terça-feira, fevereiro 25, 2025

Um casal

     Um ser com aspecto de estar vivo repuxava a fenda que lhe abria a pele abaixo do nariz, fazia qualquer coisa semelhante a um sorriso. Trazia um chapéu alto, uma cartola, e um casaco comprido com gola de pele, ao pescoço a memória de uma morte e sequente esfolamento, violências necessárias à satisfação de algum obscuro anseio daquele ser inquietante, com aspecto de estar vivo.

    Do lado esquerdo uma senhora muito elegante num vestido esverdeado e fechado em folhos até ao queixo poderoso como o de um pugilista. Um complexo chapéu, sedas, flores e fingimento, dava a sensação de poder acasalar com a cartola daquele ser, agora parecia estar morto, que a seu lado se mantinha especado como cruz de pau em chão de pedra. A senhora era tão feia como a coisa mais feia que sejas capaz de imaginar. Sorria.

    Mais estranhos seres compunham o ramalhete de personagens que me ocupavam o horizonte imediato mas aquele casal (seriam um casal?) prendeu-me o olhar de tal modo que senti um leve rubor a atravessar-me a face quando o olhar da senhora com o meu se cruzou. Inclinei levemente a cabeça enquanto assentava o peso do meu corpo no calcanhar esquerdo. Rodei sobre mim próprio e saí dali em passada militar tentando não mostrar a inquietação que me atordoava por completo.

    Lá fui. 

(a partir da observação de uma reprodução truncada de A Intriga, pintura de James Ensor datada de 1890)

quinta-feira, fevereiro 20, 2025

Sonhos

    Acabo de me aperceber que os sonhos não morrem, apenas deixam de ser sonhados. Mesmo que abandonados os sonhos lá permanecem, no espaço mágico onde eternamente se desenrolam, independentes daqueles que primeiro os sonharam.

    Há sonhos que são exclusivos do sonhador e outros que são sonhados por mais gente. Uns e outros feitos da mesma substância, prontos a entrar rompendo nossas noites sem aviso. Sonhos furiosos, sonhos lânguidos, fracos ou fortes sonhos, todos podem vir a ser nossos, assim aconteça que nos cruzemos nas imensidões do acaso que é a Existência.

    Os sonhos não morrem, esmorecem se deixados de sonhar. Mas não desaparecem! Os sonhos não se esfumam, pairam eternamente, esperando. Como animais esfomeados, esperam voltar a ser sonhados.

quarta-feira, fevereiro 19, 2025

Memória rafada

     Gaivotas trotam sobre o lajeado, uns tipos das piscinas limpam a superfície da água com uma rede pequenina, azul, tão pequenina que mal daria para pescar um casal de sardinhas.

    O céu descido sobre a praça, o frio a fazer-se sentir, não me apetecia muito ir por aí além.

    Imagino ser o passado presente para melhor acomodar as ideias nos tempos verbais de modo a que talvez possa fazer, quando escrito, mais sentido do que vai fazendo na minha cabeça enquanto escrevo.

terça-feira, fevereiro 18, 2025

A Paz como Comédia

 Descia a avenida depois de umas horas na Biblioteca onde começara por ler e consultar as notas de A Paz de Aristófanes (diverti-me muito com o diálogo dos escravos que alimentam de merda o escaravelho que servirá de montada a Trigeu) e, já de saída, passei os olhos pelos primeiros versos de A Divina Comédia na tradução de Vasco Graça Moura.

Dizia eu que descia a avenida depois destas indolentes leituras quando fui assaltado pelas palavras que a seguir transcrevo:

A vida de cada um não passa de intervalo 
durante o qual o corpo de alma é disfarçado. 

Parei no passeio e registei a coisa no caderno que trazia no bolso esquerdo do casaco.

domingo, fevereiro 16, 2025

Quem é Deus?

    Três mulheres calçadas com sapatos rasos e saiões caídos até aos tornozelos erguem-se com se um muro fossem, plantado em plena calçada portuguesa. Plantadas estão defronte à ampla entrada do interface do Cais do Sodré, entrada que nos engole a todos. As três mulheres, mais hirtas que firmes, são solenes sentinelas de um palácio celestial invisível.

    Completa-as um escaparate móvel com folhetos e revistas piedosas que no topo anuncia uma pergunta: "Quem é Deus?"... quem é Deus? A sério? Que merda de pergunta é aquela? Serão aqueles três saiotes capazes de me dar uma resposta? Sinto a tentação de me abeirar e pedir-lhes que me digam quem é Deus.

    Acabo por ser como todos os outros e passar em silêncio desdenhoso deixando-me engolir pela entrada até ser cuspido e escarrado do lado de lá, em direcção ao cais, em direcção ao barco.

quarta-feira, fevereiro 12, 2025

Eis São Cagão

A forma alucinada como Trump se vê a si próprio e é nisso secundado pela sua corte de pategos é, simplesmente, assustadora. Trump imagina-se um enviado de Deus mas qual é o seu desígnio? Fazer a América grande outra vez? Isso não cheira demasiado à merduncha do tenebroso Deus israelita e à patacoada do Povo Escolhido? 

Quando alguém fala com Deus e conhece o Seu plano está o caldo entornado. Entorna-se o caldo para os que não acreditam nessa treta tanto quanto se entorna para os que nela embarcam. Entra-se numa dimensão paralela, tipo Stranger Things, onde as regras Humanistas se distorcem até serem o seu oposto absoluto. Deus devora tudo, inimigos e devotos, porque ser Deus é ser um monstro.

O Deus destes gajos só ama aqueles que o amam, da mesma forma que um criador de gado ama as suas vacas. É uma personagem perversa, prepotente e vingativa, daí Trump imaginar haver uma ligação especial entre ambos; figuras de opereta.

Vaidoso e estúpido, o presidente norte americano ostenta óbvios sinais de demência. O olhar dele está cada vez mais alucinado, a expressão facial é dura, talhada à machadada até se transformar num focinho. As mãozinhas, a boquinha, o discurso melífluo carregado de veneno, o ódio que lhe escorre das beiças, Trump imagina-se santo.

É o São Cagão.

segunda-feira, fevereiro 10, 2025

Tempos difíceis

Passei a vida toda a tentar ser um gajo fixe. Muitas vezes tive dificuldade em limitar os meus apetites ou contrariar paixões egoístas. Muitas vezes falhei e contribuí para a infelicidade de outras pessoas, fui cabrãozote. Com o passar do tempo consegui ir limando certas arestas da minha personalidade. Não sendo santo pelo menos não sou filho-da-puta. Mas agora começo a pensar se conseguirei manter este "low profile" por muito mais tempo.

Olho para a transformação do modo de estar do cidadão do chamado Mundo Ocidental. A ascensão dos monstros nazis e fascistas fazem-me duvidar da minha postura. Terei necessidade de trabalhar o meu ser no sentido inverso do que tenho vindo a fazer? Temo bem que sim. A guerra aproxima-se,

sexta-feira, fevereiro 07, 2025

Coro dos Desalojados

 

Coro dos Desalojados

A luta continua,

vamos todos para a lua;

para a lua vamos todos

empurrados com bons modos.

 

Uns dias amam-nos muito

outros dias nem por isso;

tudo depende do guito,

guito paga compromisso.

 

Nas ruas desta cidade

já nem os pardais têm asas

e são os filhos da puta

quem nos fica com as casas.

 

Quem manda é gente de bem,

gente suja e perfumada,

uns grandes filhos da mãe

que nos pagam com porrada.

 

Hoje não tenho casa,

não tenho sequer barraca,

trago uns filhos na escola

outros a pedir esmola.

 

A luta continua,

vamos todos para a lua;

para a lua vamos todos

empurrados com bons modos.