Ah, como é reconfortante que, por uma vez que seja, a polémica se desdobre em volta de um objecto artístico; ou será que a raiz da polémica é o artista que criou o objecto artístico? Terceira possibilidade, bem mais prosaica e enfadonha: a polémica reside no vil metal, sempre o vil metal. Haverá ainda uma outra via de análise, a da necessidade de ter razão, arrotando a derradeira posta de pescada, mas não valerá a pena ir por aí que o espaço é curto e o tempo escasseia para todos.
Longe vai a época em que a Academia das Belas-Artes decidia do alto da cátedra o que era e o que não era Arte (assim mesmo, com maiúscula). Não havia grande discussão. Em 1863 deu-se em Paris um grito semelhante ao então recente Grito do Ipiranga. Foi no célebre Salon des Refusés, exposição paralela à da Arte do Salon, validada pela Academia, onde pontuavam, entre outros, artistas menores como Manet ou Cézanne, cuja pintura não era mais que ridícula e grotesca. A partir daí a coisa foi-se desenrolando até que explodiu definitivamente com as vanguardas artísticas do início do século passado, tendo como obra emblemática A Fonte, da autoria de Marcel Duchamp que consistia, como será do domínio público, num urinol deitado e assinado: R. Mutt, 1917 (segundo a Wikipedia terá um valor de mercado actual de cerca de 3 milhões de euros). Esta foi considerada, por um painel constituído por historiadores, curadores, galeristas e outras sumidades do universo das artes plásticas, a mais importante obra de toda a Arte produzida no século XX. Um urinol, benza-nos Deus!
Aqui chegados aceleremos em direcção a Leça da Palmeira e a A linha do Mar, obra polémica de Pedro Cabrita Reis que tanto tem dado que falar. O artista fez publicar um texto neste jornal que desagradou aos seus detractores tanto pelo modo como afirmou a sua autoridade quanto pela argumentação estética. Apontaram-lhe a falta de humildade, como se a humildade fosse uma qualidade necessária para a validação do discurso e do objecto artístico, e puseram em causa que o artista possa decidir se a sua criação é ou não Arte (ou arte, com minúscula).
João Miguel Tavares escreveu um divertido texto, “Serenamente, Cabrita Reis e a lógica da banana” onde conclui que “A lógica da batata foi ultrapassada. Hoje impera a lógica da banana.” A meu ver, a causa principal do espanto que conduz à polémica é o valor que a Câmara de Leça pagou pela obra e os valores absurdos que caracterizam o Mercado da Arte actual. Seja lógica da batata, da banana ou do urinol, é a liberdade do tão incensado “mercado” que estará, verdadeiramente, em causa. Mas, como todo o bom neoliberal sabe e defende, os mercados auto-regulam-se. Pois então, deixemos o Mercado auto-regular-se em paz, que raio! Diz o Povo que ao tolo, quando lhe apontam a Lua, ele se fica pela contemplação do dedo que lha indica. Não sei se aplica nesta situação mas é tentador acreditar que assim seja.
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