sábado, maio 05, 2012

Como de costume (uma pequena esperança)

 Mundo maravilhoso (colagem que podes ver aqui)

Após a pequena caminhada que me leva até à porta da escola (hoje a pairar ao som de Frank Zappa, "Peaches en Regalia") tomo o café do costume, no balcão do costume. Nas mesas as velhinhas do costume que já me cumprimentam e a quem retribuo o "bom-dia", mais mecânico que simpático.

Sentados junto à porta os alunos do costume, fazendo tempo para chegarem atrasados à aula, mais daqui a uns minutos, como de costume.

Vou à papelaria ao lado comprar o jornal, como sempre. Entre a porta da papelaria e a da escola tenho tempo apenas para ver as letras gordas e a foto da capa, uma foto a cores, bem escolhida, como de costume.

"Número de empresas em incumprimento aumentou em 2011", "Neonazis gregos prometem "varrer" os imigrantes", "Atrasos na medicina legal estão a parar processos judiciais", "Jardim empresta 25% das verbas de resgate a sociedades falidas". Só notícias de merda.

Na aula os alunos parecem meio lá, meio cá, como alices hesitantes entre beber o liquido que faz encolher ou mastigar um pouco do biscoito que faz aumentar. Vem-me à memória a frase da canção de A Naifa que diz "vivo do que me dão, nunca falto às aulas de esgrima, todos os dias agradeço a Deus esta depressão que me anima". Tenho de sorrir. Mais tarde saio para o intervalo.

Levo o jornal mas não me apetece abri-lo. Isso não é costume. Dou por mim a pensar que,se calhar, fazia melhor se não lesse o jornal. As notícias são deprimentes, dão a impressão de que o meu mundo se está a desfazer lentamente, a dissolver-se mais no tempo que no espaço, como açúcar numa chávena de café tão amargo que não há nada capaz de o adoçar.

Seria eu mais feliz (e eu imagino-me um gajo muito feliz) se dedicasse mais tempo à literatura? Seria eu mais feliz (eu sei que sou um gajo, pelo menos, medianamente feliz) se dedicasse mais tempo a produzir imagens que têm o condão de me levar daqui fora, que me fazem viajar nem sei bem como? Acabo sempre por regressar aqui, regresso agora.

E se me alhear do mundo e daquilo que imagino ser a realidade? E se me desinteressar da narrativa oficial que me intoxica com notícias venenosas? O que poderá acontecer?

Se eu não ler o jornal como será a capa de amanhã? Talvez as letras gordas tragam escritas coisas simpáticas. Se não ler não vou saber e pode ser que as coisas aconteçam de outra maneira. Há sempre uma pequena esperança que, como suspira o povo, é sempre a última a morrer. Mas morre.

3 comentários:

Anónimo disse...

Silvares,

por mais que possam morrer as esperânças, a vida e o mundo continua...! Há um outro dito popular que diz: " Renovar ou morrer! Vamos renovar", e aqui no caso as esperânças....

Jorge Pinheiro disse...

Por acaso tb me interrogo que acontece se não ler/ver notícias. Será que o mundo continua? Ou haverá outras notícias para ver? Excelente texto.

Silvares disse...

Eduardo, sou um romântico. Há sempre um lado negro das coisas que me seduz.
:-)

Jorge, já viste o filme Sacrifício de A. Tarkovsky? Estava a pensar na personagem central desse filme enquanto escrevia isto.
Grato pela observação...

.... tal como fico grato com a tua observação, Beto.