terça-feira, agosto 27, 2024

Vaidade e miséria

     Muitos de nós, precisam de sentir que são importantes. Para sermos felizes (ou algo aproximado) precisamos de sentir que outras pessoas escutam atentamente quando dizemos um disparate qualquer, que outras pessoas nos olham quando passamos na rua ou entramos na pastelaria; precisamos de sentir que não somos invisíveis, como o mendigo andrajoso, ali de rastos à porta do supermercado, invisível por ninguém olhar para ele. Provavelmente mal saberá falar.

    Pelas razões atrás expostas, muitos de nós falam aos gritos nem que seja para explicar como cozinhamos frango cozido, vestimo-nos como palhaços de circo fingindo ter escolhido aquelas roupas por mero acaso (a graça é um dom) e fazemos vista grossa à miséria que à nossa volta prolifera. Acima de tudo fazemos vista grossa à miséria que arrastamos, agarrada à nossa sombra projectada.

segunda-feira, agosto 26, 2024

Dúvida existencial

     Há coisas assim, coisas que se alimentam de si próprias e como que ganham vida se bem que a não tenham. Tantas pequenas merdinhas podiam ser compradas por tuta-e-meia! Coisinhas de comer como batatas fritas, tiras de milho, baldes de gelado, a escolha era muita e variada. 

    Ele alimentava a Angústia e o Desespero com igual desvelo e sentido de justiça. Engordavam juntos, os três. E, enquanto o seu corpo ganhava peso e volume, a suas protegidas floresciam imparáveis! O ecrã da TV por horizonte, a vida a entrar num declive acentuado e ele, implacável, continuava sempre, sem temor e sem remorso.

    Não será isto o Inferno?

quinta-feira, agosto 22, 2024

Um raio de luz

     O tempo tinha passado e ele imaginava não ter muito futuro. Nada fazia adivinhar que o fim estivesse próximo mas, como se diz, a idade não engana. Que fazer? 

    Pensou que seria agradável desfrutar de pequenos prazeres: uma musiquinha, um livro divertido, outro desenho, talvez numa superfície mais generosa. Mas, para quê? Para viver, ora essa! 

    Tudo isto lhe passava pela cabeça quando um raio de sol forçou passagem e iluminou o copo sobre a mesa. A estranha sombra que projectou distraiu-lhe os macaquinhos no sótão e ele sorriu para si próprio.

segunda-feira, agosto 19, 2024

Comunicação

    Estivera tanto tempo calado que havia esquecido o dom da fala. Observando uma mulher que passava no caminho, ao fundo da ravina, quis chamá-la. Abriu a garganta, abriu a boca, encheu os pulmões de ar e emitiu um som absolutamente aterrador. Lá em baixo a pobre mulher desatou a correr como se fosse doida, levantando uma nuvem de poeira que poderia confundir-se com a nuvem produzida por um pequeno exército em debandada.

    Abatido pelo resultado da desastrada tentativa, o eremita regressou à escuridão do seu buraco e meditou. Meditou durante muito tempo. Ao que se sabe a meditação não lhe restituiu o dom da fala mas levou o eremita a tomar a decisão de regressar ao convívio dos seus semelhantes. 

    Ainda hoje pedia esmola junto ao templo, protegido pela sombra da muralha. Todos julgam que ele é mudo. 

    Continua a meditar.