terça-feira, setembro 24, 2013

Tempos livres

Uma música suave (como que vomitada por anjos que tenham abusado na ingestão de pétalas de rosa) vai entediando o espaço. Pessoas com muitos cabelos brancos vão chegando, devagar, vão-se sentando, calmamente, tudo se passa a 5 à hora. Percebe-se que são pessoas que têm muito tempo livre.

Como se consegue tanto tempo livre? Passo a tentar explicar o que me pareceu ver naquele lugar onde o aborrecimento é feito de veludo.

As pessoas sentam-se por ali, fingindo que não têm nada que fazer. Passeiam os olhos por jornais, livros e revistas (se não tivessem tantos cabelos brancos decerto olhariam para écrãs de computador, de iPhone, de iPad, etc.), não se passa nada.

Na verdade aquelas pessoas estão a fingir distracção. Elas estão ali para caçar tempo livre! O isco são elas próprias, a sua alma a armadilha que haverá de capturar algum tempo mais descuidado que se abeire dos seus corpos estáticos. O tempo chega-se e... zás, é apanhado na armadilha. É tempo livre capturado. Parece um contrassenso (de facto é) mas as coisas são mesmo assim.

As pessoas gostam de exibir o tempo livre que capturaram. Exibem-no como são exibidos os animais selvagens, em jaulas mais ou menos espaçosas. Depende da qualidade do tempo e da qualidade do indivíduo. "Olhem bem este meu tempo livre, vejam como sou poderoso e feliz por ter semelhante exemplar no circo da minha existência."

E sorri, mostrando na sua jaula reforçada um imponente tempo livre capturado em Roma ou em Vladivostoque, olhando de soslaio para um tempito livre capturado ali, naquela sala onde a música não chateia mas também não anima, um tempo livre tão inofensivo que o guarda no bolso ou numa gaiola de plástico, daquelas onde se guardam os grilos.

Entretanto as pessoas vão-se substituindo umas às outras, muito semelhantes no aspecto e na atitude, o tempo livre a correr riscos de ser aprisionado. Tempo livre prisioneiro, é a suprema aspiração na vida de muitos de nós. Principalmente daqueles que não se incomodam com vómito de anjinho, desde que cheire a rosas. Como é o meu caso.

3 comentários:

Jorge Pinheiro disse...

Com tanto captura o tempo arrisca-se a ficar totalmente prisioneiro. Talvez deixe de existir.
Excelente texto.

Anónimo disse...

Concordo com o Jorge: excelente texto.

Silvares disse...

Jorge, Eduardo, grato pelos vossos comentários.