Não te deixes enganar pela calmaria. A coisa é aparente. A realidade está prestes a rebentar. Explodirá o azul do céu, rasgará o silêncio do pinhal. A realidade vai desabar sobre as nossas cabeças interrompendo o longo beijo com que tentamos modificar o mundo. Estáticos sobre o penedo infinito. O mundo não quer ser alterado. O mundo tem vontade própria e nós não fazemos parte do séquito com direito a audiência e explanação de opiniões sobre o curso que as coisas do mundo poderão tomar. O mundo é rei e nós não somos seus conselheiros. Rei? O mundo é imperador, caraças! O mundo é imperador de si próprio.
quinta-feira, julho 31, 2025
quarta-feira, julho 30, 2025
O encontro
Trazia a loucura escondida nos bolsos, nas pregas da roupa, um pouco espalhada nos cabelos, loucura que se ia desprendendo ao soprar da brisa, semeando terra que a isso estivesse disposta. Avançava feliz e confiante nas coisas boas que aquele dia haveria de trazer consigo. Ah, quanta pureza no ar, o perfume, a luz, a ausência de lamentos a ondular entre as copas das árvores que se contorciam lentamente, como se dançassem, como se estivessem a espreguiçar-se com volúpia. Que manhã gloriosa!
Avançou pelo trilho. Árvores majestosas projectavam pequenas sombras dada a posição do sol lá no alto. O ruído provocado pelas solas dos sapatos, cada passo esmagava sempre qualquer coisa que não conseguia identificar, começou a inquietá-lo. Não havia naquele som nada de extraordinário, não era assustador, não tinha nada de especial. Simplesmente não conseguia perceber se pisava apenas gravilha ou também ramos secos ou ervas mortas ou algum insecto menos capaz de escapulir.
Instalou-se uma certa angústia. O ar ficou pesado, o perfume transformou-se num odor desagradável, uma nuvem escura atravessou-se entre o sol e a terra. Um pássaro piou tristemente, como se lhe tivesse morrido alguém na família.Mesmo as copas das árvores pareceram enlouquecer de súbito, sopradas e cuspidas de um lado para outro numa sarabanda aérea descontrolada.
O homem enfiou as mãos nos bolsos tentando desajeitadamente libertar-se da loucura que transportava. Desatou a correr esbracejando gestos desconexos. Caíram pedaços aqui e ali, a loucura ia-se espalhando no caminho, ele ofegante, aos tropeções até que avistou a senhora ao fundo do trilho.
Magnífica no seu vestido branco, imaculado. Brilhava sob o sol como se fora uma aparição. Vinha de outro mundo, de um mundo livre desta loucura, desta desorganização, um mundo livre desta angústia que apertava a gorja ao maluquinho que estacou como uma lebre ao aperceber-se da presença da raposa que irá colocar em perigo a sua integridade física.
A mulher não reparou nele de imediato o que permitiu ao homem recompor-se um pouco, alisar o cabelo com a palma da mão direita enquanto enxotava com a esquerda os restos de loucura que tinha ainda agarrados às pernas das calças. Abrandou o passo, recuperou alguma graça, sentiu de novo a brisa suave e o canto dos passarinhos. Teve presença de espírito suficiente para colher uma margarida na berma do caminho. Aproximou-se e soltou um "bom dia" na voz mais melodiosa que aquele dia haveria de ouvir fosse aqui ou em qualquer outro lugar do planeta.
terça-feira, julho 29, 2025
Lâminas
A mentira não crescia, mantinha-se estável, tão estável que talvez nem pudesse ser considerada traição. Os olhares tensos cruzavam-se no espaço do quarto formando uma perigosa teia de fios brilhantes, duros como aço e afiados como lâminas. Se algum dos presentes se movesse correria risco de vida imediato. Ninguém se atrevia a, sequer, piscar os olhos com receio de perder a sua pequena vantagem.
Assim permaneceram por longos minutos até que a rapariga loira, sentada na poltrona de cabedal luzidio, resolveu quebrar o silêncio. E o tempo regressou e voltou a correr. Até ao fim.
segunda-feira, julho 28, 2025
Manhã soalheira
As coisas banais crescem como cogumelos alucinogénicos e crescem por todo o lado infectando mentes e paisagens com a sua estranheza aparentemente inofensiva. A cadeira não teria nada de extraordinário não fosse o estranho ângulo que fazia com a mesa (que tinha uma perna ligeiramente mais curta que as outras o que a tornava instável e perigosa).
Sobre a mesa uma jarra com água. Tudo dentro da mais fastidiosa normalidade. No entanto o sol que entrava pela janela (não tão limpa quanto poderia e talvez devesse estar) trespassava o jarro e atirava sobre o tampo da mesa um desenho feito a facadas luminosas que tremelicou quando o gato esfregou as costas ociosas na perna bamba fazendo oscilar todo o conjunto.
A aranha festejou na sua teia a chegada de uma mosca incauta.
domingo, julho 27, 2025
Romper a aurora
Aquele momento em que se apercebia de que o sono acabava e o estado de vigília viria tomar o lugar que lhe cabia, aparentemente, por direito, aquele momento era o seu preferido. Apercebia-se de que havia uma alma dentro dele, um fantasma que o habitava como se fosse uma casa assombrada. E isso era-lhe extremamente agradável. Sentia que a vida tinha um propósito.
Aquele momento marcava com precisão a passagem do sonho para a realidade, era a prova de que a vida é uma continuidade, que poderia ser eterna não fosse a eternidade um logro.
O fantasma entrava no saco de pele e ossos que haveria de lhe servir como veículo para o tempo em que estivesse acordado e lá se deslocava, desajeitado, a lutar constantemente com a gravidade e outras leis que limitam as possibilidades da poesia sempre que se está deste lado. As leis que fazem de nós seres humanos e dão uma forma tangível às coisas e lhes atribuem os nomes pelos quais as conhecemos.
Tanto para fazer e tanto que nunca haverá de ser feito!
sábado, julho 26, 2025
3 impossibilidades entre mil
Impossível. É-me impossível manter um ritmo diário de escrita. Não é que não queira, não é que não possa, não. É porque me esqueço. Essa é a mais implacável de todas as razões e contra ela pouco há a fazer. Talvez tomando Memofante. Forte.
Impossível escolher a quem confiar o meu voto quando nenhuma das candidaturas apresentadas me inspira confiança. Uma ou outra faz-me despertar uma confiançazinha pequenina, um broto, uma ténue sensação de "je ne sais quoi" mas nenhuma o suficiente para que, no dia da verdade, cruze dois traços no quadradinho que lhe corresponda. Impossível. Resta o voto em branco. Abstenção não é opção.
Impossível ficar indiferente ao genocídio do povo palestino. Indignação e, por vezes, raiva irrompem em mim de forma mais ou menos descontrolada perante as notícias que vão chegando. Mas todo o meu sentimentário resulta estéril. Qualquer atitude, qualquer discurso, qualquer coisa que pretenda fazer a propósito disto não representa absolutamente nada em termos práticos. Não aquece nem arrefece. E fico a pensar se a minha indignação teria o mesmo tom e semelhante intensidade caso estivesse deveras envolvido no processo, caso tivesse outra proximidade espacial e emocional à Palestina e ao seu povo. Impossível saber.
quarta-feira, julho 23, 2025
Vai-se a ver...
É de ficar arrepiado, pele de galinha desde a nuca ao calcanhar. A coisa não é para menos, deixa uma pessoa indignada. Pessoalmente acho mal. Acho muito mal, mesmo. Não estou disponível para pactuar com semelhante bandalheira! Benza-me Deus, guarde-me Nossa Senhora.
Sim, porque ontem não foram capazes de me elucidar. Antes pelo contrário! Dei-me ao trabalho de ouvir os gajos e eles falaram, falaram, falaram e no fim, nicles batatóides! Fiquei na mesma como a lesma. Valeu a pena ouvir o debate? Claro que não, foi pura perda de tempo. E tempo é coisa que não devemos desperdiçar pois nunca se sabe quando batemos a caçoleta, indo desta pra melhor.
A meu ver estão todos vendidos se bem que uns receberão de um lado e os outros receberão do outro, como é mais ou menos evidente. Não acredito que sejam todos pagos pelo mesmo patrão... ou então... vai na volta... afinal de contas o dinheiro é todo igual. Igualzinho mesmo!
terça-feira, julho 22, 2025
Calado como um rato
Está tudo excitado com a retirada da sexualidade do programa da disciplina de Cidadania. Uns porque concordam e não se cansam de mostrar o quanto se sentem libertados por esta decisão. Até arfam de contentamento. Outros porque discordam em absoluto e já imaginam os putos descontrolados na pinocada sem preservativo nem tino. Um reboliço.
Cá pra mim é conversa de surdos, como vem sendo costume. Não há debate, não há discussão. Há apenas gritaria e escavação de trincheiras, a guerra instala-se. De um lado e do outro atira-se tudo o que se tem à mão tentando causar qualquer tipo de dano que seja ao inimigo jurado. No fim do dia está tudo mais confuso, mais sujo, mais esburacado. Não há esperança.
Pessoalmente sinto uma profunda angústia. Tenho a minha opinião mas recuso-me a partilhá-la no meio de semelhante confusão. Qualquer coisa que possa dizer será imediatamente alvo de uma etiqueta e, ai de mim, metralhado por um lado ou pelo outro (ou até pelos dois) caso não esteja de acordo com as boas práticas e os pensamentos decentes. Portanto, calo-me.
sábado, julho 19, 2025
Ai, solidão!
A solidão parece ser o pior dos vírus, eventualmente de todos o mais mortal. Depois de instalada não precisa de muito tempo para se impor e prosperar. Alojada nos nossos corações, nos nossos cérebros ou, nos casos mais complicados, alojada nas nossas almas, a solidão faz de conta que não está lá, finge não saber quem somos. E vai ficando, vai crescendo e engordando alimentando-se de qualquer coisa que nos faça falta.
Há diferentes tipos de solidão, diversas estirpes; umas mais encarniçadas outras menos. Umas assustadoras e repelentes outras quase fofinhas. Seja qual for o aspecto ou o grau de infecciosidade, a solidão não se recomenda nem ao gato da vizinha.
sexta-feira, julho 18, 2025
É assim mesmo!
E é assim mesmo! Olhamos para os outros esperando ver-nos a nós próprios, imaginamos o mundo comparando-o com a nossa casa. Como nada se ajusta ficamos desgostosos e decepcionados. O mundo é uma merda e quanto mais conheço as pessoas mais gosto do meu cão, cenas desse calibre. É pra rir.
Não é pêra doce aguentar o barco, suportar tanta contrariedade. Para o fazer precisamos de nos equipar com instrumentos adequados: religião, psicanálise, ideologia, arte, tudo serve para tentarmos aguentar a barcaça à tona de água, tudo ajuda a cavalgar as ondas embora o risco de naufrágio esteja sempre ali, logo após a linha do horizonte.
A vantagem das analogias marítimas é que o horizonte vai sempre à nossa frente, é uma linha que se afasta. Está próximo, está longe? De cada vez que para ele dirigimos o destino do barco que somos só o vemos a escapulir-se uma e outra vez até se transformar numa linha de costa. E depois atracamos e é assim mesmo.
quinta-feira, julho 17, 2025
Candidato
Estava-lhe entalada a vontade na garganta. Queria dizer, falar, expor, narrar a sua história pessoal era um tesouro a merecer partilha pública. Tudo dentro dele estava em alvoroço, a urgência sufocava-o. Suster a torrente discursiva era particularmente doloroso mas a ocasião assim o exigia. Não era momento adequado a dar bandeira.
Contorceu-se um pouco na cadeira, ardia-lhe o olho do cu.
quarta-feira, julho 16, 2025
Animais de criação
Há quem se veja a si próprio como eterna e constante vítima do "sistema". Esses encaram tal condição como sendo algo heróico, são mártires da pureza dos ideais que os animam. Se, porventura, os seus ideais vierem um dia a triunfar, os nossos candidatos ao paraíso dos deserdados ficarão órfãos da sua razão de existir. Isso é trágico.
Há também aqueles que são, de facto, vítimas eternas e constantes do sistema mas esses, não sei bem, talvez não coloquem a questão nestes termos além de todos estarmos conscientes de que nunca, mas mesmo nunca, virão a ter direito à mais insignificante migalha de justiça.
Entre uns e outros está muita boa gente. Gente farta de aturar as lamentações dos justos eternamente injustiçados e que sente repulsa pelas verdadeiras vítimas. Gente na qual me incluo. Uns têm mais que fazer do que dar atenção a este tipo de questões, estão demasiado ocupados a trabalhar para poderem consumir. Outros vivem em mundos mais ou menos abstractos, não têm espaço mental para oferecer a este mundo. Outros ainda têm ódio aos primeiros e desprezam os segundos. Etc. É muita boa gente, são muitas condições diferenciadas.
O que resta disto tudo? Um pouco de amor requentado, bastante ódio, muita estupidez e oceanos de ignorância. É a nossa espécie em todo o seu esplendor, criação divina.
terça-feira, julho 15, 2025
Viver o momento
Fazer citações é caminho estreito e repleto de pedregulhos, daqueles que não dão para construir castelos. Ou bem que sabemos do que estamos a falar ou melhor seria manter a boquinha trancada a sete-chaves. Mas as coisas não se passam bem assim.
No mundo ideal, citar alguém implica recolher e acrescentar dados relacionados com a proveniência da coisa o que implica, pelo menos, um "onde" e um "quem", eventualmente um "quando", o que se aconselha vivamente. É, portanto, tarefa que impõe algum rigor e boa-fé da parte de quem cita.
No mundo real é a confusão que se sabe. As citações chovem como sapos em narrativa bíblica. As vindas sabe-se lá de onde misturadas com as que se sabe bem de onde vêm, tudo vale a mesma coisa, não há problema de maior. A ideia original pode estar já um bocadinho distorcida, por vezes completamente adulterada mas, pronto, não vamos chatear-nos por isso. O que interessa é passar a mensagem.
Uma citação errada pode substituir a original e correcta sem grande problema nem esforço. Basta que seja repetida as vezes suficientes para se tornar mais verdadeira que a verdade. Alguém se incomoda com isso? Não vale a pena, desde que a mensagem tenha passado estará tudo bem.
Quem diz uma citação diz um facto. A confirmação é, muitas vezes, puro aborrecimento. Se a coisa for suficientemente sumarenta podemos ficar pela primeira forma, mesmo que não seja propriamente verdade: desfrutar do momento é o grande objectivo dos seres vivos. Seja ele qual for (o facto, o ser vivo, ambos ou vice-versa).
segunda-feira, julho 14, 2025
Desistir é estúpido
Hesitar perante a indefinição de uma obra é algo perfeitamente normal. Ainda não esgotámos todos os recursos técnicos, confiamos na possibilidade de que um ou outro rasgo criativo possa trazer novas orientações durante a realização da coisa mas a tentação de desistir instala-se. Acontece muitas vezes.
Nessas ocasiões devemos invocar a nossa capacidade de resistir à tentação, insistir na continuação do processo. Há sempre uma fase complicada quando estamos a fazer um desenho ou uma pintura (imagino que possa acontecer com todos os actos criativos), uma fase em que as coisas estão feias, desajeitadas quando, na verdade, estão apenas incompletas. É como na história do Patinho Feio que, afinal, era um cisne. Ganda cena!
Agora já não desisto quando penso nisso e sou assolado pela tentação de o fazer. A experiência mostrou-me que desistir antes do fim pode privar-me de momentos interessantes. Desistir é estúpido.
domingo, julho 13, 2025
Ser ou não ser (inumano)
Por vezes penso que a condição de Ser Humano não é automática entre os indivíduos da nossa espécie. Uns serão mais humanos do que outros. E, quando penso nisto, não sou capaz de aceitar a coisa sem lhe resistir.
Custa-me a crer que seja como no Triunfo dos Porcos. Mas parece-me inquestionável que há gente genuinamente má e o seu oposto. Parece-me também que os maus estão a ganhar a batalha contra os bons. Espero que seja apenas um desequilíbrio momentâneo.
Os maus estão a aproveitar muito mais e muito melhor os equipamentos de inteligência artificial a seu favor. Os bons ainda se questionam e debatem com problemas e dilemas éticos. Bondade é fraqueza e lentidão. Os maus são mais decididos e actuam com outra objectividade. Para eles, ser um ciborgue não constitui problema de maior desde que isso os ajude a pulverizar os inimigos. Estamos fodidos.
sábado, julho 12, 2025
Coachar
Aquelas pessoas cheias a deitar por fora de certezas relacionadas com questões comportamentais enojam-me um bocadinho. Não digo que sejam como cagalhões no meio da sala mas são como respingo de diarreia na lapela de um doutor. Não sei onde vão buscar aqueles números exactos nem como mantêm uma cara de pau à prova de tudo e mais alguma coisa enquanto vão debitando afirmações entre o fofinho e o "ai-ai-ainda-levas-tau-tau", normalmente sem contraditório. São como pequenos deuses ambiciosos, pequenos deuses que em breve irão fundar novos infernos.
Normalmente ouço esses seres vivos a falar brasileiro (ou português, ou português do Brasil, para mim é tudo exactamente a mesma coisa) com vozes bem colocadas, com dicção perfeita, como se o discurso tivesse sido preparado ao milímetro, construído ao segundo, como se tudo, discurso e discursante, seja fruto de um plano minuciosamente elaborado. Se for um tuga a perorar, a coisa não soa tão bem, soa a falso. Quando é um brasileiro a encher-nos a cabeça de merda está tudo certo: adoramos!
São os mental coaches, aqueles que irão tapar com amor e compreensão todas as fendas que a tua alma for abrindo.
sexta-feira, julho 11, 2025
À beira da estupidez
Chove inesperadamente. O calor mantém-se, tal como os calções, as camisas de mangas cavadas, sandálias e chinelos, a parafernália habitual dos dias em que a canícula nos morde e abocanha do nascer ao pôr-do-sol e mesmo durante a noite. Só que, esta manhã, surgiu uma chuva fresca e miudinha, batida a vento que nos atinge como se Deus fosse um acupunctor nervoso e indeciso, tentando picar-nos o corpo na totalidade, por via das dúvidas.
Não sei se por causa da chuva, sinto-me enfastiado. Pensando um bocadinho, por que razão a chuva haveria de me enfastiar? É um pensamento um bocado estúpido. Fico a matutar na coisa.
Será que tenho pensamentos estúpidos a toda a hora ou, pelo menos, tenho-os com frequência e não me apercebo de tanta estupidez apenas porque não reparo? Se parar para pensar a cada passo descobrirei uma quantidade de pensamentos estúpidos e imbecis muito para lá do que imaginaria aceitável? Ai Jesus!
O melhor será parar de pensar. Pausa.
quinta-feira, julho 10, 2025
O dia de hoje
Antecipar um dia em que podemos fazer tudo aquilo que podemos imaginar e podemos ponderar dadas as circunstâncias não é a tarefa mais simples nem é evidente. O meu cérebro desorganiza-se com facilidade; aliás, para se desorganizar seria necessário que o meu cérebro estivesse, de alguma forma, organizado, o que raramente acontece. A pontuação da frase anterior deixou-me a pensar e encheu-me de dúvidas mas parece-me ter chegado a uma conclusão aceitável.
Já me desviava do que pretendia dizer. Lá está! É a tal tendência para uma desorganização constante e persistente. De que falava eu? Ah, sim, já me lembro (li a primeira frase deste post). Poder fazer aquilo que seja capaz de imaginar...
Desenhar? Recortar coisinhas e fazer colagens? Ler? Ouvir música durante as tarefas mais criativas? Ir dar uma volta, apanhar ar no trombil? Dormir uma sesta? Ir ao velório? As possibilidades são variadas e eventualmente combinatórias. Posso estabelecer um plano, elaborar uma lista, ordenar, organizar, prever, antever, posso fazer tanta coisa, caraças! Por isso mesmo opto por não fazer nada. Ou melhor, por isso mesmo deixo que seja o dia a decidir por mim. Decerto tomará melhores opções.
Não me sinto capaz de fazer as coisas "bem feitas".
quarta-feira, julho 09, 2025
Prévio conceito
Falava sozinha rua acima, como se mastigasse palavras, como se ruminasse ideias esquecidas. O aspecto de "maluca como o caraças" ninguém lho tirava. Lá vinha ela. Não me pareceu desleixada, quando nos cruzámos não persistiu na atmosfera nenhum fedor particular, era aquela cena, aquela ladainha a martelar, juntamente com os passos sublinhados a salto alto na calçada. Na verdade nada me garantia que se tratasse de uma maluca. Nada, além do meu preconceito.
O preconceito é uma espinha que não conseguimos desencravar da garganta, é uma pedra no sapato que não descalçamos nem por nada, é um fantasma hediondo a assombrar-nos a mioleira e que não conseguimos espantar nem à força de mil "cabrão" nem dez mil "filho-da-puta". O preconceito é mesmo fodido.
A última esperança reside na nossa capacidade de percebermos o preconceito que nos infecta. Não nos livramos dele mas saber que nos desorienta, estarmos conscientes de que o trazemos dentro de nós, é coisa que transporta consigo algum alívio.
terça-feira, julho 08, 2025
Tarefas
Não poder falar verdade é uma tortura para o espírito. Tentar encontrar formas sinuosas de afirmar coisas simples é trabalho que dispenso, obrigadinho. Se a tarefa não for exclusivamente imaginativa então que seja o mais objectiva possível.
Assistir ao último suspiro de uma pessoa não é tarefa fácil. É como se um pedaço de nós fosse também embora. E depois há o odor, o estranho odor que a morte desprende ao passar (quanto tempo ficará ela ali, junto ao cadáver?). A flacidez dos tecidos cutâneos aliada ao frio que sentimos nas mãos enquanto tentamos reanimar o corpo ali estendido.
Agora não tenho vontade de fazer nada.
segunda-feira, julho 07, 2025
A promessa
E pronto, bastou falar nisso para que não acontecesse logo no dia seguinte. terei um espírito de contradição tão forte, tão enraizado, que me contradigo a mim próprio? Mais estranho ainda, esse espírito de contradição leva-me a estabelecer compromissos comigo próprio com o intuito inconfessado de apenas os quebrar? Fecho contratos comigo próprio com o único objectivo de os não cumprir?
Seja como for, falhei apenas um dia. Ontem não escrevi um post no 100 Cabeças quebrando a meia promessa que fiz anteontem. Não é grave. É apenas motivo de reflexão. Talvez não haja conclusões a tirar. Talvez a coisa se resolva escrevendo um post todos os dias até ao final do mês (risinho desdenhoso).
sábado, julho 05, 2025
Morremo-nos
Eu sei que não vou ser capaz de escrever um post todos os dias deste mês mas, não sei se reparaste, estou a tentar. Porquê? Por nada, lembrei-me agora dessa possibilidade. Ter assunto não é complicado uma vez que sou muito bem capaz de escrever umas linhas valentes sem dizer absolutamente nada. Pelo menos, sem dizer alguma coisa que tenha algum interesse.
Hoje soube da morte de mais um homem que foi um grande amigo meu. Nos últimos anos tinha-me cruzado com ele apenas um par de vezes. Abraços, festinhas e, até, troca de beijos. Amigo é amigo, mesmo que não saibamos nada dele, mesmo que estejamos anos sem nos vermos. Ser amigo de alguém é um bocado como ser um cão.
Morreu mais esse amigo e eu percebi que "vamos morrendo". Eu ainda estou vivo, muitos de "nós" ainda vivem, mas o número dos que já morreram não pára de aumentar (coisa mais óbvia...) fazendo com que a "nossa" presença neste mundo vá perdendo nitidez de contorno, se desvaneça.
Sinto uma súbita vontade de sublinhar a minha existência. Mas, isso faz falta a alguém, a minha existência marcada a traço grosso nas paredes deste mundo? Parece-me ser apenas um reflexo da angústia que me provoca a percepção de que o tempo que me resta é muito menos do que o tempo que já vivi.
Será isto, a percepção da caducidade, o que faz com que os ditadores fiquem bandidos cada vez mais ásperos à medida que envelhecem e percebem que a Eternidade ainda não será por eles alcançada? Será esta necessidade ditada por uma certa inveja em relação às vidas mais jovens? Fico inquieto. Tinha-me por melhor pessoa.
sexta-feira, julho 04, 2025
Nem sei que te diga
Um tipo acorda de manhã a sonhar com o dia que aí vem e com dias passados, um gajo acorda a sonhar. Um gajo sente-se bem. Imagina-se especial. Acordar, sonhar, sentir, imaginar, suave sequência verbal. Prometedora.
Promessas feitas por encomenda abstracta dificilmente poderão realizar-se de forma a contentar quem delas nada esperava mas que, ao imaginá-las, acreditou virem a ser possíveis para além daquilo que se atrevera a desejar. Protejam-me dos meus desejos. Protejam-me daquilo que eu quero. Qualquer coisa para traduzir a máxima infinita: Protect me from what I want. Espantosa síntese da condição humana estabelecida por Jenny Holzer.
Jenny, reconheço a magnificência do que afirmaste mas não sei se te agradeça.
quinta-feira, julho 03, 2025
Somos todos irmãos
Somos todos irmãos. Esta conversa é norma entre os católicos. Quando nos dizem que somos todos irmãos pretendem sugerir a possibilidade de sermos todos amigos uns dos outros? Basta ler uma mão-cheia de páginas do Antigo Testamento para darmos de caras com a história miserável de Caim e Abel. E não precisamos de nos esforçar por aí além para encontrarmos situações em que irmãos mentem uns aos outros, situações em que se agridem, se abandonam, se ignoram, se roubam, todo o catálogo de tramóia e vigarice aberto e exposto aos nossos olhos.
Somos todos irmãos. Conversa vazia e carente de significado. Veja-se Gaza, olhe-se para Israel, pense-se no liberalismo económico ou na exploração de recursos naturais. Somos todos irmãos mas uns de nós são mais irmãos que os outros? Deve ser isso. A coisa, vista assim, começa a fazer algum sentido.
"Somos todos irmãos" é uma frase feita que se completa com outra que também não precisamos de inventar: "uns são filhos e outros são enteados". Está quase tudo dito.
quarta-feira, julho 02, 2025
O mundo nunca foi o que era
Acontece de cada vez que dou por terminado um desenho. É uma sucessão de ideias e sentimentos que desfila perante mim, como um comboio a partir do cais de embarque, a dirigir-se lentamente para fora da estação. Não sei se lhe acene se corra atrás dele na tentativa de saltar lá para dentro.
Já o disse e repeti várias vezes em alguns dos dois mil seiscentos e tal posts deste blogue: um desenho, uma pintura, uma obra de arte, nunca estão verdadeiramente concluídos, são deixados em estado de suspensão pelo autor no momento em que este considera ter-se empenhado suficientemente no trabalho de dar forma ao objecto.
Sei que isto é verdade inquestionável mas sei também que custa um bocadinho deixar a coisa entregue a si própria e a quem a possa ver a partir daqui, a partir do tempo em que passa a ser objecto de exposição e não objecto de criação.
Tenho tantos desenhos que nunca foram vistos por ninguém, além de mim. Tantos desenhos (centenas, pelo menos) que têm um tempo de exposição exclusivamente virtual, vistos apenas através de ecrãs. E depois?
Ainda esta manhã estive a pensar sobre a razão que me leva a desenhar e qual a utilidade dos desenhos que vou fazendo. Não obtive nem sombra de resposta. Entretanto concluí um desenho a que dei o título de Floresta Desencantada (o mundo nunca foi o que era).
terça-feira, julho 01, 2025
O monstro regressa
Assistimos incrédulos ao ressuscitar do fundamentalismo cristão. É de sublinhar o papel arrasador desempenhado pelo cristianismo na destruição da sabedoria e do conhecimento logo que foi alcandorado aos lugares de governação no antigo Império Romano.
A História costuma sublinhar o papel dos mártires cristãos e obliterar em absoluto todos os que foram martirizados em nome do Livro único e do cristianismo. Ainda hoje sentimos um tremor beatífico nos meios de comunicação ocidentais quando, lá para os orientes, uma igreja cristã é alvo de violência mas sobre a perseguição a filósofos e destruição de bibliotecas no passado longínquo e os ataques e ameaças a bibliotecas públicas na actualidade... népias ou quase nada.
O cristianismo, na sua génese, foi uma onda de obscurantismo fundamentalista que varreu a Europa, o Próximo Oriente e o Norte de África, levando na enxurrada séculos de Saber e Conhecimento. Tudo em nome de Deus, da Salvação e da verdadeira Fé.
O monstro pretende renascer, já começamos a ver-lhe um dedinho de fora.