segunda-feira, maio 07, 2018

Esbracejar

Trabalhar é o melhor antídoto contra a fantasmagoria. Ter que fazer ou, quando não tenho que fazer, inventar o que fazer, só assim consigo manter o nariz à tona do lamaçal. É como se estivesse sempre a esbracejar. Sim porque, para mim, trabalhar é desenhar ou pintar ou escrever ou falar para uma pequena plateia, sempre a dar aos braços, na verdade.

É como se nadasse na realidade. A realidade como piscina, como mar, como tanque; a realidade líquida, impossível de prender, de meter numa gaiola, impossível evitar que nos escape e fuja e se estenda infinito adiante.

Mesmo que naufrague salvo-me agarrado a um pedaço do mastro, a um patinho amarelo, agarrado a uma lasca de madeira. Não me afogarei pois aprendi a esbracejar. Não me afogo tão depressa. Enquanto esbracejar (pintar, desenhar, escrever, discursar) não me verão desaparecer entre este lugar e a linha do horizonte.

Enquanto esbracejar eu permaneço. Enquanto permaneço eu sobrevivo.

Quando acabei de escrever a palavra "sobrevivo" recebi um SMS de alguém que me dava a notícia da morte de um seu familiar. Este mar é estranho, esta piscina que não tem escadas, este tanque sem fundo que mais se assemelha a um poço. A realidade é demasiado mesquinha, tem curvas demasiado apertadas, coincidências tão exactamente coincidentes que parecem ser coisas inventadas à pressa.

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