sábado, novembro 30, 2024

Vinha trazer-vos o Amor

     Vinha trazer-vos o Amor mas tenho a sensação de ser coisa que vos não faz falta. Tendes as Black Friday, tendes o Tik Tok e o Facebook, os smartphones e as companhias low cost, tendes tudo e tanta coisa, que falta vos poderá fazer algo tão etéreo, vago e indefinido como "é coisa que arde sem se ver"?

    Vinha trazer-vos o Amor mas decidi ficar-me pela tasca da esquina a comer um choco frito pobremente regado com uma imperial, fresca q.b.

quinta-feira, novembro 28, 2024

Ausência absoluta

     A sala estava silenciosa, todo o ruído provinha do exterior. Vozes que ondulavam no esforço de penetrar as paredes, ultrapassar as janelas fechadas, vozes que haveriam de pertencer a alguém mas que por agora não tinham rosto. Talvez nunca tivessem. Uma sirene distante encantou o silêncio quase conseguindo levá-lo com ela. Lá longe, para longe. Uma sirene...

    A sala permanecia, boiava no silêncio.

    Quatro filas de carteiras com tampo bege, cadeiras nem todas devidamente arrumadas, nem todas iguais. Aquele espaço era o seu reino. Paredes sujas, a porta com um vidro magrinho, plantado ao alto, um ecrã e um projector e um computador asmático, companheiro de trabalho mais ou menos fiel, escravo de quantos sentavam o cu naquela cadeira onde escrevia, agora mesmo, estas palavras. Passos no corredor, vozes, cadeiras arrastadas no andar de cima. Silêncio. Silêncio outra vez.

    A sala, vazia e pouco limpa, era o seu reino apesar de não ser rei  de coisa nenhuma, de não pertencer a lugar algum, nem em sonhos. Talvez não quisesse ser nem pertencer. Talvez não quisesse nada, nem sequer ser personagem deste conto mal-ajambrado. Talvez não existisse, não exista.

    A sala, vazia! Todo o ruído disparado do exterior. Luz acesa, computador ligado. Sala silenciosa. Há um encanto indefinível na ausência absoluta, talvez por podermos apenas imaginá-la. Sons cada vez mais espaçados, mais distantes, o vulto de um pássaro na janela, recortado sobre o céu que escurece com a tarde a ir embora, um céu agora apenas azulado. O apito de um professor de educação física soou longe, como se fosse um lamento.

    A sala não existia mas, no entanto, ali estava. Vazia. Silenciosa. Abandonada.

domingo, novembro 24, 2024

Leitura

     Influenciado pela imaginação de Borges (aliada à minha com o fito de me fazer planar algures entre o céu e o inferno) folheei brevemente a Divina Comédia (edição bilingue com tradução de Vasco Graça Moura). Senti o impacto da coisa, tal qual Borges descreve na sua conferência em Sete Noites (vi Cerebro com uma nitidez nunca antes sequer imaginada). 

    Um gajo, não tendo problemas de guito, pensa logo: "podia comprar isto". Mas depois de reflectir um pouco, este gajo, percebe que nunca iria ler a cena até ao fim, que seria mais um belo livro a fazer-lhe caretas lá do cimo da prateleira. Devolvido o livro ao seu lugar um gajo pensa: "nem sequer Os Lusíadas fui ainda capaz de ler".

    Que livros ler, quando os ler, como os ler, o que deixar de fazer para fazê-lo? Eis uma sequência de incómodas questões que o gajo prefere ignorar.

quinta-feira, novembro 21, 2024

Bom dia

     Não deveria esquecer-me de que todos os dias podem começar como este começou. Começou com a leitura de uma das conferências de Borges publicadas em Sete Noites (esta versando a Divina Comédia). Não tanto pela imensa erudição que irradia das palavras escritas, não tanto pela beleza rítmica da forma (que mesmo na tradução para português não é perdida), não tanto pelo poço celestial do conteúdo: os dias deviam começar desta forma pois é leitura que me faz recordar o prazer que é estar vivo.

    Dou por mim a pensar como seria agradável que após a hora da nossa morte pudéssemos continuar a ler; como seria agradável que o universo continuasse para lá da cortina dos sentidos, uma infindável biblioteca, como o terá sonhado Borges; dou por mim a pensar que o inferno decerto será semelhante ao silencioso deserto de ideias que imaginei ainda há pouco.

sábado, novembro 16, 2024

Amanhã é dia do Senhor

     Celebrar o Nada, adorar o Vazio, eis a essência de todas as religiões. Ora tentamos preencher as lacunas criadas pela ausência de raciocínio, ora as ignoramos, afirmando tratar-se a ignorância de um mistério. Não fosse a religião manifestação da nossa absoluta incapacidade para compreender o mundo, poderíamos imaginá-la fruto de algum tipo de construção intelectual destinada a preencher o Nada, destinada a agitar o Vazio.

    A religião será, então, uma emanação da nossa impotência, da nossa incapacidade para encontrarmos justificação para sermos aquilo que somos (mesmo que não sejamos capazes de o compreender). 

    Estou convencido de que, sendo nós bichos como os outros, não existe o Nada, muito menos o Vazio; isto dispensa por completo Deus de ser o que imaginamos que Ele seja, o que decerto muito O aliviará. Isto porque Deus, a existir, não seria capaz de evitar esta mesma sensação de perda constante, esta angústia de não encontrar um sentido para o que quer que seja. Afinal de contas, não fomos nós criados à Sua imagem e semelhança?

sábado, novembro 09, 2024

A felicidade num buraco

     Ficar na sombra não é das coisas mais fáceis a que um gajo possa aspirar. A tentação de deitar um cornicho de fora é muito forte. Querer banhar a fronte na luz do sol, mostrar o sorriso, explicar a quem esteja a ouvir como somos gajos espectaculares, a compulsão da exposição social fala alto. Mas não tão alto que abafe a tendência natural para a anulação do ego. Quando esta existe.

    Uma educação católica em meio rural cava profundas valas onde semeamos modéstia com uma eficácia tal que a colheita dura a vida toda. E tentamos mudar, tentamos deixar a agricultura, imaginar outras actividades, mas nada funciona. Campónio uma vez, campónio a vida toda. Nunca deixarei de ser um campónio. Tempos houve em que a constatação dessa evidência me incomodou. Nos tempos que correm a condição de eterno campónio enche-me de orgulho. Vai na volta esse orgulho não é mais que auto-defesa. É bem possível que assim seja. 

    A passagem do tempo fornece a cada um de nós a possibilidade de vestir uma armadura mais ou menos eficaz contra os temores que o mundo vai sendo capaz de nos infundir. O mundo que se infunda! Que se infunda esta merda toda. Vou cavar um buraquinho onde possa aninhar-me confortavelmente, como imaginei a toca da raposa Salta Pocinhas, heroína imbatível da minha mais tenra infância. E nesse buraquinho serei feliz, até ao esquecimento absoluto.

quinta-feira, novembro 07, 2024

Um lugar infecto

     O Troglodita adiantou-se ao Pedinte mas nem um nem outro terão, jamais, acesso à informação necessária. Para eles o ouro não chega a ser uma miragem. Nunca sairão daquele lugar infecto. "Que é o único lugar a que têm direito", pensou o homenzinho no guichet enquanto contava notas de 5 e 10 euros.

    O Pedinte e o Troglodita são extremos de uma linha sinuosa. O Pedinte não desiste da existência. Estende a mão, implora baixinho. Podemos não o ver mas não é porque seja invisível. É por sermos cegos. 

    O Troglodita é um gajo um pouco perigoso. Não percebe bem nada do que o rodeia. Tem feelings, por vezes feelings muito ásperos; tem sentimentos confusos. Antipatiza naturalmente com o Pedinte talvez por sentir que há, entre eles, algum tipo de competição. Por atenção? Por espaço? O Troglodita não compreende nada.

    "São umas bestas!" - o homenzinho do guichet não passa de um miserável (a vários níveis) mas contemplar aqueles dois maltrapilhos, que vivem e cagam no meio da rua, fá-lo sentir-se um nadinha poderoso. O suficiente para se imaginar uma personagem importante.

    O Troglodita adiantou-se ao Pedinte mas nem um nem outro terão, jamais, acesso à informação necessária. Nunca sairão daquele lugar infecto.