quinta-feira, setembro 12, 2024

Abstraccionismo Narrativo

      Faz hoje ou fez ontem 9 anos que inaugurei uma exposição de desenho, pintura e colagens à qual dei o título bastante descritivo de "Abstraccionismo Narrativo". Vasculhando um pouco aqui, o 100 Cabeças, encontrei apenas referência directa ao acontecimento neste post. Pelos vistos também eu não considerei a coisa digna de muito mais que uma referência lateral. Passados 9 anos sobre o acontecimento dou por mim a pensar que o conceito de Abstraccionismo Narrativo merece um olhar mais atento.

      O conceito de abstracção associado à criação nas artes plásticas remete para objectos que prescindem de uma linguagem visual que possa relacioná-los de forma mais ou menos imediata com o mundo que nos rodeia. Os primeiros passos deliberadamente nesse sentido terão sido dados por Kandinsky que, ao longo do trajecto, foi encontrando uma e outra situação capaz de tornar mais consistente o seu projecto artístico.

    O abstraccionismo de Kandinsky estaria relacionado com a invenção de um sistema criativo capaz de associar forma e cor numa espécie de tabela esquemática onde a influência da música foi também introduzida. Penso que vem daí o conceito, agora tão vulgar, de composição visual por associação ao de composição musical. Uma composição musical era formada por sons, tons, silêncios, tempos, a composição visual por linhas, pontos, manchas, cores, espaços vazios...  numa relação aparentemente fácil de estabelecer e de compreensão imediata, mesmo para os leigos na matéria.

    Várias e diferentes interpretações do conceito de abstraccionismo vieram à luz do dia, todas elas focadas essencialmente na questão da não representação da realidade aparente dos objectos e das formas que nos rodeiam. A criação abstracta não copia a natureza, cria uma outra natureza; não reproduz, acrescenta - ideias deste género ganharam pernas e foram à sua vida. Vamos então sendo educados para que, sempre que um objecto artístico não represente nada que possamos identificar através de uma relação reflexa com o mundo "real", possamos afirmar, sem tremura na voz, estarmos perante Arte Abstracta (assim mesmo, com "AA").

    Os meus trabalhos têm sempre referências formais mais ou menos identificáveis. O carácter fantástico ou repulsivo de certas figuras e outras bizarrias formais levam o observador ocasional a relacionar o que faço com um universo surrealista. Aceito e compreendo mas não posso concordar em absoluto. Foi a partir de conversas mais ou menos inocentes sobre esta questão que percebi a existência de uma fortíssima componente abstracta no meu trabalho, localizada no campo temático e narrativo. 

    Não retirei a literatura da pintura nem reneguei o mimetismo nos meus trabalhos mas as narrativas que desenvolvo podem ser absolutamente herméticas e eventualmente indecifráveis dada a forma absolutamente caótica como vou juntando referências de diferentes naturezas nos objectos que crio. Cada objecto se transforma numa aparente anarquia visual e narrativa (na verdade há sempre ali muita coisa meticulosamente pensada), propondo ao espectador que se confronte com aquilo que vê e crie, ele próprio, a sua história.

    Apercebo-me que este texto, indo já longo, não serve, nem de longe nem de perto, a exposição exaustiva do conceito mas, parece-me, explica o fundamento da coisa. Fico-me por aqui. 

segunda-feira, setembro 09, 2024

Caçar a ideia

     Perseguir uma ideia é como caçar. Apercebemo-nos de leves indícios, uma pista. Seguimos-lhe o rasto. Se intuirmos ser uma boa ideia perseguimo-la até onde for necessário desde que possamos apanhá-la. Seja como for, o resultado da caçada depende muito da natureza da ideia perseguida.

    Há ideias que quando se apercebem que estão a ser perseguidas esperam por nós de sorriso afivelado e se deixam capturar com alegria. Outras são esquivas e deslocam-se com uma rapidez incrível nunca deixando a protecção das sombras que povoam a nossa imaginação. Há ideias que conseguimos encurralar mas que nos resistem com heróica ferocidade por não quererem ser nossas. Ideias admiráveis. 

    Há ideias que são como borboletas, que se mascaram com grandes olhos e cores provocantes para confundirem os predadores e outras ideias que são como camaleões perfeitos. Embora saibamos que estão ali mesmo à nossa frente não conseguimos isolá-las nem distingui-las da paisagem. Movem-se com uma lentidão exasperante e, no entanto, são praticamente inalcançáveis. Ideias terríveis.

    Caçar ideias é uma actividade que poderá ter tanto de apaixonante como de frustrante. Importa saber o que fazer com uma ideia após a sua captura: se a destruímos, se a engaiolamos, se a tentamos domesticar ou a deixamos ir à sua vida. 

    Se a ideia gera algum tipo de expectativa em nós, seus captores, poderemos guardá-la, observá-la, ver como cresce e se transforma. Esse processo gera com frequência alterações tanto no captor quanto na presa engaiolada.

    Imagino que tenha sido assim que surgiram os primeiros deuses e, por consequência, nós tenhamos sido por eles criados.

Melodrama

     Procurava uma máscara que pudesse adaptar ao terror absoluto que lhe assaltava o sono. Todas as noites eram para ele lugares de tremenda insegurança. O sono vinha acompanhado de sonhos que eram, quase sempre, pesadelos. Ao acordar encharcado em suor sentia ténue alívio por adivinhar que se seguiria um dia inteiro a viver mais ou menos sossegado consoante se aproximava a noite. Na escuridão do seu modesto quarto  resistia como podia ao peso do sono que adivinhava tremendo. O cansaço acabava sempre por vencer. Fechados os olhos regressava o melodrama.