terça-feira, maio 31, 2016

Nojo

Já nem se nota. Morreram mais umas mãos cheias de pessoas afogadas no Mar Mediterrâneo mas os jornais já quase não ligam. As pessoas já quase não ligam. É uma fatalidade, uma nova lei da natureza. Que se há-de fazer?

A comunidade ocidental já se fartou de chorar por estes mortos. A comunidade europeia já mostrou que não está disposta a recebê-los vivos. Até é preferível que morram no caminho. Assim poupam-se à desilusão dos campos de refugiados improvisados, aos insultos xenófobos, à angústia de estarem tão perto do sonho e perceberem que, afinal, é apenas um outro pesadelo... enfim, resta-lhes a consolação de morrerem esperançados num futuro melhor.

Isto mete nojo.

sábado, maio 28, 2016

Os porcos triunfam sempre

Não parece ser possível fazer grande coisa. Os porcos triunfam sempre.

Os mentirosos, os poderosos (a mentira é uma forma de poder e o poder é uma forma de mentira), os belos, os bem nutridos, os bem parecidos, os fortes, os atléticos, os bem falantes, os altos e os loiros, os de olhos azuis, todos os perfeitos, os de sorriso alinhado, os de dentes brancos, os bem vestidos, todos estes, todos eles, triunfam sempre pois é a imagem o factor fundamental.

Muito antes desta era estupidamente mediática, já dizia o povo que "quem vê caras não vê corações". A sabedoria popular é feita pelos que estão por baixo, pelos defeituosos, pelos baixotes e gorduchos, de beiça gordurosa, malga de tinto vazia a pender na mão titubeante. Este ditado é profecia.

Vivemos num mundo dominado por dentições ofuscantes. Os que têm dentes podres e barbela nunca poderão confrontar os limpinhos, dificilmente poderão refutar uma afirmação exalada num suspiro enfadado de um Ken, muito menos poderão contestar a autoridade luminosa de uma Barbie. Vivemos num mundo dominado por princesas Disney.

Poucas vezes a "tradução" de um título do inglês teve tão grande sublimidade quanto a de "Animal farm" para "O triunfo dos porcos". Houvesse Orwell tido o lampejo genial desse título para a sua fábula intemporal e, talvez, o mundo fosse um pouco diferente. Os porcos triunfam sempre.

quinta-feira, maio 26, 2016

Bom feriado

Esta 5.ª feira mais parece ser um Sábado. É estranha a forma como os dias da semana ganham personalidades próprias quando vivemos uma vida de rotinas. Os dias entram-nos no corpo e o corpo adapta-se aos dias como eles vão sendo.

Hoje o meu corpo não percebeu de imediato que era 5.ª feira pois não teve de obedecer ao relógio. O meu corpo deambulou pela casa um tanto confuso. Quando saiu para rua percebeu um ritmo diferente e, talvez por isso, deslocou os quadradinhos do calendário e passou a comportar-se em desacordo com a realidade.

Levei algum tempo a ligar o cérebro em modo autónomo. A partir daí fui construindo o sentido deste dia.

Bom feriado.

sexta-feira, maio 20, 2016

Zombie King

Cada povo tem o bandido que merece e cada bandido encontra o lugar que lhe compete no meio do povo a que pertence. Alguns bandidos acabam por ser amados outros impõem-se pelo temor que inspiram. Há mesmo aqueles que nunca chegam a ser identificados como tal; são os maiores de todos os bandidos.

Quando um bandido se torna demasiado mau e se transforma em monstro é hora de deitar as mãos à cabeça. Muitos bandidos são tolerados, apaparicados, levados em ombros pelo povo que finge não perceber a profundidade das burlas, dos logros e dos pequenos roubos com que o bandido vai marcando o seu percurso social.

Bem vestidos, bem lavados e perfumados, penteadinhos como se estivessem constantemente à porta de casa da tia, prontos para o chá das cinco antes de irem tratar de uns assuntos muito importantes, os bandidos podem ser ou não ser muito perigosos. É como no Hamlet.

O problema é conseguirmos perceber o que é que define um bandido, onde é traçada e quem traça a fronteira da bandidice? Entre nós, cá em Portugal, não nos temos preocupado muito com esta questão e acarinhamos indefinidamente os nossos bandidos e, até, mesmo alguns grandes filhos da puta. É como se eles fossem aquilo que gostaríamos de ser mas que não temos coragem para assumir a não ser defronte ao espelho.

Seremos um povo de bandidos? Talvez sejamos e talvez isso seja motivo de esperança.

Cada povo de bandidos tem o herói que merece e cada herói encontra o lugar que lhe compete no meio do povo a que pertence? Continuamos à espera de Dom Sebastião que, caso regresse na tal manhã de nevoeiro, será já pouco mais que um zombie.

terça-feira, maio 17, 2016

Angústia?

Por vezes um gajo tem a incómoda sensação de que as coisas estão a ficar bolorentas. Percebes o que quero dizer, leitor amigo? As coisas ganham, de súbito, mais uns gramas de peso, parecem ficar pastosas, a colarem-se aos ponteiros do relógio, as coisas ficam mais feias, menos belas, enrolam-se em papel manteiga engordurado... não sei explicar bem mas talvez estejas a compreender o que quero dizer.

Há dias em que as coisas ficam assim.

Para mim isto está a acontecer desde ontem. As pessoas notam o fenómeno estampado na minha cara; "isso não está bem" ou " estás com cara de caso", dizem-me. E eu acredito. Acredito que o meu corpo e a minha imagem deixam transparecer essa estranheza incomunicável por palavras.

Penso que é a isto que chamamos "angústia". Neste caso uma leve angústia mas, ainda assim, uma sensação capaz de transformar, de limitar, capaz de aprisionar o espírito numa espécie de teia tecida por uma inominável aranha.

domingo, maio 15, 2016

Ai, caramba!!!

Apercebo-me que sou incapaz de imaginar uma coisa que não esteja contida noutra coisa. A alma contida no corpo; a galáxia contida no universo; Deus contido no espírito humano; etc. e tal, por aí fora, por aí adiante... a noção de infinito, a possibilidade da ausência de limites é algo muito para lá da minha compreensão.

Isto traz-me uma angústia fundamental: o que é a Liberdade? Não é a Liberdade, por definição, uma ausência de limites?

 A Liberdade tem limites? Como pode a liberdade ter limites? Significa isto que a Liberdade está contida em alguma coisa? Não é isto uma tenebrosa contradição?

Ok, isto está ficar descontrolado, demasiado confuso. Um prisioneiro é livre de se movimentar no espaço da prisão que o confina? Uma pessoa que é livre de se deslocar num determinado espaço não encontrará um limite, uma fronteira que a impeça de ser totalmente livre?

Totalmente livre... ao dizer isto estarei a admitir a hipótese de que existe a possibilidade de sermos mais ou menos livres. Isto faz algum sentido? Como pode alguém ser mais livre ou menos livre? A Liberdade admite uma escala de valor?

Ai, estou a ficar nauseado!

Talvez a questão da Liberdade só possa ser colocada num plano ideal; talvez a questão da Liberdade não faça sentido no mundo real. Talvez a Liberdade seja possível apenas num mundo onírico. A Liberdade não cabe neste mundo em que nos cruzamos e somos aquilo que somos.

Como diz a canção dos GNR: "Horrorosa Natureza, pseudo-mãe, até há fronteiras na selva".

Por vezes penso que nunca saí da adolescência.

sexta-feira, maio 13, 2016

Magia

Tentar compreender o mundo que nos rodeia é tarefa impossível de concretizar. Sempre foi. Os grandes pensadores oferecem-nos lampejos clarividentes, iluminam por instantes o negrume universal.

Quando reflectimos sobre a imensidão percebemos que somos menos que um átomo no corpo frágil de uma formiga. Além disso, condenados que estamos à extinção, podemos sentir a angústia infinita de não sermos nada. Mas, no entanto, estamos aqui. Temos esta vida para viver e este universo para compreender.

É com estes pensamentos que entro no dia que se segue. Não posso dizer que esteja particularmente entusiasmado. Sei que, mais logo, terei esquecido esta deprimente reflexão. Quando der a primeira gargalhada do dia tudo se iluminará, como que por magia.

terça-feira, maio 10, 2016

Monstros

Perguntas:
- Quem nos protege dos monstros que assolam este mundo? Quem consegue impedir a brutalidade absoluta desses monstros? Quem tem força para derrotar os monstros?

Respostas:
- Outros monstros. Outros monstros. Outros monstros.


segunda-feira, maio 09, 2016

Vison

Um homem de cabeça branca passeia no palco com uma gola circular, reflectora, gola que lhe dá uma volta completa ao pescoço. A luz cai sobre a gola num gracioso ângulo de, mais ou menos, não sei  quantos graus e faz com que o homem, vestido de negro, se transforme numa cabeça planante (como a do Rei da Lua nas Aventuras do Barão Munchausen).

O homem sorri, arreganha os brancos lábios. Tem os dentes vermelhos. Acho que esteve a comer tomate. Molho de tomate. A beber sumo de tomate. O tomate é um estranho fruto.

Depois há aquele malabarista vestido com um fato de escamas de peixe que salta como um sapo ou como um coelho (não parece nada um canguru a saltar), que salta por ali e por acolá, que dá pinotes e pinotes, atirando objectos ao ar: um guarda-chuva, um telemóvel esperto, um tijolo cor de laranja e um ursinho de peluche ao qual está quase, quase, a saltar um dos olhos (que já é um botão de gabardina há bastante tempo).

Olha, agora é uma ave transparente que entra em cena. Tem rodinhas no lugar dos pés e rola sobre o palco com suavidade. A ave comeu uma rosa vermelha ao pequeno almoço, vê-se bem que foi isso o que comeu.

Mais atrás um casal flutua sobre o negrume do palco, equilibrando-se num esquife de metal. Uma das figuras encontra-se protegida por um pano azul que a cobre da cabeça aos pés (presumindo que tenha cabeça e que tenha pés).

Finalmente, um cavalo cujo corpo já é mais uma armadura que aquilo que deveria ser o corpo de um cavalo, passa em primeiro plano com um corneteiro incrustado no lombo, como um artilheiro enfiado na tampa aberta de um carro de combate.

sexta-feira, maio 06, 2016

Da vaidade

Folheio as páginas do suplemento cultural do "meu" jornal. Leio aqueles títulos em letras mais gordas que a vénus de Willendorf, frases magníficas, sugestões enigmáticas, descrições com elevado teor poético elogiam escritores, músicos e outros artistas, disparam-nos em direcção à categoria de pequenos deuses neste Olimpo de papel impresso. E sinto inveja, confesso que sinto inveja.

A inveja que arranha o interior do meu peito faz-me sentir que não sou digno daquele panteão da cultura. Um deus, mesmo um deus de papel impresso, decerto é superior a sentimento tão mesquinho, tão pequenino, tão provinciano, como esta inveja que aqui exponho. Inquieto-me, roo as unhas: não sou um artista? Sou um mero professorzeco, não sou um intelectual, sou um... nem sei o que sou.... um Joseph Merrick, na melhor das hipóteses.

Oh, como eu gostava de um dia ser página de suplemento cultural (página dupla levar-me-ia ao Paraíso!), como eu gostava de ver o meu nome elogiado por alguém com o dom da escrita e argúcia suficiente para ver nos meus trabalhos aquilo que nem eu serei capaz de perceber. Oh, como seria feliz se, por uma vez, pudesse despejar na gamela onde a minha vaidade chafurda e se alimenta substância suficiente que lhe saciasse a fomeca.

Foi em Narciso e Goldmund, de Herman Hesse, que li, há largos anos, uma frase que nunca esqueci (decerto a transformei, a memória é traiçoeira). Numa das conversas entre as personagens centrais deste romance, uma dizia à outra qualquer coisa como "a arte arrisca-se a ser apenas uma expressão de vaidade individual". Se não é isto, peço desculpas a Hesse, mas foi isto que me ficou gravado a ferro e fogo nos recessos do cérebro.

Hesse é bem capaz de ter ali fixado um ponto importante, digno de profunda reflexão.

quarta-feira, maio 04, 2016

Contrários

Não estar zangado não é o mesmo que estar feliz. Não estar morto não significa que se esteja vivo. O contrário do branco não é o preto. Nem o céu é o contrário da terra. O contrário de ser bom não é ser mau. O cão não é o contrário do gato. O contrário de contrário é, precisamente, o contrário.

Ok, estou a registar uma série de ideias controversas, parvoíces, admito. Acabo de escrever e fico imediatamente suspenso na dúvida.

Quero apenas notar que entre coisas aparentemente opostas existem outras, existem coisas intermédias. O contrário de alguma coisa pode ser mais ou menos evidente, mais ou menos vincado. O contrário de uma coisa pode ser apenas um bocadinho o seu contrário. O contrário absoluto não é mais que o extremo de uma escala.

Será? 

terça-feira, maio 03, 2016

Esfera

Podemos virar uma esfera ao contrário que ela não deixará de ser uma esfera. Podemos olhá-la de diferentes ângulos; parecer-nos-à idêntica. Será por isso que a esfera é considerada uma forma perfeita, por ser, aparentemente, incorruptível?