sábado, julho 14, 2012

Nas catacumbas

Foi nas catacumbas da cidade, numa carruagem do Metro de Lisboa.

Mendigos são coisa comum, cada um com a sua capacidade que oferece a troco de umas moedinhas, a troco de quase nada.

Uns choramingam auxílio (é essa a sua arte), outros tocam complexas malhas de percussão - bengala a martelar o chão, moedas que chocalham no fundo de uma latinha e inspiradas pancadas da dita bengala nos suportes metálicos que servem para o comum dos mortais agarrar a mão que lhe sustenta o corpo nos abanões da viagem. A variedade é grande, mas há há ainda espaço para a surpresa.

Aquele não parecia real.

Bastava olhá-lo para perceber que havia algo de ficcional na postura e na construção do figurino que tentava justificar a personagem. Tudo nele era limpo e bem arrumado. A pose altiva, o cartaz (PEÇO AJUDA PARA COMER), impecavelmente pendurado no pescoço de uma verticalidade invejável, tudo em perfeita sintonia com uma caixa de papelão acabadinha de construir e ainda vazia de caridade cristã, tudo parecia como que deslocado, uns centímetros ao lado da realidade.

A forma maquinal como se deslocava, parando a espaços certos para exibir a mensagem e a figura, arrancando, em tempos sincopados, para nova deslocação e correspondente paragem, acentuava a impressão de artificialidade de uma personagem estudada e preparada num workshop de representação ministrado por um encenador teatral sem experiência de vida.

Fiquei a pensar que poderia tratar-se de um falso mendigo orientado e encenado por alguém que, tal como ele, não conhecesse bem (nem mal) a verdade da miséria. Alguém que tivesse lido acerca dela sentado numa sala limpinha, com chá, bolinhos e outras coisas boas sobre a mesa. Coisas que ia comendo sem para elas olhar, de tal modo estava fascinado pela leitura e pela descrição da indigência absoluta, leitura prejudicada pela doçura na boca e o desconhecimento absoluto do cheiro a merda misturado com suor.

Aquele mendigo dificilmente poderia ser verdade (talvez por isso, a caixa vazia de caridade alheia). Talvez fosse um actor inexperiente, um estudante do ensino secundário em exercício de personagem a precisar de melhor orientação dramatúrgica.

Ou talvez não fosse nada disso. Talvez fosse apenas um jovem acabadinho de cair em desgraça, a estrear-se nos caminhos tortuosos da miséria urbana, um mendigo em início de carreira.

Os mendigos mais cagados, mais porcos e malcheirosos, decerto tiveram o seu primeiro dia de relativa limpeza.


5 comentários:

Anónimo disse...

Como é triste um ser humano perder toda sua dignidade e esmolar para comer! Um prato de comida não falta a quem possa prestar o mínimo de serviço ou trabalho. Mas falta! Por razões as mais diversas, há pessoas que só comem se a misericórdia alheia lhes facultar! Que miséria!Que vida.

Beto Canales disse...

pois...

Silvares disse...

Eduardo, o mendigo desta história tinha aspecto de quem come razoavelmente.

Beto, é...

peri s.c. disse...

O mendigo ( com todo aspecto de mendigo ) que mais me impressionou foi em Firenze, largado no terceiro degrau de uma porta em uma esquina, com um pequeno cartaz pendurado no pescoço : " Ho fame ".
Não tive coragem de fotografar.

Silvares disse...

Peri, há imagens impressionantes de miséria extrema. Este que descrevo impressionava pela (aparente) ausência de sinais dessa miséria. Talvez a fome ainda não tivesse produzido os seus efeitos devastadores, talvez...