segunda-feira, abril 12, 2021

Incompatibilidade

A realidade e a ficção serão da mesma família? Imaginando que sejam, podemos especular o que aconteceria caso se encontrassem num jantar de Natal. Ou nas celebrações pascais. Ou, então, caso se encontrassem por ocasião dos festejos do 25 de Abril. Imaginemos uma dessas ocasiões em que não podemos virar o trombil a um familiar, por muito asco que ele nos provoque, independentemente do facto de termos fundadas razões para fingir que o vemos (ou não), que é transparente ou que o nosso olhar é opaco como o olhar de um calhau.

A verdade é que construímos narrativas mais ou menos complexas. Atribuímos a nós próprios um papel nessa historieta que descuidadamente engendramos e é a partir dessa ficção que imaginamos quem somos, o que fazemos, de onde vimos e, com um bocado de sorte, imaginamos para onde vamos.

Certo é o fim. O buraco na terra, o caixão, a cessação dos sentidos; a isso ninguém foge embora tendamos a acreditar em narrativas que nos prolongam a existência para lá deste mundo mesquinho e merdoso ao qual, com este corpinho, não temos por onde fugir. Somos seres fugitivos enfiados numa gaiola. A morte a todos acaba por abocanhar.

Voltando ao primeiro parágrafo: realidade e ficção encontram-se à mesma mesa. Uma come a sopa, a outra não. Uma senta-se a outra fica de pé. Uma abre os olhos sempre que a outra os fecha e sorri sempre que adivinha uma expressão carrancuda.

Admito que realidade e ficção sejam da mesma família mas, estou convicto, não jogam o mesmo jogo nem que alguém as queira obrigar a fazê-lo.

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