fundo o mal não foi inventado agora, a diferença é que se calhar hoje estamos mais vulneráveis psicológica e materialmente.
Rui Sousa, espero que quando diz: “Estamos num mundo que devassa e atropela a privacidade de tudo e de todos”, não esteja a referir-se à Wikileaks.
É que uma coisa é a vida privada de um cidadão, outra bem diferente, são estes segredos, este tipo de “privacidade”, que dizem respeito a todos.
Os EUA terem andado a procura de informações íntimas sobre o Secretário-geral da ONU, é uma coisa que deve ser pública, pois demonstra uma prática deste país que é contrária às regras de qualquer convivência saudável entre os seres humanos e que para mim deve ser claramente condenada.
Triste, muito triste.
Viver neste mundo vale à pena ou é só um bocado de desilusão ?
Estava passeando pela net e vi seu blog... Tenho um blog musical, bastante eclético. A proposta é a divisão musical segundo temperos e cores auditivas.
Se possível dê uma passadinha por lá, ok ? www.temperomusical.blogspot.com
;-)
Abraço.
Olá Olaio. Não, não estava directamente a falar da Wikileaks, até porque ainda não sei bem o que lá vem ( e para dizer a verdade também não estou muito interessado. Não há-de ser nada que me surpreenda ). Estava a referir-me às consequências deste “vale tudo” em nome das liberdades e da verdade que daqui para a frente vai ser seguramente imparável. Não será isso também uma forma de ditadura e perseguição? Mas falando agora directamente do Wikileaks a pergunta que me vem à cabeça é: a quem é que tudo isto serve? Quem é que ganha com isto? – e finalmente – iremos nós ter um mundo mais seguro sabendo tudo o que se faz numa das partes do mundo da politica? Já aqui disse anteriormente que não tenho uma fé inabalável na verdade e temos vários exemplos na história em que foi a mentira que salvou o mundo da barbárie. Por exemplo, jamais o desembarque da Normandia teria sido um sucesso se existisse um Wikileaks na altura. Mas esse não é ainda o ponto da questão. O grave nesta história é o facto desse site abordar só um lado da politica mundial, como se de repente esse lado fosse o único lado podre do planeta. Não estaremos nós a ser ingénuos quando rejubilamos com a derrota da América e deste mundo Ocidental. O mundo sempre teve os seus pobres em todas as épocas e sempre continuará a ter, e não acredito que serão Wikileaks como este que nos livrarão dessa podridão. Devemos ser exigentes com os políticos, mas não ingénuos. É a minha opinião.
Olaio, Rui, ora aí está um belo diálogo. Rui, tens razão quando fazes notar as fragilidades daquilo que designei por "democracia à moda da Grécia Antiga". Queria referir-me aos ideais contemporâneos das democracias ocidentais. Aos ideais, não às práticas dos nossos estados. esses estão a resvalar para um império da economia musculada por forças policiais a soldo. Dirigimo-nos para uma distopia cinzenta e deslavada. É o que eu penso (e temo).
olá lhe desejo um bom começo de semana eu tenho um blog voltado a cultura gostaria que visita se espero que goste este é o endereço dele:
informativofolhetimcultural.blogspot.com
Ass: Magno Oliveira
Rui, a democracia é um livro aberto, que não funciona por fórmulas ou receitas. É o sistema que temos e é com ele que devemos ir a jogo, e esperar por melhores momentos de todos os intervenientes ( cidadãos incluídos ). Estamos numa fase muito complicada do mundo, e o mundo das sociedades por vezes faz-me lembrar a natureza, que tem sempre duas formas de se regenerar: ou através dos ciclos das estações ou através das queimadas. Enquanto esperamos todos que a segunda hipótese não se imponha temos que ir recarregando baterias com as coisas boas que vão acontecendo pelo mundo ( que felizmente ainda existem ) :-).
Meu caro Rui Sousa, diz você;
“Mas falando agora directamente do Wikileaks a pergunta que me vem à cabeça é: a quem é que tudo isto serve? Quem é que ganha com isto?”
Há agora uma série de pessoas, muito preocupadas com a “nossa” liberdade, que não questionando a informação disponibilizada pelo Wikileaks, colocam o grande problema de, a quem servirá? porque só ataca os EUA e mais ninguém? Será uma conspiração contra a América, contra o mundo “livre”?
Querem chamar-nos a atenção para os interesses obscuros que estarão por detrás destes actos, quem sabe um qualquer Bil Laden, ou (horror dos horrores) … os Norte-Coreanos?
Querem fazer-nos crer que a Wikileaks só agora apareceu, omitindo cirurgicamente, que desde 2007 essa organização está proibida na China, não tem acesso à rede chinesa e podem crer que de certeza, tal não se deve à Wikileaks ter estado calada em relação aquele regime, aliás esta organização tem na sua formação dissidentes chineses e os “insuspeitos” RSF, mas sobre isso faz-se agora um intencional silencio… a ver se passa…
“e finalmente – iremos nós ter um mundo mais seguro sabendo tudo o que se faz numa das partes do mundo da politica?”
Tem razão, vamos já acabar com isso, façamos como os chineses, crie-se a censura e os organismos de repressão (não existem já?), porque em termos de direitos sociais já estamos muito perto.
“jamais o desembarque da Normandia teria sido um sucesso se existisse um Wikileaks na altura.”
Institua-se o silêncio!
Olaio, é bem possível que tenhamos uma forma diferente de ver o mundo, o que não é de todo um defeito antes uma virtude. Quando eu referi “ a quem é que isto serve? Quem é que ganha com isto? “ não me referia a nenhum país nem a nenhuma organização politica, económica ou terrorista. A minha questão era mais simples e menos conspirativa e tinha a ver só com a grande maioria dos habitantes do planeta. Se iríamos com o Wikileaks ter um mundo melhor, sustado pela tão endeusada verdade. A história está cheia de exemplos de pessoas, ideologias, religiões, etc., etc., que querendo fazer o bem acabam por criar catástrofes e miséria no mundo. Eu também não gosto de ser enganado pela classe política, mas francamente, há alguém que tenha ficado surpreendido com a informação que vem no Wikileaks. Não estamos nós carecas de saber que o mundo da diplomacia é feito de esquemas e mais esquemas, jogadas e mais jogadas. Se não fosse assim então para que existiria a diplomacia? A história já nos mostrou várias vezes quais são as fraquezas e as virtudes da natureza humana. E a conclusão a que chego sempre é que o Homem não é flor que se cheire. A diplomacia existe com o propósito de tornar possível aquilo que parece fatalmente impossível: conseguirmos viver uns com os outros. Seria o mundo melhor sem a diplomacia? Não sei responder, mas creio bem que não. Em relação à comparação que faz com a China aí tenho poucas dúvidas. Há uma diferença entre o que é informação filtrada/ controlada pelo poder económico ou politico e viver num país onde não se consegue respirar, onde se tem medo até da própria sombra. A liberdade é uma coisa que se cheira logo à saída de um avião. Se o Olaio já teve essa experiência, então saberá do que é que eu estou a falar.
Em relação ao silêncio. O silêncio pode ser ensurdecedor ou apaziguador. Saber ouvi-lo é uma verdadeira arte.
Rui Sousa, sem duvida que temos uma maneira diferente de ver o mundo e isso daria pano para mangas para estar aqui a esgrimir argumentos, por isso vou ficar por aqui... não que sem antes faça um último comentário.
Hoje vivemos num mundo global e num mundo assim julgo que a diplomacia tem que ser reequcionada, já que temos que viver cada vez mais próximos. Além disso, os negócios do BCP, Prisioneiros a passarem nos nossos aeroportos, investigações ao SG da ONU, pressionar que não se investiguem crimes, etc, etc, pode ser diplomacia, mas é bom que se saiba, para nós percebermos como o poder age.
E como dizia Lenin; só a verdade é revolucionária! Que ela desça sobre nós!
E terá ela ( a verdade )descido sobre nós, com o Lenin?
Tuuuuuuuudo bem?
Se você é como eu que sente falta da Tertúlia Virtual, por favor, deixa um comentário neste link lá no Varal de Idéias.
http://cimitan.blogspot.com/2010/12/comentarios-que-valem-um-post_14.html
Estamos tentando reviver aqueles bons momentos da Tertúlia.
Um abraco
Rui ainda a propósito de; “A Democracia (…) Já não faz sonhar ninguém nem mobiliza multidões de idealistas convictos.”
Noticias fresquinhas de Itália, através de Público on line.
«Cenas de guerrilha urbana no coração de Roma. Confrontos. Cargas. Ataques a blindados, barricadas, montras partidas, caixas de multibanco quebradas, caixotes do lixo e automóveis em chamas, objectos e pedras lançadas na rua do Corso e a Praça do Popolo transformada num campo de batalha”, descreve no seu site o jornal “Corriere della Sera”.»
«Também houve protestos significativos em Turim, Bari, Cagliari ou Catânia. Na cidade siciliana de Palermo, uns 500 estudantes conseguiram bloquear o aeroporto Falcone-Borsellino, chegando mesmo a entrar nas pistas. Na capital do Norte, Milão, uma centena de estudantes entrou no edifício da Bolsa.»
Rui, Olaio, parece-me claro que estamos assistir a uma mudança de gigantes no mundo em que vivemos. O gigante americano começa a dar sinais de envelhecimento e o gigante chinês entra no fim da sua adolescência. Isto vai doer. Não me congratulo com isso, o gigante chinês parece-me mais defeituoso que o americano e um mundo sob a sua égide será mais obscuro, despótico e injusto. Estou convencido disso. Esta coisa da Wikileaks é apenas um pequeno episódio num enredo bem mais complexo.
Daniel, vou lá dar uma espreitadela.
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