quinta-feira, maio 29, 2025

O pequeno monstro

     "Estes malucos deixam-me nervoso. Se não fosse o Artur corria esta porcaria toda ao pontapé daqui para fora." Entrara na sala de espera com cara de poucos amigos. Era um tipo absolutamente vulgar, sem nada que o distinguisse dos móveis, das paredes ou dos outros seres vivos. Não fosse a irritação estampada no rosto e ninguém se daria ao trabalho de sequer olhar para ele. "Artur!" Disse, de modo a que todos os presentes ouvissem bem o som da sua voz. O cão deu um pinote como se tivesse sentido uma descarga eléctrica e pulou para o outro lado da sala. "Sim?" respondeu Artur, descravando os dentes do tampo da mesa.

    "Não mordas a merda da mesa, caraças! Estou fartinho de te dizer que não faças isso, caramba!" O miúdo olhou-o vagamente e passou as costas da mão pelo nariz ranhoso. O cão foi encostar-se à parede numa estranha posição em que deixava as duas patas  do seu lado esquerdo suspensas no ar. Não ladrou, não ganiu, todo ele era silêncio. "Este cão também precisa de consultar o Doutor Cabeças." Pensou o homem enquanto limpava o nariz de Artur com um lenço que retirou do bolso do casaco. "Dá cá a mão." O miúdo obedeceu. "A outra". O miúdo estendeu a mão repleta de ranho na direcção do homem que a limpou com toda a paciência.

    Olhou por sobre o ombro. Aquele que estava ali em pé a contorcer-se como uma enguia era novo, nunca o tinha visto no consultório. A mulher-árvore era cliente assídua, pacífica, mas aquele gajo tinha qualquer coisa de inquietante. Instintivamente passou o braço esquerdo sobre os ombros de Artur. O rapaz sentiu-se confortado. 

    "Artur Reboredo!" a assistente do Doutor fez ecoar a sua voz de cana rachada. O homem levantou-se e, segurando Artur pela mão, avançou em passos decididos. Florbela, a assistente do Doutor Cabeças, deixou-os passar à sua frente. Segurava um bloco de notas comprido na mão direita e deu meia volta dramática, atirando a cabeça para trás num gesto muito caracterítico, seguindo de imediato o homem e o rapazola. "Sou poderosa" pensou, e fez soar com vigor os saltos altos dos sapatos no soalho flutuante marcando um ritmo marcial que conferiu alguma dignidade à banalidade desta cena.

    Artur transportava o monstrito de plástico bem apertado entre os dedos da sua mão esquerda.

quarta-feira, maio 28, 2025

Extraordinarice

     É assim mesmo que as coisas se passam. Temos de esgueirar-nos numa floresta de acontecimentos banais, sempre na esperança de que algo notável possa acontecer antes do final de cada dia. Convém sublinhar que muitos de nós são seres de uma fragilidade absoluta, seres construídos sobre personalidades de cristal, personalidades incapazes de suportar os tons mais agudos, sempre em risco de rachar, de quebrar, de voar em todas as direcções, estilhaçadas.

    Como perceber a excepcionalidade de um acontecimento? Sim, a questão é de suma importância apesar de nos parecer um bocado tola: então não se percebe logo quando um acontecimento é extraordinário!? Não. Nem sempre.

    Ainda hoje vi duas pombas, uma fêmea e uma macho, jogando o jogo da Primavera, e vi um senhora muito forte que se deslocava apoiada numa bengala com uma espécie de casaco comprido que esvoaçava batido pela brisa, uma figura notável, e vi um cão preto a ser amarrado à porta do supermercado e depois a latir timidamente, chamando a dona que havia ido às compras, enquanto olhava em volta a tentar perceber exactamente o que se passava. Vi todas estas coisas que me pareceram extraordinárias apesar de aparentemente ordinárias.

    Depois de escrever o parágrafo anterior fica a dançar-me na cabeça uma pergunta que poderá parecer uma pergunta de merda: haverá alguma coisa que não seja extraordinária?

terça-feira, maio 27, 2025

Monte de merda com dois olhos

     Ah, rai's parta esta merda, caralhos fodam este filho da puta! Como é possível haver ainda gente que assume um cargo público e que, uma vez na chefia, não respeita os compromissos assumidos pelo antecessor (ou antecessora)!? Como é possível haver verdadeiros sacos de merda convencidos de que são a coisa mais bela que por aí anda e, como tal, coisa merecedora de todos os miminhos e de todos os perdões que as suas falcatruas venham a necessitar para que não pareçam a bosta que são? Ah, eu sou eu e não tenho nada que respeitar compromissos assumidos por alguém que, ainda por cima, era uma grande pirosa! Agora o mundo é iluminado pela minha extraordinária perspicácia e indiscutível bom gosto.

    Olho para aquela porcaria e penso: "é bom que as coisas não se estraguem." Sim, porque se as coisas acabarem por se estragar, então estará tudo fodido. E estará tudo fodido com justa causa.

domingo, maio 25, 2025

Árvore Imunalógica (a coisa feita coisa)


Árvore Imunalógica, 

acrílico sobre papel de aguarela colado em cartão, 

280X180cm nos eixos maiores

sexta-feira, maio 23, 2025

O pinheiro solitário

     O miúdo deve ter algum problema. Não é normal, muito menos é natural, a forma com tem os dentes ferrados no tampo da mesa. Finjo não reparar e continuo fixa na parede. O Doutor Cabeças aconselha-me bem, finjo ser uma árvore. Sei que dou nas vistas. Não serei tão estranha como aquele puto (fogo, o gajo é mesmo esquisito!) mas dou muito nas vistas, assim, parada, a imaginar-me um pinheiro. Hoje sou um pinheiro.

    Ontem fui outra árvore mas, como as árvores têm muito fraca memória, não consigo recordar-me que árvore fui ontem. Recordar-me de ter sido uma árvore já não é nada mau. Faço progressos e quero informar o Doutor. Estou em pulgas, impaciente como um noivo no dia do casamento. Nunca mais me chamam. Que tortura!

    Aquele gajo que está ali, em pé, a olhar para tudo como se nunca tivesse visto nada na vida, a rodar o pescoço como se fosse uma galinha, aquele gajo é também uma personagem improvável. Veste-se como... não consigo situar a farpela, percebo que é uma coisa absolutamente anacrónica, já vi aquilo milhares de vezes mas não consigo lembrar-me... um poeta, um príncipe, um cavaleiro, um bandido, um assassino? Quem é que se vestia com uma gola daquelas? Caramba, tenho o nome aqui debaixo da língua mas não consigo dizê-lo. Desisto. Não consigo lembrar-me.

    Vá lá, tenho de acalmar-me. O cão está tão sossegado! Gostava de ter a postura deste cão. Mas hoje sou um pinheiro e um pinheiro não se preocupa com este tipo de coisas.

quinta-feira, maio 22, 2025

Artur

     A sala de espera tem um aspecto entre o austero e o histérico. Um sofá verde de napa com 4 lugares, dois maples a condizer, uma mesinha baixa com tampo de vidro onde se amontoa uma pequena pilha de revistas antigas que já ninguém lê. Algumas pequenas gravuras emolduradas tentam ornamentar as paredes sem grande sucesso: uma feira em plano americano tocando violino numa pose muitíssimo contra-reforma, com um halo e tudo, como se fosse iluminada por Deus ou por coisa que O valha; uma paisagem rural à maneira daquelas pinturas britânicas do século XVIII, com vacas; uma imitação de Vlaminck a berrar no meio de tudo aquilo, a dar o tal toque de histeria. 

    Imagino a aparência do médico; terá sido o Doutor Cabeças responsável pela decoração daquele espaço? Uma mulher despenteada e muito magra senta-se numa ponta do sofá; tem os olhos fixos num ponto indefinido situado algures entre a extremidade do seu longuíssimo nariz e a parede em frente. Um cão, aparentemente um rafeiro, descansa a seus pés com o focinho depositado na alcatifa vermelha que faz um belo contraste de complementares com o sofá e os maples. Os objectos já estão gastos, as cores um tanto esbatidas, mas têm a sua dignidade. A mulher não mexe um músculo que seja, nem sequer pestaneja.

    Sentado na alcatifa, com os dentes aferrados ao tampo da mesa, um miúdo dos seus três ou quatro anos parece hipnotizado por alguma fada invisível. Segura na mão um boneco de plástico, um pequeno monstro disforme, esquecido e sem graça. Um fio de baba escorre-lhe de um dos cantos da boca. O nariz rebrilha de ranho. Um homem entra na sala vindo de uma porta que agora se fecha e na qual eu ainda não tinha reparado. "Artur", diz ele e o cão levanta-se de um salto e o miúdo responde, absorto "sim?"

quarta-feira, maio 21, 2025

Um gajo nem as sonha

     Um gajo tende a florear o passado quando trata de ensiná-lo às criancinhas. A ideia é não traumatizar demasiado a petizada, manter as coisas dentro de fronteiras fofinhas e, se possível, traçadas a tinta cor-de-rosa. 

    Um gajo esquece-se que é adulto e que as imagens que cria e transmite a um puto não lhe caem no entendimento com contornos idênticos aos que está a esboçar na sua cabeça emissora. Então temos soldados anjinhos a disparar cravos vermelhos com as suas metralhadoras deixando a pairar um fumozinho que é, na verdade, uma réstea de amor. 

    É uma história um bocado imbecil onde, normalmente, os maus não são sequer nomeados, como se a luta da Liga da Justiça fosse feita contra o vazio. Ainda aparece por ali uma pomba branca que não se percebe muito bem qual é o seu papel. Talvez esteja com fominha e haja migalhas para ela debicar.

    Um gajo conta e reconta histórias deste calibre aos putos, ano após ano. Os putos vão crescendo mas a história mantém os traços infantilóides absolutamente inalterados e os soldados já não são anjinhos, são uma espécie de personagens da Marvel Comics que vomitam cravos vermelhos sempre que uma pomba surge entre os prédios a esvoaçar de forma ameaçadora sobre uma massa informe e sanguinolenta a que se dá o nome de povo.

    Os putos crescem e um dia irão votar.

terça-feira, maio 13, 2025

Palestrante

     O palestrante deambulava para a esquerda e para a direita numa linha vagamente recta. Aqui e ali uma paragem, acolá uma suspensão no discurso, tudo razoavelmente dramático. Esboçou uma narrativa carregada com traços terroríficos. O gesto, o tom, o estilo, tudo para convocar um sentimento piedoso entre nós, na plateia. E a coisa funcionou. Os espectadores pareceram irmanados pela compreensão do sofrimento alheio. Tudo muito piedoso, tudo muito solidário em retrospectiva. Bastaria olhar os rostos comprimidos dos que escutavam o professor para perceber que se tratava de boa gente, que era tudo boa gente.

    Algo me incomodou a ponto de retirar o meu bloco do bolso para registar o que se segue: "muito evocamos os tormentos e pouco falamos de alegrias." 

    Voltei a guardar o bloco no bolso do casaco e continuei a seguir o passeio do professor à minha frente; direita, esquerda, parado, em andamento. No fim todos batemos palmas.

sexta-feira, maio 09, 2025

O bicho

     Cambaleava com toda a convicção. A noite quente, a solidão mas, sobretudo, o álcool. Sentiu uma angústia tão completa que teve de a expulsar na forma de um terrível grito, um som aterrador que feriu a noite e ofendeu a lua. 

    Áúúúúúúú, áúúúúúúú!!! 

    Aquela coisa animalesca ecoou nas fachadas baixas dos prédios, percorreu as ruas todas perpendiculares umas às outras. Era um uivo a assombrar a cidade, monótona e previsível como um acampamento militar do tempo dos romanos. 

    Áúúúúúúú, áúúúúúúú!!!

    O mar batia na praia lá mais para diante. Passou o portão do cemitério, fechado àquela hora. Sentia-se triste mas tremendamente livre.

segunda-feira, maio 05, 2025

Árvore Imunalógica (3ª tentativa)

 

O sol, um rio, um chacal, um hipopótamo. Um homem de longa barba e farta cabeleira branca, uma floresta, uma montanha, uma tempestade, uma mulher, um pássaro, um fantasma, ouro, muito ouro, imenso ouro! Um espírito, o mar profundo, o azul do céu, um demónio, o fogo, a água, o ar, a terra, um nome, um nome proibido, um nome impossível de pronunciar; uma nota de banco, um olho desenhado no céu.

Outro homem, filho do primeiro: encarnação; um livro, um livro sagrado, “o” livro: encadernação.

Um som, um sopro, uma ausência. A lua. A tempestade.

Deus é um híbrido, resulta do cruzamento entre a carne humana e o espírito que a anima, o que faz Dele uma ideia.

Deus, seja Ele qual for, seja Ele o que for, Deus, sem nós, não existe. Quando o último Ser Humano perecer, de Deus não restará nem a memória!

sexta-feira, maio 02, 2025

Sem título

     A manhã mal começara mas o homem sabia bem que o dia haveria de ser passado à espera que chegasse ao fim. Cada minuto, cada hora, potenciais suplícios. Calçou as botas com a ajuda de uma calçadeira, apertou o cinto num furo mais adiante, a barriga a crescer-lhe como se pudesse estar grávido, a crescer-lhe todos os dias um pouco mais, um pouco mais, haveria limite para aquilo ou acabaria por rebentar espalhando sangue e tripas à sua volta? Esta imagem fê-lo sorrir. Agradavam-lhe ideias assim, ideias extremamente estúpidas. 

    Saiu arrastando os pés. Dirigiu-se ao supermercado. Cruzou-se com mais pessoas que pareciam arrastar-se como ele, pessoas aparentemente desanimadas, aparentemente pouco dadas a sonhar com um futuro para lá do meio-dia. Colocou uma embalagem de cogumelos laminados no cestinho com rodas. Juntou-lhe uma garrafa de vinho tinto e duas latas de atum em promoção. Dirigiu-se à caixas automáticas e escolheu uma, ao acaso. A máquina não colaborou logo à primeira tentativa mas depois da intervenção de uma senhora credenciada pela empresa detentora do capital da loja, lá se decidiu a cumprir o seu papel nesta cadeia fastidiosa de acontecimentos banais. O homem pagou com um cartão de débito e saiu do supermercado.

    Chuviscava. Atravessou a rua na passadeira. Um carro vermelho teve de parar para que ele atravessasse. Regressou a casa e sentou-se no sofá sem grande entusiasmo. Pegou no livro que deixara sobre a mesinha: "Este país não é para velhos" de Cormac McCarthy. Sorriu. Talvez devesse emigrar.