quarta-feira, setembro 24, 2025

Um momento

     Talvez não tivesse tomado a melhor opção. Talvez pudesse ter evitado aquilo. Talvez, talvez, talvez. Talvez fosse estúpido estar agora a lamentar-se. Deus ofereceu-lhe aquele coração de manteiga e ele não pôde rejeitá-lo. É o que é, o que sempre foi: um filho da mãe sensível como um Ursinho Carinhoso. Soube naquele momento que havia de carregar aquela cruz para o resto da vida.

    Mirou o sangue na sua mão esquerda. Sentiu uma apatia tão grande ...! Era como se tivesse sido transformado em montanha, como se agora fosse a porra do cabrão do Adamastor. Precisava de pisgar-se dali para fora mas sentia as botas pregadas ao chão; não conseguia tirar os olhos da sua mão esquerda. Veio-lhe à memória a canção de Nick Cave, Red Right Hand, o que lhe provocou uma dolorosa convulsão na barriga, uma espécie de riso violentamente abafado pela mágoa. A mão vermelha era, afinal, a esquerda. 

    Pela janela entrava o canto de um pássaro. O ar estava fresco. Aquela manhã podia ter sido tranquila, um Domingo igual aos outros. Mas não, tudo acontecera inesperadamente e agora ali estava ele meio aparvalhado, a mão esquerda pingando sangue e uma tristeza tão grande no peito que parecia ter dentro uma ratazana ávida de liberdade. 

domingo, setembro 21, 2025

Anonimato

     Quando realizamos algo que no nosso imaginário é digno de nota devemos ficar desiludidos caso a cena não tenha sido observada por, pelo menos, mais uma pessoa? Logo naquele momento, precisamente quando conseguimos ultrapassar medos e limitações, nem um parzinho de olhos a observar? Ora porra, é preciso ter azar! Saber que conseguimos não é recompensa suficiente?

sábado, setembro 13, 2025

Centenário

    Quando eu fizer 100 anos há quantos anos estarei já morto e enterrado? E se estiver vivo??? Caraças, grande cena. Se estiver vivo serei decerto uma espécie de múmia: sem cabelo nem gordura, dores nos ossos e nos músculos, se ainda respirar não sei se quererei estar consciente do que for. Talvez a demência seja uma defesa contra a decrepitude absoluta do corpinho.

    Mas, estar vivo é hipótese académica que não levo a sério. Por isso mesmo talvez seja tempo de ir pensando em nomear uma comissão organizadora dos festejos em memória do que eu fui (e ainda virei a ser enquanto por cá andar). Nunca é tarde e raramente é cedo demais para uma cena destas. 

quarta-feira, setembro 10, 2025

A manada

     Tacatum, tacatum, tacatum, uma manada de filhos-da-puta disparada avenida abaixo leva tudo à frente: árvores, viaturas, crianças, velhinhas, animais de estimação, nada escapa ao galope desenfreado da manada. Tacatum, tacatum, tacatum. Um tipo de boné e capote alentejano avança destemido em direcção ao centro da avenida e levanta um braço. Tacatum, tacatum, a manada não parece abrandar (não abranda de facto, antes ganha mais e mais balanço) mas o compadre não arreda bota: ali está, qual estátua neorrealista, braço erguido e olhar confiante, um leve sorriso a desenhar-se-lhe no canto da boca, ah valente! Tacatum, tacatum, tacatum, nenhum dos filhos-da-puta se acerca a menos de 10 centímetros do nosso herói, passam por ele em correria como um rio se afasta respeitoso ao encontrar ilhota que lhe faça frente. É um milagre? Não, é uma cambada de filhos-da-puta na qual, apesar de investirem em manada, não há um único que tenha tomates para experimentar atropelar o compadre alentejano. Se algum o fizesse havia de o deixar todo partido, estendido no asfalto a sangrar e a dizer mal da vida. Como se fosse um forcado azarado. Tacatum, tacatum, tacatum, lá vão eles, desenfreados em direcção a um futuro que é só seu.

terça-feira, setembro 09, 2025

Tempos

     Estava aqui a pensar que as coisas nunca acontecem como podiam acontecer, acontecem sempre um bocadinho acima, um nadinha ao lado, acontecem assim mais ou menos o que faz com que aconteçam sempre de outra forma. Nunca acontecem como podiam, acontecem sempre como deviam acontecer. A Ordem acima de tudo.

    Há quem acredite no destino. Muita gente sente-se esmagada pelas previsões que as cartas revelam ou os acontecimentos que o alinhamento dos astros permite entrever, a vida a acontecer antes de ter acontecido. É como aquela adivinha estúpida da pescada que antes de ser já o era, qualquer coisa deste género que tenho fraca memória seja para o que for quanto mais para adivinhas estúpidas.

    Tenho saudades de ser criança e nem sequer pensar em merdas como estas. O futuro era tão pertinho! As coisas aconteciam ali mesmo, naquele momento e quando brincava era eu quem determinava o rumo que levavam. Conseguia fazer com que tudo encaixasse na perfeição, uma perfeição que só eu era capaz de imaginar. E não havia cá tangas.

domingo, setembro 07, 2025

Ãoão

     Se por acaso tivesse uma pedra no bolso havia de resolver a questão com rapidez e deselegância. Uma calhoada bem assestada ali mesmo, no meiínho daquele par de cornos, e seria vê-lo a rodopiar sobre uma pata ao redor de uma perna e depois a despencar com majestade, como se fora uma saca de merda, a despencar em cheio na calçada: catrapunfas! Já foste!

    Se por acaso fosse um pouco mais moreno (teria de ser mesmo muito mais do que sou) ninguém diria que vim do Norte, todos pensariam que era do Sul que eu era. Mas não. Fui presenteado com uma pele que parece lavada com lixívia, sardas como se fosse cagado das moscas e um cabelo que não se percebe que raio de cor ele tem. Logo sou celta, nunca mouro, sou judeu, nunca cigano. Verdade, verdadinha não me sinto ser nada disso nem sinto ser aquilo que não sou. Sinto-me muito eu. É quanto basta.

    Se por acaso tivesse um animal de estimação dificilmente seria um gato e nunca, mas mesmo nunca, poderia ser a porra de uma serpente. Gosto muito de cães. Talvez até gostasse de ser um cão. Não sei, não tenho bem a certeza. Os cães são fixes.

Erupção momentânea

     Há acidentes que, por acidente, não chegam a acontecer. Desgraças semeadas que não chegam a medrar no campo das angústias. Há coisas do diabo que não chegam a sê-lo e o diabo que se lixe. Olhando o passado tão longínquo quanto me foi possível, pude apenas observar longuíssimas sombras de coisas esquecidas. E, se nada disto faz sentido, um fantasma abeirou-se do meu ser e tentou compreendê-lo. Talvez não tenha sido capaz, talvez tenha perdido o interesse. Foi-se embora. Abandonou-me sem sequer me ter lambido as mãos. 

quinta-feira, agosto 28, 2025

Eles vivem

 

    Eles vêm aos milhares. Ocupam as nossas casas, ficamos sem tecto, fugimos do centro para a periferia. Eles têm hábitos estranhos, deixam atrás de si um rasto de detritos sólidos, sujam as ruas e bebem demasiado. Deslocam-se como zombies arrastando malas barulhentas. O céu da cidade é uma autoestrada em hora de ponta. 

    Eles vêm aos milhares, carregados de dinheiro para gastar em todas as direcções. Muitos vêm para ficar. Compram casas e apartamentos que pagam a preços, para nós, inacreditáveis o que nos transforma em pobres de um dia para o outro. 

    É a tão temida Grande Substituição de que ouço falar há uns quantos anos. O nosso país está a ser retalhado e vendido. Nós, os portugueses de bem, estamos a ser substituídos por gente rica, não importa de que raça ou de que cor. Desde que tenham dinheiro são bem-vindos.